Os sacos de gente morta no Líbano são pretos

Por Tadeu Breda
editor

 

Faz um ano que Israel deu início à fase mais explícita do genocídio e da limpeza étnica permanentes que conduz contra os palestinos desde 1948 — na verdade, desde antes, quando os grupos terroristas supremacistas judeus começaram a explodir pessoas e casas na Palestina com o objetivo de expulsar quem lá morava há séculos. O ato fundacional do Estado de Israel é a Nakba. E o que estamos testemunhando agora é muito pior do que aquela catástrofe.

Os últimos doze meses foram de uma sádica monotonia para quem acompanha diariamente as notícias internacionais. Desde então, e com a exceção de uma curta “pausa humanitária” para trocar reféns de lado a lado (sim, reféns, porque prisioneiros palestinos encarcerados em centros de detenção israelenses sem julgamento ou após terem sido julgados pela força ocupante são reféns), Israel não parou de bombardear Gaza — e o Líbano e a Síria.

Não houve um único dia sem registros de pessoas mortas nessa estreita faixa territorial às margens do Mediterrâneo, o maior campo de concentração a céu aberto do mundo. Crianças, mulheres, idosos, poetas, combatentes, tanto faz: Israel matou todos que quis matar, e continuará matando. Afinal, como os ministros de Tel Aviv gostam de repetir, “são selvagens”, “animais humanos”.

Israel cagou e continuará cagando para as manifestações do secretário geral, do Conselho de Segurança, da Assembleia Geral da ONU e da Corte Internacional de Justiça, para as Convenções de Genebra e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Age impunemente e sabe que não responderá pelos seus infindáveis crimes de guerra e conta a humanidade. Aplausos no Capitólio.

No ano que passou, a sociedade civil israelense — com algumas poucas e politicamente inócuas exceções — apoiou o extermínio sistemático dos palestinos. Os políticos de extrema direita se fortaleceram. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu segue surfando nas pesquisas de popularidade, mesmo com mais de 40 mil mortes palestinas nas costas — 17 mil delas, de crianças — e mesmo com tantos reféns do Hamas mortos pelo “fogo amigo” de Israel em Gaza.

Soldados filmados torturando e estuprando palestinos em prisões israelenses foram entrevistados em programas de televisão do país entre sorrisos e elogios dos apresentadores. Declarações e atitudes que revelam de maneira cristalina o processo de desumanização dos palestinos pelos israelenses proliferaram — o último a que tive o desprazer de assistir foram soldados chutando corpos (vivos? mortos?) de cima de um edifício, para caírem feito sacos de batata lá embaixo.

Também não houve novidade na cobertura da imprensa. Nem os recentíssimos bombardeios israelenses no Líbano — país com uma colônia de imigrantes imensa no Brasil, com representantes muito bem instalados nas altas rodas do poder político, econômico e cultural — e o morticínio em massa de libaneses em Beirute e outras cidades provocou mudanças no viés jornalístico sionista brasileiro.

Antes da chuva de bombas, o atentado terrorista que explodiu pagers e walkie-talkies indiscriminadamente no corpo e na cara de milhares de libaneses foi tratado pelos meios de comunicação como uma grande e ousada demonstração de força da inteligência militar israelense. Terrorismo é coisa de árabe e/ou muçulmano.

Também vivemos um ano de ladainhas proferidas por líderes mundiais: desde Lula, que corajosa e corretamente comparou as ações de Israel contra os palestinos ao que Hitler fez com os judeus, mas que depois recuou e não avançou para romper relações com o Estado genocida, até os Estados Unidos, que continua financiando a máquina de guerra israelense enquanto Joe Biden e Kamala Harris balbuciam sem que ninguém mais acredite que muita gente já morreu e que é preciso um cessar-fogo.

A hipocrisia alcançou níveis obscenamente indizíveis. Analistas políticos enchem a boca para dizer que Hamas, Hezbollah, houthis e as milícias xiitas do Iraque são títeres do Irã — e, de fato, o regime dos aiatolás apoia essas organizações —, mas sequer cogitam a possibilidade de afirmar que Israel é o grande títere dos Estados Unidos, mesmo que já não reste absolutamente nenhuma dúvida disso.

Não é segredo para ninguém: já foi dito até mesmo por presidentes estadunidenses (“Se Israel não existisse, teríamos que inventá-lo”, cf. Biden, Joe, 1986) e premiês israelenses (“Nós continuamos fazendo com que os Estados Unidos não precisem colocar tropas em terra para proteger nossos interesses comuns no Oriente Médio. […] Nós estamos protegendo vocês”, cf. Netanyahu, Benjamin, 2024) que esse país só existe para defender os interesses do Ocidente na região: um posto de controle avançado e muito bem armado com esse único objetivo.

Lar nacional judeu? Último bastião contra o antissemitismo? Ora, Israel é o maior promotor do antissemitismo internacional e o lugar onde os judeus mais são vítimas de violência e mais correm perigo no mundo atualmente. A polícia israelense é a que mais reprime judeus em qualquer lugar do planeta: basta ver os cassetetes cantando no lombo de quem se opõe ao fascismo galopante no país e no dos ultraortodoxos (haredim) que não querem se alistar no exército. Apanha até quem exige nas ruas que o governo assine um acordo com a resistência palestina para salvar os reféns que ainda estão vivos, e familiares que criticam a abordagem do gabinete israelense sofrem ameaças de morte de extremistas judeus.

A narrativa que sustentou Israel durante 76 anos nunca resistiu a uma análise séria e honesta dos fatos, mas se manteve de pé devido a uma intensa manipulação histórica e à correlação de forças geopolíticas vigentes desde então. Mas agora começa a desmoronar inevitavelmente. Basta querer ver. Cada vez mais gente está arregalando os olhos, apesar de muita gente ainda preferir olhar para o outro lado.

No ano que passou, entendemos que um genocídio é feito de pequenas e aparentemente inofensivas concessões. E a frase que mais contribuiu para a aceitação do genocídio é “Ah, mas o Hamas…”, dita e repetida por quem, pela razão que tenha escolhido adotar, tem medo de chamar as coisas pelo nome, e assim permite, no conforto do seu cinismo, sem se indispor com amigos, contatinhos ou financiadores, que as piores atrocidades aconteçam livremente, incólume à mais mínima condenação moral.

No contexto de nítido declínio da hegemonia global de Washington, depois dos fiascos no Afeganistão (o Talibã voltou), no Iraque (onde não havia “armas de destruição em massa”, e onde a intervenção do Ocidente criou condições para o estabelecimento do Estado Islâmico) e na Síria (a guerra civil ainda não acabou, e Assad se manteve no poder graças à Rússia), e com derrotas sucessivas na Ucrânia (pobre povo ucraniano, que caiu nas ilusões vendidas por um palhaço de TV chamado Zelensky), Israel é um território que os estadunidenses não estão dispostos a perder. E farão de tudo para não perder. Absolutamente tudo.

A extrema direita israelense sabe disso, e está aproveitando a janela de oportunidade geopolítica para acelerar a limpeza étnica e a expansão colonial sobre os territórios que ainda estão nas mãos dos palestinos — e também dos libaneses, sobretudo no sul do país, até o Rio Litani (os próximos serão os jordanianos, porque, mesmo com a subserviência do rei Abdullah II, nessa toada Israel não vai demorar para abocanhar a margem oriental do Rio Jordão).

O discurso oficial de Tel Aviv, como sempre, é que está agindo para criar zonas de segurança e acabar com grupos terroristas que ameaçam a existência de Israel. (Sabemos que são grupos de resistência armada à colonização israelense, que surgiram como resultado de décadas de esbulho, mas, enfim, é sempre mais fácil considerá-los muçulmanos terroristas maus.) A farsa das farsas é uma instituição chamada Forças de “Defesa” de Israel, termo empregado pela novilíngua israelense para se referir às suas forças armadas.

A mesma ladainha de sempre. O fato de que pouco a pouco colonos israelenses comecem a se instalar nas novas regiões ocupadas — como fizeram em Gaza até 2005 e fazem na Cisjordânia há décadas, roubando casas e cultivos de palestinos, e como querem voltar a fazer em Gaza quando a atual campanha arrefecer — passa despercebido. Enfim. Estamos cansados de ouvir e cansados de falar.

As ameaças de que o conflito escale para uma guerra regional também vêm sendo vocalizadas desde o primeiro dia. O xadrez geopolítico é complexo. Sim, mísseis e assassinatos aqui e acolá podem degringolar em desgraças inimagináveis, mas, a esta altura, convenhamos, só os mais influentes estrategistas militares de Washington, Londres, Teerã, Moscou e Pequim sabem onde tudo isso vai dar.

Nós, reles mortais, ficamos a assistir às mortes, às bombas, à destruição. Foi um ano de imagens ininterruptas de puro sofrimento humano diante de nossos olhos, na palma de nossas mãos, 24 horas por dia. Nada de novo até aqui, além de termos ficado sabendo que os sacos de gente morta no Líbano são pretos — em Gaza, são brancos.

 

A imagem que ilustra este post é uma pintura do artista visual palestino Sliman Mansour, intitulada “Rituals Under Occupation” (1987).

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