Paixão e revolução

Por Terra Johari
Prefácio a Cultura fora da lei

 

Em 2014, a New School, universidade localizada na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, promoveu uma residência com bell hooks, proporcionando o encontro da comunidade acadêmica com a célebre teórica feminista e cultural. Um dos eventos ocorridos naquele contexto foi uma conversa pública entre hooks e a atriz trans Laverne Cox, que ganhou notoriedade ao interpretar a personagem Sophia Burset na série Orange Is the New Black, transmitida originalmente pela Netflix entre 2013 e 2019.

Em determinado momento, Cox comentou a ideia de construir espaços seguros para o diálogo, fazendo referência ao livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, de bell hooks, lançado em 2004. A atriz foi, então, interpelada pela autora: “Sou crítica à noção de segurança no meu trabalho; o que eu quero é que as pessoas se sintam confortáveis com a circunstância do risco”. hooks foi além, questionando sobre como construir comunidades que possibilitem a existência de espaços para o risco — por exemplo, o risco de conhecer alguém fora dos seus próprios limites de raça, gênero e classe.

Assim como em vários outros livros e momentos de sua carreira, em Cultura fora da lei: representações de resistência bell hooks assume esse risco, que é inerente ao pensamento crítico radical que almeja expandir nossas possibilidades de existência. Dando continuidade a ideias formuladas em obras como Anseios: raça, gênero e políticas culturais (1990) e Olhares negros: raça e representação (1992), ambas lançadas no Brasil em 2019, a autora introduz este trabalho nos conduzindo à sala de estar de sua casa, à esfera íntima de sua vida. Constrói um texto em performance, uma contação de histórias, encenando um ambiente de familiaridade e também de curiosidade, no qual interage com duas crianças de sua vizinhança enquanto analisam, juntas, a pintura Os amantes, do artista estadunidense Jacob Lawrence. A cor vermelha chama atenção de início, uma cor que, conforme a própria autora, evoca a paixão, o desejo e a revolução.

Neste conjunto de ensaios e entrevistas, hooks mais uma vez assume seus posicionamentos de maneira apaixonada. Ela mesma questiona, na entrevista “O que a paixão tem a ver com isso?”, como abrir espaço para que mulheres autodeterminadas, apaixonadas — sobretudo apaixonadas por ideias —, possam simplesmente ser elas mesmas, no contexto do patriarcado supremacista branco capitalista imperialista. Ao mesmo tempo que produz teoria feminista e crítica cultural, a autora reivindica o direito de falar abertamente sobre sexo — sem ser reduzida a isso —, de estudar literatura medieval, de dialogar sobre relações não monogâmicas e cultivar práticas de espiritualidade. Recusando as expectativas limitantes que recaem sobre seu corpo, bell hooks assume um lugar de criatividade que desafia estereótipos de gênero, raça e classe. É um lugar de risco, de encruzilhada, no qual variadas referências confluem, produzindo uma obra que a própria autora qualifica como polifônica, de múltiplas vozes.

Como comenta na entrevista “Entrando no feminismo e indo além — só pelo prazer de fazer isso”, hooks desenvolve uma “teorização por meio da autobiografia ou da contação de histórias”, um projeto psicanalítico perpassado pela performance. Ao deixar emergir memórias pessoais na escrita, ela produz teoria ancorada em sua experiência corporificada. Muitas vezes os disparadores de seus textos são suas próprias vivências, e com isso ela aproxima a pessoa leitora da experiência concreta, em vez de se prender a formulações acadêmicas abstratas que dificultam discussões mais amplas.

hooks não suprime a conexão entre teoria e vida vivida, mostrando que toda produção intelectual é culturalmente situada e imbricada na história de quem a formula. Por isso, faz questão de posicionar seu ponto de vista de mulher negra com origens na classe trabalhadora do Sul dos Estados Unidos e nascida em meados do século XX. Reconhecer a subjetividade no trabalho acadêmico é outro risco assumido por bell hooks, já que, historicamente, o conhecimento científico hegemônico se construiu sobre um ideal inalcançável de objetividade.

Para a autora, os estudos culturais se apresentam como terreno fértil para a transgressão, para uma comunicação com públicos diversos, para além da academia, instigando o pensamento crítico sobre a produção cultural contemporânea. Não é à toa que ela nos introduz esta obra dialogando com duas crianças. A partir de uma conversa sobre a cor vermelha, elas vão compondo uma interpretação sobre o contexto da pintura Os amantes e os significados e sentimentos provocados por essa cor, mostrando que as crianças também produzem crítica cultural.

Da mesma forma, bell hooks percebe o engajamento dos estudantes em suas aulas quando exercitam essa crítica, especialmente ao analisar as representações que circulam na cultura popular contemporânea. Para a autora, eles entendem esse exercício como uma possibilidade de construir conhecimento aliando as teorias acadêmicas à vida cotidiana. Ao dialogar com pessoas de fora do universo acadêmico, hooks percebeu que o desejo de compartilhar visões e posicionamentos sobre as produções culturais de seu tempo estava presente nos mais diversos contextos. Assim, ela acredita que os estudos culturais e a prática da crítica cultural estão ao alcance de todas as pessoas, e exatamente por isso se tornam uma forma potente de produzir e compartilhar conhecimento, numa sociedade que desencoraja o pensamento crítico. […]

 

Trecho do prefácio à edição brasileira de Cultura fora da lei: representações de resistência

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