Por Rafael Domingos Oliveira
Publicado em Brasil de Fato
Nenhuma das palavras que se seguem interferirá na tragédia em curso, envolvendo o Estado de Israel e o grupo extremista Hamas. Este texto não salvará uma única vida sequer e, das que já foram perdidas, ele está longe de lhes fazer jus. Fiquem os leitores, portanto, cientes deste limite inevitável e fique o autor desonerado. O texto é apenas um apelo para nós, os outros, os que estamos aqui. Um apelo para que, durante a terrível exibição deste filme de gênero (dramático? trágico?), que assistimos pelas telas do nosso equipamento de preferência, não nos esqueçamos de pronunciar uma tal palavra que, no jogo disputado das palavras, tem sido violentamente esvaziada, desconsiderada, esgarçada ou simplesmente não-dita: Palestina. Ao falar da Palestina, estou me referindo ao território e, em decorrência, ao povo palestino, à comunidade de pessoas que possuem um vínculo de identidade e pertencimento com a terra. Desde 1948, com a oficialização do colonialismo israelense, a simples menção ao povo palestino — sua história, existência e demandas — tornou-se inconveniente. Uma campanha estatal e internacional de apagamento da memória segue paralela ao apartheid, à ausência de direitos, à violência e ao assassinato.
Leia a frase a seguir e reserve alguns segundos para pensar a respeito do efeito que ela terá em você: as vidas palestinas importam. Na sequência, pergunto a você: afirmei que os sequestros, assassinatos e torturas cometidos pelo Hamas são legítimos? Não. Afirmei que as vidas de civis israelenses não valem nada? Não. Afirmei que os judeus não deveriam existir ou que não possuem o direito, como povo, de se constituir num Estado soberano? Não. Afirmei que a violência é a única forma, ou ainda a mais adequada, para a libertação ou defesa de um povo? Tampouco. Sendo assim, renuncio à necessidade de me estender nessas mediações e as tomo como realizadas, confiando na sua capacidade de discernimento. Afirmei tão somente que as vidas palestinas importam. E essa afirmação deveria mudar absolutamente tudo a respeito da forma não apenas como enxergamos, mas como nos referimos ao que está ocorrendo a 10 mil quilômetros do nosso país. Na verdade, é necessário afirmar que as vidas palestinas importam porque, para um amplo espectro de pessoas, de sionistas aos progressistas liberais, passando pelos omissos, elas não têm importado muito até aqui.
Essa desimportância fica evidente quando, em meio ao assassinato em massa do povo palestino na Faixa de Gaza, a simples menção à palavra “palestinos” gera as seguintes reações: (a) lembrar que o Hamas é um “grupo terrorista”; (b) lembrar que civis israelenses foram brutalmente assassinados, enquanto outros permanecem reféns; (c) lembrar que o Estado de Israel, apesar de cometer alguns “erros”, é legítimo e, por isso, uma punição coletiva é aceitável. Há ainda aqueles que gastam seu tempo estruturando a tese da descolonização palestina e aqueles outros que, ainda pior, estruturam a tese de que não se trata de descolonização nenhuma, colocando neste combo os que fazem questão de defender sua judaicidade, embora sejam “solidários” com os palestinos. Mas a desimportância das vidas palestinas fica ainda mais evidente entre aqueles que, depois de lembrar dos itens (a), (b) e (c), afirmam que “há radicalismo dos dois lados”, e que a única saída para o conflito é a paz — e estes são inomináveis.
Desde que o exército de Israel iniciou o bombardeio à Faixa de Gaza até o momento em que escrevo estas palavras, cerca de 16 palestinos foram mortos por hora. Além disso, a cada 60 minutos, 52 palestinos foram feridos pelos bombardeios. Em ambos os casos, um elevado número de crianças, mulheres e idosos e, quase a totalidade, de civis. [Aqui certamente é a hora que as pessoas começam a citar os itens (a), (b) e (c).] Estes números se somam às dezenas de milhares de palestinos assassinados desde 1948, além dos milhões que, em duas ou três gerações, foram sistematicamente expropriados e jogados à miséria. Sem contar os que são atualmente vitimados pelo bloqueio de alimentos, água, energia elétrica, suprimentos médicos e ajuda humanitária. Dito de outra forma, por tratar-se de palestinos e de vidas palestinas, estes números de dois a sete dígitos significam muito pouco ou quase nada.
Quando estamos diante de um genocídio, há certos princípios que deveriam ser inegociáveis e até mesmo indiscutíveis. O genocídio é um tipo de fenômeno histórico que parece sempre escapar ao seu próprio tempo, pois geralmente é lamentado a posteriori. Daí o nosso comum espanto em relação ao Holocausto judeu ou ao genocídio em Ruanda: como foi possível ninguém os impedir de ocorrer? Foram 6 milhões de judeus e mais de 1 milhão de tutsis dizimados diante do mundo, porque, antes de tudo, as vidas judias e tutsis não importavam. Você consegue imaginar o significado de tergiversações sobre o sentimento de germanidade ou sobre o conceito de etnia enquanto essas milhões de vidas eram brutalmente encerradas?
Neste exato momento, o Estado de Israel dá mais um passo em seu plano de limpeza étnica, assassinando milhares de palestinos na Faixa de Gaza, diante dos olhos de todo o mundo. [Mais uma vez os grupos de pessoas lembrando dos itens (a), (b) e (c) devem falar aqui.] Intelectuais palestinos, como Edward Said, já demonstraram que uma das estratégias do genocídio é proibir que se fale sobre, para e com um povo. Desde 1948, com a oficialização do colonialismo israelense, a simples menção ao povo palestino – sua história, existência e demandas – tornou-se inconveniente. Uma campanha estatal e internacional de apagamento da memória segue paralela ao apartheid, à ausência de direitos, à violência e ao assassinato. Para constatar isso, basta perder alguns minutos observando a cobertura dos meios de comunicação em todo o mundo, a difusão de mentiras e omissões promovidas pela máquina de guerra israelense.
Do lado de cá, temos muito pouco a fazer para defender a vida dos milhões de palestinos alvos da ação terrorista de uma das maiores potências militares do planeta. Mas essa não é uma “guerra distante”, como alguns falam. Temos por aqui o nosso próprio genocídio em curso. A juventude negra tem sido sistematicamente exterminada no Brasil. Em alguns levantamentos, um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos. Essas vidas são ceifadas todos os dias porque, antes de tudo, elas não importam. Até certo ponto, significa pouco que sejam dois genocídios diferentes, se a forma como os encaramos possui a mesma raiz: algumas vidas importam e outras não.
Há uma vasta bibliografia a respeito da história do sionismo, da criação do Estado de Israel, da Nakba palestina, do antissemitismo, dos diferentes atores e interesses políticos das últimas sete décadas no chamado Oriente Médio. Tudo isso está disponível e de fácil acesso. Mas este texto não é sobre nenhum destes assuntos. Se você é uma pessoa que defende valores como liberdade, igualdade e justiça; se dedica sua vida à luta antirracista; se trabalha pelos direitos humanos; se luta contra a precarização e exploração do trabalho; se é, enfim, um oprimido ou se junta a eles na luta pela emancipação, você possui um compromisso ético e político com as vidas palestinas.
Desde os anos 1960, movimentos organizados em todo o mundo compõem a fileira de apoio ao povo palestino. E isso é fundamental, pois combater a máquina de mentiras e distorções feitas pelo colonialismo sionista é participar da construção de uma consciência global não apenas anticolonialista, mas, sobretudo, em favor da vida palestina. O antissemitismo deve ser duramente combatido onde quer que ele deite raízes. Mas isso não pode, em hipótese alguma, significar a expropriação, a violência e o assassinato de outro povo.
Nosso papel do lado de cá é afirmar incessantemente que isso não é uma guerra, mas sim um genocídio; que Israel é um Estado colonialista e promove um apartheid; que o sionismo é uma doutrina fascista e autoritária. Há um extermínio em curso nos territórios palestinos e uma guerra informacional em todo o mundo. Ao menos em relação à segunda temos algo a fazer. Mais do que apenas lamentar a morte de civis e pregar uma paz abstrata, devemos lembrar incessantemente que nada, absolutamente nada de bom pode vir de uma situação de colonização e apartheid. Não adianta lamentar as mortes sem questionar a origem do problema. E a origem do problema é a negação da existência e dos direitos do povo palestino. Não há paz sem liberdade. Não há paz onde há genocídio.
Fale incessantemente sobre e com o povo palestino. As vidas palestinas são as que têm importado menos até aqui. Pelo caráter evanescente da palavra “Palestina” nos meios de comunicação, na máquina de guerra israelense e no conturbado contexto das redes sociais, é justamente a palavra que deve ser repetida incessantemente. É o mínimo que podemos fazer em nome das vidas palestinas que estão sendo dizimadas.
Rafael Domingos Oliveira é historiador e educador, mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo e doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo. É autor de Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade (Elefante, 2022).