Para além dos limites da consciência: conversa com Felipe Catalani

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Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala

Hiroshima está em toda parte
, de Günther Anders, está sendo lançado aqui pela Elefante neste 2025
e é tema desta segunda temporada do nosso podcast, Especial Hiroshima, em cinco episódios. O convidado deste programa é Felipe Catalani, doutor em Filosofia pela USP e que fez a revisão técnica do livro.

Felipe Catalani escreveu também o posfácio do livro anterior de Anders aqui na Elefante, chamado Nós, filhos de Eichmann, e em seu doutorado em Filosofia defendeu a tese O inimigo do apocalipse: técnica, política e história em Günther Anders. É autor do livro Cada um por si e o Brasil contra todos, pela editora e-galáxia.

Na primeira parte do podcast, você ouve trechos do livro. A segunda, que reproduzimos aqui também em texto, é uma conversa com o convidado.

Felipe, para a gente começar, aproveitando que você fez a revisão técnica dessa edição aqui na Elefante e que você tem um conhecimento sobre a figura, queria te pedir para apresentar um pouco Günther Anders para o ouvinte e leitor que está o conhecendo agora, por esses textos relacionados a Hiroshima. Como é que ele vai parar nesses textos? Como ele vai demonstrar tanto interesse por esse evento da bomba atômica?

Olha, esse livro que sai agora, Hiroshima está em toda parte, contém as correspondências com o piloto, no caso o Claude Eatherly. Havia mais de um avião na missão da destruição de Hiroshima, e o Eatherly não era exatamente o piloto que estava com a bomba no avião, mas estava no avião na frente para dar o go ahead, para ver se o tempo estava limpo para o avião que vinha logo atrás soltar a bomba e destruir Hiroshima. E essa troca de cartas foi a publicação do Anders que mais fez sucesso na época, que mais foi traduzida e, curiosamente, para o português a gente estava de fora dessa recepção até agora. Mas ela colocou o Anders em um debate público em nível internacional, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa, mas também no Japão.

Mas o Anders vinha de um contexto, até ele chegar a se tornar um ativista militante antinuclear, em que tinha uma carreira, digamos assim, até antes da guerra, relativamente convencional, de um filósofo formado. Convencional é exagero, porque certamente não era convencional, formado no contexto de uma filosofia alemã transformada pela fenomenologia, pela antropologia filosófica e pela ontologia existencial, no caso heideggeriana, vindo de um contexto cultural e político efervescente da Alemanha entre guerras, vinculado a certas vanguardas literárias. Ele era muito próximo de muitos desses artistas, como o próprio Bertolt Brecht, também vinculado a uma esquerda radical, a um cenário do antifascismo alemão dos anos 1920-30, embora ele nunca tenha sido um marxista strito sensu. Não tem uma recepção da obra de Marx no Anders, ele tem o Marx do jovem Marx, o Marx da alienação.

Anders é um pensador de esquerda, mas muito heterodoxo, e essa trajetória acadêmica é interrompida pela ascensão do fascismo. Ele era judeu, de uma família judia de Berlim, embora ele tenha nascido na Breslávia, que atualmente é na Polônia, mas na época em que ele nasceu ainda fazia parte da Alemanha. Ele foge da Europa, passa por vários países, depois passa pela França e era primo de segundo grau do Walter Benjamin, com quem ele esteve durante o exílio na França também. Na imigração nos Estados Unidos, tentar se dedicar a atividades econômicas diversas, vai trabalhar em fábrica, trabalhar varrendo estúdio em Hollywood, e não consegue se estabelecer academicamente, embora ele tenha dado alguns cursos em Nova York, na New School, que recebia muitos desses intelectuais alemães refugiados. E a questão da bomba vai demorar um pouco: o primeiro grande ensaio dele é Sobre a bomba e as raízes de nossa cegueira do apocalipse, que é um grande ensaio, nos dois sentidos do termo, e que vai compor o primeiro grande livro dele, que é A obsolescência do homem, publicado em 1956. E nisso ele demora pelo menos uns 10 anos, entre o fato de Hiroshima e até refletir sobre isso, ir elaborando sobre o que significava esse acontecimento, e o que era realmente essa nova época histórica que significava a era nuclear.

Então ele mesmo fala que, quando acontece, ele diz que a imaginação “entrou em greve”, então ele fica um pouco sem reação. Essa elaboração não é imediata, o que é muito interessante para a gente pensar hoje. Quando a gente pensa em termos de reações intelectuais, parece que quando a gente vê no mundo editorial, tem por exemplo a pandemia, aí vem um monte de livro sobre pandemia, depois passa um ano, dois, ninguém nem mais lembra que teve um vírus, aí tem uma guerra, um monte de livro sobre aquela situação, e parece que as coisas não são refletidas de forma persistente, tem só uma reação quase jornalística. No caso do Anders, quando ele começa a publicar e pensar sobre isso, se hoje em dia a coisa de bomba atômica é uma coisa da era da Guerra Fria, isso já passou. Embora agora voltou e as pessoas lembraram que as bombas ainda existem, e que as ameaças ainda estão aí. Sobretudo desde a invasão russa na Ucrânia, e depois agora com Irã e Israel, enfim, existem vários conflitos com o potencial nuclear, tem o Paquistão e Índia etc.

De todo modo, já na época o Anders lidava com essa questão da minimização, da banalização da ameaça nuclear, então, por incrível que pareça, mesmo durante a Guerra Fria, era um desafio para ele lidar com isso, lidar com essa ideia generalizada de que está lá uma ameaça invisível. Mas não é uma questão tão importante, então ele tentava bater a cabeça um pouco para lidar com o que ora ele chama de cegueira, ora ele chama de indiferença. Enfim, todos esses mecanismos mentais e sociais significam, de alguma forma, a aceitação do apocalipse. Para dizer de uma forma bem direta, o apocalipse para ele, embora ele use esse termo religioso, ela tem um sentido bem terreno, que significa o potencial destrutivo de uma eventual guerra nuclear. E com essa questão, com essas cartas, que também do ponto de vista do gênero literário e filosófico são diferentes do ensaio filosófico, elas têm um outro tipo de acessibilidade, e talvez por estar lidando diretamente com uma figura histórica concreta, que no caso era o piloto, elas tiveram um impacto maior. Também porque o caso do piloto virou um caso emblemático da época, os dilemas morais da era nuclear.

E é muito interessante como ele se depara com a confiança do piloto para trocar essas cartas. Ele envia aquela primeira carta, não tem ideia se ela vai chegar, depois eles vão elaborando em cima das reações sobre culpa, sobre responsabilidade, sobre viver nessa era em que a gente se torna uma peça de uma engrenagem muito maior. Como você acha que esse contato tocou as ideias do Anders? A respeito primeiro desse choque, em que o livro mostra bem a dificuldade que ele está em tratar dessa capacidade do mundo se autodestruir, e também dessa sensibilidade, porque ele vai tratar o Eatherly como um amigo, é um texto muito doce, muito sensível diante da figura que ele está conversando.

Com certeza, e isso tem a ver com uma forma muito peculiar, embora ele não use essa palavra, mas a gente poderia chamar, de um humanismo do Anders. Porque no fundo, a grande preocupação dele, e isso está desde o Obsolescência – se a gente for pegar o primeiro volume o subtítulo já indica, Sobre a alma na época da segunda revolução industrial. Então ele está muito interessado naquilo que acontece justamente com a alma, ou seja, com o homem, com a ideia de humanidade. Ele não está interessado somente nos efeitos em si da destruição, da aniquilação técnica, mas nos seus efeitos retroativos sobre os seres humanos, sobre a alma, sobre o que resulta daí.

Para ele, a grande investigação do Anders também vai ser, digamos assim, os mecanismos que permitem a participação e o engajamento dos indivíduos nesse tipo de ação que não aparece mais como ação, e sim como trabalho. Ou seja, fazer uma guerra não era mais uma ação política, mas sim um mero trabalho. No caso, o próprio ato de destruir. Isso aparece de uma forma bem sintetizada nas teses sobre a era nuclear que ele escreve, que são essa ideia do agir que se camufla sobre a forma do trabalho e o trabalho que se camufla sobre a forma do mero desencadeamento de processos, o famoso apertar o botão. Que significa o que, fundamentalmente? Uma certa apatia moral, emocional e intelectual dos agentes nos processos dos quais eles fazem parte, cujos resultados, entretanto, são completamente destrutivos.

Ou seja, no fundo, ele está lidando com o que ele mesmo ia falar, uma alienação, quer dizer, vinculada à teoria marxiana da alienação. Isso já em outro patamar, porque tem a ver com o trabalho, e no caso, não por acaso, isso foi o primeiro livro que a gente publicou na Elefante, Nós, filhos de Eichmann. Era justamente esse problema, o fato do engajamento e da participação nos processos de assassinato de massa.

No caso do piloto, ele vai se interessar de uma forma profunda e real, porque no caso do piloto ele se arrepende. Então ele descobre o caso do piloto pelos jornais, porque ele começa a cometer crimes triviais, pequenos assaltos e roubos, para ser punido, porque ele tinha pesadelos, e era uma consciência conturbada pelo que ele tinha feito. Só que, em vez de ser punido, ele era transformado em herói nacional nos Estados Unidos. E ele vai encontrar no Anders um amigo, justamente porque o Anders reconhece a sua culpa, enquanto a psiquiatria militar americana (como ele era um ex-militar, ele estava num hospital psiquiátrico militar) reconhecia nele não uma culpa real, mas um mero guilt complex, ou seja, a sua culpa era, no fundo, uma neurose patológica, que não tinha a ver com uma culpa real, com algo que ele tinha de fato feito.

E o Anders vai falar que a sua culpa tem a ver com algo do qual você participou, de uma forma mediada. Por isso que você é um símbolo da nossa época, porque ele significa esse tornar-se culpado de forma inocente. Essa mistura sinistra entre culpa e inocência, que tem a ver com esses processos tecnológicos altamente mediados. Por ele se reconhecer na própria culpa, de forma retroativa, ele vai ver no Eatherly uma contra-figura do Eichmann, sendo Eichmann a figura da apatia, da ausência de imaginação e dessa irresponsabilidade absoluta, que permite crimes dessa magnitude. Então, ele veria no Eatherly quase que uma espécie de esperança. Ele vai falar não numa esperança no sentido trivial, mas um potencial de que existe algo que poderia gerar recusa e a não participação. E a não participação, nesse caso, dependeria justamente dessa culpa. Dessa culpa que significa falar, “bom, eu participei disso, eu fiz isso”. Só que, no caso do Anders, claro, ele já tinha feito isso.

Mas ele se interessa em transformar o Eatherly, e o Eatherly de fato se engaja nisso, em se transformar, o próprio piloto, num militante antinuclear. Porque esse é o fato mais curioso. Por isso que as coisas começam a ficar complexas para o lado do Eatherly, que está preso, basicamente, num hospital psiquiátrico militar. Porque a correspondência entre os dois começa a ser vista como material de agitação, e começa a ser controlada. E não deixam ele ser liberado pra fazer, e o Anders quer trazê-lo, faz ele escrever, fazer uma carta aos habitantes de Hiroshima. Embora tenha, depois disso, um jornalista na época que escreve um livro basicamente contra o Anders, falando que o Eatherly era um falsário, e que ele enganou o Anders, que não tinha nada de arrependido, que era um picareta. E o Anders ficou indignado, e falou, “não, eu conheci o Eatherly”. Ele foi até o México, conhecer ele pessoalmente, não é um falsário, mas enfim, só para dizer que também existe uma polêmica. Quando a gente lê as cartas é muito fascinante, mas existe toda uma biografia pra acusar o Anders de ser o criador de uma lenda do herói arrependido.

E um último ponto, Felipe, tentando trazer para o público de hoje, o que é ter esse livro em mãos em 2025, nesses 80 anos dos ataques? Até relacionando um pouco com sua última resposta, com outras vertentes do que a gente poderia pensar, como a barbárie, o horror, as dinâmicas da nossa sociedade contemporânea, os temas gerais da nossa vida hoje… Enfim, o que é conhecer esse olhar de Anders no mundo atual, nessa tentativa de compreender o que ele vai chamar de monstruosidade da bomba, e como também que os pensamentos do Anders tocam as suas reflexões sobre a nossa vida contemporânea?

Bom, o Anders me foi útil também para tentar pensar alguns aspectos dos fenômenos contemporâneos. Tanto no caso do piloto, quanto no caso do Eichmann, que é o outro livro dele e também uma carta (uma carta ao filho do Eichmann depois que o pai é condenado à morte e executado em Jerusalém), dá para tentar explicar fenômenos que a gente chamaria, de forma muito genérica, de fascismo. Porque muitas vezes a gente entende o fascismo, ou o fascista, como uma figura demoníaca, no sentido de altamente violento, agressivo, sem contenções civilizatórias em relação às suas próprias pulsões que visam maltratar o próximo etc. E a gente tende a vincular essa ideia do ódio.

E o Anders vai pensar um pouco um lado b, digamos assim, que tem muito a ver com o que a Hannah Arendt tinha falado ou pensado também no seu livro clássico sobre o Eichmann, que é o Eichmann em Jerusalém, com a famosa tese, que foi muito polêmica, da banalidade do mal. Considerar então uma outra “economia libidinal” desses agentes que se envolvem nos processos de assassinato em massa. Que tem a ver com uma certa… Talvez o termo certo seja indiferença. Indiferença elevada a um grau muito alto, com consequências mortais. E acho que essa investigação do Anders sobre a alma no capitalismo tardio e na sociedade industrial que ele estava lidando ali nos anos 1950, mas que valeria ainda hoje, é uma outra via para pensar um pouco essa subjetividade que adere e participa do horror, da barbárie em curso.

Claro que não dá para pegar uma coisa dessas e simplesmente aplicar: ah, vou explicar o bolsonarismo ou o trumpismo de uma forma imediata. Mas eu acho que o Anders precisaria entrar no nosso repertório, porque fornece um instrumental novo para pensar esses fenômenos contemporâneos de uma outra forma.

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