Pelo buraco da fechadura do golpe de 1964: entrevista a Joana Salém

 

Em 1964, Paulo Freire foi preso duas vezes pelo 4º Exército. Na primeira, em 16 de junho (aniversário de sua esposa Elza), foi levado de casa por dois soldados e permaneceu com paradeiro desconhecido por cerca de 24 horas. Oficiais do exército chegaram a negar que Freire estivesse detido, mesmo que sua família houvesse testemunhado a prisão. Depois admitiram que ele estava encarcerado na Companhia da Guarda do Recife. Em Pernambuco, como em outros estados, “havia muito pouco controle ou coordenação sobre as atividades repressivas dos vários coronéis e capitães do Exército que detinham funções de comando”, explicou o historiador Joseph Page. A arbitrariedade podia vir de qualquer lado.

Freire ficou preso por mais de 70 dias, entre junho e setembro de 1964, na 2ª Companhia da Guarda do Recife, no 14º Regimento de Infantaria do Recife e na Cadeia de Olinda. Amargou o começo da prisão numa cela solitária, com apenas 60 centímetros de largura e 1,7 metro de comprimento, com “paredes de cimento áspero, [que] não dava para encostar o corpo”, lembrou. Além dele, dezenas de educadores e alfabetizadores do Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife (UR, atual UFPE), dedicados à prática da sua pedagogia, foram presos políticos nos primeiros meses da ditadura pelo mesmo motivo: alfabetizar adultos.

Inquérito Paulo Freire: a ditadura interroga o educador, novo livro da Elefante, com organização da historiadora e professora da Universidade Federal do ABC Joana Salém Vasconcelos, traz o conteúdo na íntegra de dois interrogatórios a que o educador foi submetido nesse período, feitos pelo Coronel Hélio Ibiapina Lima, conhecido torturador da ditadura. Esses documentos fazem parte do Inquérito Policial Militar (IPM) criado para persegui-lo, investigá-lo e executar a “ação de inteligência” da repressão contra o filósofo. Em novembro de 1964, para escapar da repressão, Paulo Freire se exilou na Bolívia, o que durou poucos dias, porque logo o país também sofreu um golpe e o educador precisou ir para o Chile.

Além de narrar a resistência de Paulo Freire no contexto da ditadura, o novo livro traz para o público geral um dos principais mecanismos e táticas de repressão implementadas na época — que, na leitura da organizadora, ajuda a compreender não só o período histórico, mas conjecturar o golpismo e autoritarismo da atualidade. “É como se nós tivéssemos olhando pelo buraco da fechadura de uma sala fechada da ditadura”, compara Joana. Inquérito Paulo Freire se coloca, nesse sentido, como um convite à crítica da fonte, técnica utilizada por historiadores e que também é um requisito para a democracia. 

Em entrevista à Elefante, Joana comenta os processos de organização e as contribuições do livro para o debate público brasileiro, abordando o momento oportuno do lançamento da obra — que chega às livrarias no mês em que o Brasil descomemora os 60 anos do golpe de 1o. de abril de 1964. Inquérito Paulo Freire será lançado em São Paulo, no próximo 27 de abril, às 15h, na livraria Sentimento do Mundo, com debate entre Joana Salém Vasconcelos e o historiador Sérgio Haddad, que assina a orelha do livro. Aberto ao público e gratuito.

 

Você aponta que Inquérito Paulo Freire é um convite à crítica da fonte. Em que sentido? 

 

É uma forma como os historiadores leem documentos históricos, pensando na contextualização desses documentos. Apesar de ser uma leitura técnica, utilizada na academia, é necessária para todos os leitores, em todos os textos, históricos ou não. Todos os cidadãos e cidadãs precisam ler criticamente as informações que chegam até eles. Essa é a única forma de decifrá-las e de se posicionar criticamente na realidade. Parte da pedagogia freireana era justamente essa leitura do mundo. Inquérito Paulo Freire ajuda não só a pensar uma formação do historiador na leitura crítica da fonte, mas a formação de todas as pessoas sobre como contextualizar um texto.

No caso dos interrogatórios, é preciso atenção a elementos que não podem ser lidos de modo literal, já que o contexto histórico nos informa o contrário do que está escrito, sobretudo considerando que Paulo Freire estava sob ameaça. O que ele disse em alguns momentos era impraticável na experiência de vida, na filosofia e pedagogia que propunha, mas a partir do contexto histórico conseguimos compreender. Nós não estaríamos onde estamos hoje se a crítica da fonte fosse uma prática comum. Obviamente, é parte do momento histórico que nós vivemos, em que há um certo analfabetismo político. Por isso, mais do que nunca, é importante trabalhar um documento histórico de maneira ampla, porque o ofício do historiador na realidade é um procedimento democrático que deveria ser a base da nossa sociedade.

 

Se incentivar a crítica da fonte é um dos objetivos dessa obra, por que ler esses documentos no livro e não direto da fonte, já que são de acesso livre? 

 

Sim, os documentos estão disponíveis digitalmente no acervo do Instituto Paulo Freire, mas a diferença desse livro é que não é uma mera transcrição, tem notas explicativas em todos os pontos do documento que ajudam na contextualização e portanto a criticar esses documentos. Na apresentação, eu trabalho todo o período histórico em que ocorreu esse interrogatório, abordando também o percurso de Paulo Freire antes e depois do golpe de 1964, como foram seus dias durante a perseguição, a experiência de prisão, e reflito sobre sua atuação como coordenador do Programa Nacional de Alfabetização, entre outros pontos. Para complementar, trouxemos uma entrevista com o historiador Dimas Brasileiro Veras, professor do Instituto Federal de Pernambuco, que é um grande especialista na história de Paulo Freire, especialmente no trabalho que ele realizou nas bases camponesas e trabalhadoras do Nordeste. É um livro, portanto, que pode ser usado para leitura em geral, mas também em contextos educacionais, em sala de aula e rodas de conversa.

 

E o que se vê pelo buraco da fechadura?

 

É um agente da repressão contra um agente da luta em favor dos oprimidos. O interrogador é uma pessoa violenta, que tem um histórico de agressividade, e Paulo Freire tem apenas as suas palavras para se defender. A tensão no ar é inegável. O coronel Hélio Ibiapina foi conhecido por ser da linha dura da ditadura. Foi responsável, por exemplo, pelo Inquérito Policial Militar Rural, que destruiu as Ligas Camponesas no Nordeste, um processo extremamente violento de devastação dos movimentos camponeses na região. Paulo Freire estava a par disso. Estava ali, portanto, uma pessoa extremamente violenta, interrogando uma pessoa que tem no diálogo, no pensamento, na construção coletiva e na palavra suas principais armas. Também é bastante irônico que Paulo Freire, o grande mestre do diálogo, que desenvolveu a teoria da ação dialógica, encontrar-se em uma ação antidiológica, de opressão e silenciamento.

 

No último 31 de março, ou 1o. de abril, completou-se 60 anos do golpe. Quais paralelos são possíveis fazer com o momento atual, em que se vê movimentações golpistas, endossadas pelo bolsonarismo?

 

Inquérito Paulo Freire é um chamado a “descomemorar” os 60 anos do golpe.  A data redonda merece um momento de memória e reflexão sobre tudo que o Brasil passou, mas também chama atenção para a atualidade desse golpismo da extrema direita, que se fortaleceu nos últimos tempos. Atacar Paulo Freire é, inclusive, uma das atividades preferidas desse grupo político. Paradoxalmente, ataques com tamanha virulência tiveram e têm um efeito contrário do que desejava essa extrema direita. Paulo Freire tem crescido e se tornado mais interessante para as novas gerações, conforme a direita massifica a violência contra a sua memória.

Podemos dizer que o mesmo aconteceu na época da ditadura, porque, graças ao exílio, Paulo Freire passou a ser reconhecido internacionalmente. Ele já vinha se tornando cada vez mais popular dentro do Brasil, mas a perseguição do regime e a decisão que o educador tomou, de sair do país para escapar dessa perseguição — primeiro para Bolívia, depois para o Chile, para os Estados Unidos, para Genebra, de onde ele parte para viagens na África, no sul da Ásia, em diversos lugares do Sul global e também do Norte, sobretudo na Europa —, fizeram com que se tornasse um autor mundial. Até hoje, é o brasileiro mais citado nos currículos acadêmicos do mundo. Quando ele volta do exílio, curiosamente está muito maior do que quando saiu. Cada vez que se bate em Paulo Freire, ele se torna maior e mais importante.

Inquérito Paulo Freire, particularmente, nos ajuda a entender de maneira mais concreta o que foi a repressão, especificamente no Nordeste. Hélio Ibiapina estava muito preocupado com as redes de contato de Paulo Freire. Então, ele vai mapeando o que o filósofo pensava de cada um dos políticos e intelectuais com quem se relacionava. Ibiapina tenta mapear até o pensamento do educador sobre conceitos da pedagogia moderna, o que é muito inusitado, inclusive kafkiano. Um torturador que de repente começa a fazer perguntas sobre pedagogos e sobre teoria educacional, em um contexto que parece quase uma sala de aula autoritária, como se o Paulo Freire tivesse que dar uma resposta certa para o questionário.

Essa truculência e esse autoritarismo, representados pela figura do interrogador, existem até hoje no Brasil, e Paulo Freire mais uma vez nos ajuda a combater essa violência, pois os métodos da pedagogia freiriana são antídotos importantes contra a tirania estrutural. Talvez por isso ele seja tão perseguido, porque o seu método e a sua pedagogia incomodam profundamente aqueles que defendem a disciplina rígida, o autoritarismo e uma sociedade opressora. 

 

Esse não foi o primeiro livro que você organizou sobre Paulo Freire na Elefante. Esses livros se relacionam de alguma maneira? 

 

Paulo Freire e a educação popular: esperançar em tempos de barbárie, que eu organizei com a Maíra Mendes e a Daniela Mussi, foi lançado em 2023. É um livro coletivo, baseado em um grande curso que nós fizemos na ocasião do Centenário do Paulo Freire, junto com a Universidade Federal do ABC e a Rede Emancipa de Educação Popular. São mais de 60 autores, que tratam do percurso biográfico de Paulo Freire, de sua obra, de suas experiências pedagógicas, mas também dos territórios freirianos, da atualidade da pedagogia freireana nos movimentos populares e sobre a diversidade de experiências específicas da Rede Emancipa. É um livro que mostra a vivacidade do Paulo Freire e como são possíveis muitas composições de luta social com o uso das suas propostas pedagógicas e da ferramenta da educação popular como uma forma de disputa de consciências e também de construção de poder, de justiça e de luta por direitos. Enquanto Paulo Freire e a educação popular traz uma quantidade enorme de análises e reflexões sobre práticas freirianas, junto com a sua experiência pedagógica, Inquérito Paulo Freire documenta uma parte de sua vida, a partir da ideia de analisar uma fonte primária. Ilustra, portanto, não só a luta contra a opressão, ao mesmo tempo em que se é oprimido, como também a potência da sua pedagogia e da sua capacidade de resposta. 

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