Por que o corpo? Silvia Federici explica o foco de “Além da pele”
Lançado em novembro de 2023 — com direito a visita da filósofa italiana Silvia Federici ao Brasil —, o livro Além da pele:repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo compila artigos recentes da autora a respeito do corpo e da política corporal em seu trabalho teórico e em outras teorias feministas. Os dez textos que compõem este livro revelam como o capitalismo tem transformado o corpo humano em máquina de trabalho — e o corpo das mulheres em máquinas reprodutoras de mão de obra. Mas, por que o foco no corpo? No terceiro capítulo da obra, a autora responde essa pergunta. Leia o trecho do livro com exclusividade:
Existem diversos motivos para falarmos sobre o corpo, embora haja vasta literatura sobre o assunto. Primeiro, há a velha verdade de que “no início está o corpo”, com seus desejos, seus poderes, suas múltiplas formas de resistência à exploração. Como frequentemente é reconhecido, não há nenhuma mudança social, nenhuma inovação cultural ou política que não se expresse por meio do corpo, nenhuma prática econômica que não seja aplicada a ele (Turner, 1992). Em segundo lugar, o corpo está no centro tanto dos principais debates filosóficos de nosso tempo quanto de uma revolução cultural que, em alguns aspectos, dá continuidade ao projeto inaugurado pelos movimentos dos anos 1960 e 1970 que trouxeram a libertação dos instintos para a linha de frente do trabalho político. Mas a principal razão para falarmos do assunto é porque repensar de que modo o capitalismo transformou nosso corpo em força de trabalho nos ajuda a contextualizar a crise que o corpo está atravessando hoje e, simultaneamente, identificar uma busca por novos paradigmas antropológicos por trás de nossas patologias coletivas e individuais.
O meu referencial de análise difere tanto da metodologia marxista ortodoxa quanto das abordagens do corpo e dos regimes disciplinares propostas pelas teorias pós-estruturalistas e pós-modernas. Ao contrário das descrições marxistas ortodoxas da “formação do proletariado”, minha análise não se limita a mudanças no corpo produzidas pela organização do processo de trabalho. Como observou Marx, a força de trabalho não tem uma existência independente; ela “existe apenas como disposição do indivíduo vivo”, no corpo vivo (Marx, 1990, p. 274 [2017, p. 245]). Assim, não se pode forçar as pessoas a aceitar a disciplina do trabalho dependente apenas “expropriando os produtores de seus meios de subsistência” ou pela coação exercida por meio do chicote, da prisão e do laço. O capitalismo, desde a primeira fase de seu desenvolvimento até o presente, para forçar as pessoas a trabalhar a serviço dos outros, fosse o trabalho pago ou não, teve de reestruturar todo o processo de reprodução social, remodelando nossa relação não só com o trabalho mas também com nosso sentido de identidade, com o espaço e o tempo e com nossa vida social e sexual.
Não se pode conceber a produção de corpos voltados para o trabalho e de novos “regimes disciplinares”, portanto, puramente como uma mudança na organização do trabalho ou como um efeito de “práticas discursivas”, como propõem os teóricos pós-modernos. A produção de discurso” não é uma atividade autogeradora e autossubsistente; é parte fundamental do planejamento econômico e político e das resistências geradas por ele. De fato, poderíamos escrever uma história das disciplinas — das mudanças e inovações paradigmáticas — do ponto de vista das lutas que motivaram seu caminho.
Conceber nosso corpo como principalmente discursivo também ignora que o corpo humano tem poderes, necessidades, desejos que se desenvolveram no curso de um longo processo de coevolução com nosso ambiente natural e que não são facilmente suprimidos. Como escrevi em outro texto, essa estrutura de necessidades e desejos acumulados, que há milhares de anos vem sendo a condição prévia da nossa reprodução social, estabeleceu um limite poderoso para a exploração do trabalho — razão pela qual o capitalismo, desde sua fase inicial de desenvolvimento, tem lutado para domesticar nosso corpo, tornando-o um significante de tudo o que é material, corpóreo, finito e oposto à “razão”.
O corpo no capitalismo: do corpo mágico à máquina do corpo
Em Calibã e a bruxa (2004 [2023]), argumentei que a “batalha histórica” que o capitalismo travou contra o corpo surgiu a partir de uma nova perspectiva política que situou o trabalho como a principal fonte de acumulação, concebendo assim o corpo como a condição de existência da força de trabalho e principal elemento de resistência à sua utilização. Daí o surgimento da “biopolítica”, pensada, no entanto, não como “gestão genérica da vida”, mas como um processo que historicamente tem exigido constantes inovações sociais e tecnológicas e a destruição de todas as formas de vida não compatíveis com a organização capitalista do trabalho.
Identifiquei, nesse contexto, o ataque à magia nos séculos XVI e XVII e a emergência contemporânea da filosofia mecanicista como momentos fundamentais da produção de um novo conceito de corpo e do surgimento de uma nova colaboração entre a filosofia e o terror de Estado. Ambos contribuíram, embora com instrumentos diferentes e em registros diferentes, para produzir um novo paradigma conceitual e disciplinar, concebendo um corpo desprovido de poderes autônomos, fixo no espaço e no tempo, capaz de formas de comportamento uniformes, regulares e controláveis.
No século XVI, já estava em operação uma máquina disciplinar que buscava incessantemente a criação de um indivíduo apto para o trabalho abstrato, mas que precisava constantemente se remodelar de acordo com as mudanças na organização do trabalho, as formas dominantes de tecnologia e a resistência dos trabalhadores à subjugação.
Ao nos concentrarmos nessa resistência, podemos ver que, no século XVI,o modelo que inspirava a mecanização do corpo era o de uma máquina dirigida a partir do exterior, como a bomba-d’água ou a alavanca, enquanto, no século XVIII, o corpo já estava modelado de acordo com um tipo mais orgânico de máquina, com movimento próprio. Com a emergência do vitalismo e da teoria dos “instintos” (Barnes & Shapin, 1979, p. 34), temos uma nova concepção de corporeidade que permite um tipo diferente de disciplina, menos condicionada pelo chicote e mais dependente do funcionamento de dinamismos internos, possivelmente um sinal da crescente internalização, pela força de trabalho, das exigências disciplinares do processo laboral, provenientes da consolidação do trabalho assalariado.
Mas o principal salto da filosofia política do Iluminismo no arsenal de ferramentas necessárias para a transformação do corpo em força de trabalho foi a elaboração de uma justificativa científica para a disciplina laboral e para a eliminação daqueles que apresentavam comportamentos desviantes. Tomando o lugar do apelo à bruxaria e do culto ao diabo, no século XVIII a biologia e a fisiologia foram recrutadas para justificar as hierarquias raciais e de gênero e a criação de diferentes regimes disciplinares, de acordo com o desenvolvimento da divisão sexual e internacional do trabalho. Grande parte do projeto intelectual do Iluminismo girou em torno desse processo, seja pela invenção da raça e do sexo (Schiebinger, 2004, p. 143-83; Bernasconi, 2011), seja pela produção de novas teorias econômicas que concebiam o dinheiro como um estímulo para o trabalho em vez de um registro de riquezas passadas (Caffentzis, 2000). De fato, só podemos compreender a cultura e a política do Iluminismo — seus debates entre monogenistas e poligenistas, sua reconstrução da fisiologia masculina/feminina como incomensuravelmente diferente (Laqueur, 1990, p. 4-6 [2001, p. 16-8]), seus estudos craniológicos que “demonstravam cientificamente” a superioridade dos cérebros brancos e masculinos (Stocking Jr., 1988) — se conectarmos esses fenômenos à naturalização das diferentes formas de exploração, sobretudo aquelas excluídas dos parâmetros das relações salariais.
É tentador, nesse contexto, atribuir também a emergência de um tipo mais orgânico de mecanismo, visível no século XVIII no campo filosófico e científico, à crescente bifurcação da força de trabalho e à formação de um proletariado masculino branco, ainda não autocontrolado, mas que, como Peter Linebaugh demonstrou em The London Hanged[Os enforcados de Londres] (1992), passou a aceitar cada vez mais a disciplina do trabalho assalariado. Em outras palavras, é tentador imaginar que o desenvolvimento da teoria do magnetismo na biologia, da teoria dos instintos na filosofia e na economia política (por exemplo, o “instinto de comércio”), bem como o papel da eletricidade e da gravidade na física ou na filosofia natural — tudo isso pressupondo um modelo de corpo mais mental e auto-propulsor — refletem a crescente divisão do trabalho e, consequentemente, a crescente diferenciação na forma como os corpos foram transformados em força de trabalho. Essa é uma hipótese que precisa ser mais investigada. O que é certo é que, com o Iluminismo, dá-se um novo passo na assimilação do ser humano e da máquina, com visões reconstruídas da biologia humana fornecendo a base de novas concepções mecânicas do humano/natureza.