Descrição
Não sei o que nós estamos pensando. Estamos querendo apenas aquela comida que parece boa, querendo televisão, alguns têm carro. Mas nós não fomos deixados aqui para ter essas coisas. Elas foram deixadas para os jurua [brancos], essas coisas bonitas. E as divindades, que são dos nossos, têm tudo isso também. Mas os objetos deles não são perecíveis. Eles têm carro, têm moto, bicicleta, cavalo, todas essas coisas eles têm também. Tupã tem sanfona, violão, tem todas essas coisas, mas ela s não estragam nunca. As coisas dos brancos não são assim: eles podem ter tudo, mas amanhã ou depois de amanhã, já vemos no lixo, o carro perecível deles. É como se fosse como os nhanderu, mas não alcança eles. Porque os brancos morrem, todo ano morrem, cada noite, cada manhã, estão morrendo. Eles ficaram destinados a isso, depois que erraram para Nhanderu Tupã: maltrataram o filho dele e, assim, fizeram mal para si mesmos. Tupãra’y [Jesus] poderia ter vivido mais uns dias, mais um tempo na terra, mas morreu mais cedo, por culpa deles. E ainda falam pra nós: “Vocês têm que pedir perdão, têm que se fazer perdoar”, assim falou o crente. Por que eu iria falar com os Nhanderu kuery pedindo perdão se não fomos nós que matamos Tupãra’y? Vocês que mataram ele! Quando eles quiserem destruir com os jurua, vão destruir, vão destruir todos nós. Vão derrubar todos nós, por culpa deles. Por isso, nos assustamos. Em que ano vai acontecer? Tem muitas coisas pra gente contar para os jurua. Em um dia não dá pra contar tudo. Se sentar um dia, dois dias, também não conta tudo. A gente faz assim, manda gravar. É muito importante pra gente, mas já estamos atrasados nisso hoje.
— Vera Miri
Este livro é um refinado estudo da cosmologia guarani, produto de uma longa e densa colaboração entre o autor e os Guarani Mbya, em aldeias próximas e distantes da metrópole de São Paulo e de outras áreas do Sul e Sudeste do Brasil. Sua contribuição está na escuta atenta das reflexões e debates de jovens e velhos, em torno das maneiras de como foi e de como ainda é possível conviver com os estragos causados pelos modos de vida dos não índios. Particularmente interessantes são os ensinamentos sobre as cidades, seus objetos e tecnologias, pois, para os Guarani, os deuses moram em cidades. Nas plataformas celestes, as moradas das divindades são cidades, onde tudo é belo e reluzente, ou seja, onde tudo é imperecível: a energia elétrica não apaga, os carros e as motos não quebram, as coisas não se transformam em lixo. Nesta terra, os Guarani raramente têm acesso a essas mercadorias, que foram feitas para os brancos, “para enganá-los”, como nos
explicam os interlocutores de Daniel Calazans Pierri. Aqui, tudo estraga: as coisas são apenas imagens perecíveis dos modelos originários controlados pelas divindades. Os depoimentos dos Guarani fartamente apresentados no livro, e traduzidos com esmero, revelam uma poderosa crítica ao fetichismo das mercadorias.
— Dominique Tilkin Gallois, na orelha
SOBRE o AUTOR
Daniel Calazans Pierri é mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolveu pesquisas vinculado ao Centro de Estudos Ameríndios (CEstA). Atua como indigenista desde 2005 junto aos Guarani Mbya nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, com ênfase no acompanhamento de processos de regularização fundiária. É associado ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI).