Por Carla Soares
Publicado no Outra Cozinha
Durante muito tempo pra mim a resposta pra pergunta “O que é comida saudável?” me pareceu uma coisa muito rígida e muito certa. Os alimentos podiam ser bons ou ruins, e a alimentação saudável parecia que consistia em saber analisar esses alimentos e fazer as melhores escolhas. Mas ao longo do tempo fui entendendo como essa ideia de precisão e de valor bem dicotômico pra um alimento é um bocado problemática. Comida é muito mais cinza do que preto ou branco como essas certezas fazem parecer.
Avaliar se um alimento é bom é mais complexo do que olhar pra um parâmetro arbitrário qualquer como calorias, vitaminas ou gorduras. E é mais complexo também do que simplesmente juntar esses parâmetros e tentar chegar a uma ponderação. Essa lógica da gente se fixar numa dimensão muito recortada de um alimento, independente de qual parâmetro usado, é o que o pesquisador australiano Gyorgy Scrinis chama de Nutricionismo. A palavra que vem da junção de nutrição + reducionismo, que ele acredita que é característica do modo como pensamos sobre nutrição, alimentos e também sobre o corpo nos últimos 150 anos, tanto na pesquisa científica como nos espaços cotidianos. Essa lógica é o que ele explica e explora no livro que carrega esse mesmo título.
Eu cheguei até Scrinis a partir dos livros do escritor e jornalista Michael Pollan, que investiga e escreve sobre comida, indústria alimentar e os processos de transformação que a alimentação vem sofrendo especialmente a partir da década de 1960, quando acontece a introdução de insumos químicos e a mecanização do campo, com consequente êxodo urbano, que chamam de revolução verde. Em 2015 eu já tinha lido alguns dos títulos do Pollan, e me preparava pra escrever um projeto de doutorado sobre gordofobia médica e divulgação científica. Por conta disso, comecei a investigar alguns autores um pouco mais densos que subsidiavam algumas das discussões que o Pollan trazia com tanta leveza pros seus livros. Scrinis foi um deles.
Apesar do termo ter sido cunhado por Scrinis, foi o Pollan quem acabou popularizando essa discussão. Mas o livro de Scrinis é muito mais profundo. Curiosamente, ele traz uma série de ponderações sobre as coisas que Pollan escreve, o que é uma conversa interessante especialmente se você tiver alguma familiaridade com os livros do Pollan. É uma boa forma inclusive de construir um pensamento crítico sobre o assunto.
Pollan é um excelente contador de histórias. Os livros dele são suaves e é fácil se deixar levar pelo jeito carismático com que ele conta as coisas. Já Scrinis tem um jeito um bocado mais duro. Ele apresenta muitos dados e é muito consistente. O livro dele tem alguns momentos geniais em que ele cruza essa fronteira mais concreta dos dados e passa a trabalhar com o simbólico, mas em geral Nutricionismo é um livro de divulgação científica com um ar mais sério.
O livro de Scrinis tem uma estrutura de capítulos divididos no que ele chama de 3 grandes ondas, que dominaram a pesquisa no campo da nutrição – e consequentemente as conversas midiáticas e cotidianas. A primeira onda, que começa ainda no fim do século XIX, é a que ele chama do nutricionismo quantificador. Nela todo mundo parecia muito preocupado com os macronutrientes (que são os carboidratos, as proteínas e as gorduras), e também com as vitaminas presentes em cada alimento. E claro, tambem é dessa época a ideia de contagem de calorias, como se elas fossem coisas concretas que existissem numa comida e não uma medida estimada. O objetivo desse período era quantificar essas coisas necessárias pro funcionamento normal e crescimento do corpo, particularmente pra prevenir doenças por deficiência nutricional. A segunda fase, que começa em meados da década de 1960, é a do nutricionismo bom versus ruim. É quando começa a aparecer essa lógica de que talvez as gorduras com moderação até sejam boas. Porém existem gorduras boas e gorduras ruins, as que você tem que evitar de toda forma. As mensagens dietéticas que dominaram essa época são em geral muito negativas – é o que a gente chama de terrorismo nutricional. O aconselhamento nutricional deixou de se preocupar com prevenir deficiências pra tentar evitar doenças crônicas, em especial as cardíacas. Por fim, a partir da década de 90 começa a aparecer uma nova abordagem, o do nutricionismo funcional, que vem recheada de alegações quase milagrosas. Carregava (e ainda carrega) uma expectativa de que nutrientes isolados, superalimentos específicos ou determinados padrões alimentares pudessem melhorar ou otimizar nossa saúde corporal.
E claro, enquanto você vai lendo as características de cada uma dessas fases, é impossível não ir puxando pela memória uma diversidade de vivências e conselhos que você já leu, viu e ouviu, e que podem ser encaixados em cada uma dessas perspectivas. O nutricionismo, afinal, não produziu só esse conhecimento reducionista. Ele também produziu pessoas nutricêntricas. E por mais que possamos estar cientes desse reducionismo, é impossível não compreendermos em algum momento o próprio corpo e a experiência com a comida como um reflexo dessas abordagens.
Scrinis tenta mostrar como em cada uma dessas eras, enquanto se tentava entender nutrientes isolados, se perdeu de vista coisas grandes. Muitos dos conselhos baseados em nutrientes, na verdade, eram desenhados pra evitar de falar de alimentos específicos. Por exemplo, “coma menos gordura saturada”, no lugar de dizer “coma menos carne”, e isso tem razões políticas. O lobby da indústria da carne impediu que os conselhos se direcionassem ao alimento em si, o que seria muito mais complicado pra ela. E isso tem um impacto profundo sobre a forma como nós entendemos o que é comer bem.
O que o livro propõe é parar de olhar pra comida dessa maneira reducionista. E reducionista aqui é algo bem complexo. Não é só repetir o chavão de que a gente come comida e não nutriente, mas lembrar que a comida nunca vem isolada. Ela é parte de um conjunto de outras comidas que são consumidas, mas também de hábitos, e situações sociais em que esses alimentos aparecem.
Além disso, é preciso entender que os alimentos tem qualidades diferentes. E essa qualidade é possivelmente mais relevante do que o conteúdo microscópico dos seus nutrientes. Scrinis está chamando a atenção pros tipos de processamento a que cada alimento é submetido.
Na sua proposta, os alimentos são colocados em três grupos diferentes, que vão aumentando o nível de degradação, com perda da qualidade: os integrais, que são os alimentos frescos, conservados ou minimamente aprimorados por fermentação, germinação e cozimento; os refinados ou extraídos, que são os que passaram por algum tipo de transformação, como a farinha que é moída ou o açucar, que é isolado e secado; e os processados, que são os alimentos decompostos e reconstituídos.
Quando ele escreveu o livro em 2013, ainda não haviam criado esse termo ultraprocessado, que agora parece ser muito mais usual, especialmente pra gente aqui no Brasil. É o equivalente ao que ele chama de processado, mas que deixa mais evidente essa degradação sofrida. Na verdade quem criou esse termo foram pesquisadores da USP, e incorporaram essa classificação no Guia Alimentar para a População Brasileira, e o termo ganhou notoriedade e reconhecimento de pesquisadores mundo afora – incluindo Scrinis.
Numa entrevista que o autor deu pro podcast The Food Service, da BBC, ele fala sobre o termo ultraprocessados, e a pesquisadora da USP Maria Laura Louzada também aparece pra dizer da importância dessa classificação. É coisa pra gente se lembrar de como tem pesquisa importante sendo feita aqui no Brasil. E que claro, por ser a favor da saúde da população mas ir contra a indústria de alimentos, esse tipo de pesquisa também está entre as coisas que os governos como o do Bolsonaro, que não servem à sua população, têm interesse de destruir.
A proposta dessa classificação por qualidade e degradação, no entanto, pra gente que está tão acostumado com esse pensamento nutricêntrico, tem que ser lida com muito cuidado. É muito fácil, por exemplo, cair na lógica de demonizar alimentos que tenham algum tipo de processamento, nos mesmos moldes reducionistas que já estamos acostumados. O suco de frutas é um ótimo exemplo. É um alimento extraído e não integral, e tem todo um novo terrorismo nutricional que costuma estar associado a eles. Mas a lógica aqui é lembrar que não é um alimento só que importa. É o conjunto, as formas como esses alimentos vão ser consumidos, a frequência, as situações e os outros alimentos com os quais eles se combinam no nosso corpo. Ninguém precisa ter medo de suco de fruta, nem de comer de vez em quando alguma coisa ultraprocessada.
Num desses momentos geniais do livro em que Scrinis sai dos dados e escorrega pro simbólico, como tinha mencionado anteriormente, Scrinis conta como ele vê a margarina como um alimento hiperrealista. Hiper-real é um termo do filósofo Umberto Eco, que quer dizer qualquer coisa que tem um espaço de fantasia mais do que de realidade. O Eco usa isso especialmente pra falar de mídia. Mas ele dá o exemplo da Disneylandia – que é um espaço de verdade, que existe; mas de mentira ao mesmo tempo, porque é cheio de construções fantásticas que ultrapassam a coisa concreta e real. E a margarina é assim também: um alimento fabricado em tempos de guerra, um substituto mais barato pra um ingrediente nobre – a manteiga. Aos poucos ela vai recebendo um revestimento fantasioso estranho, que acaba por torná-la algo muito especial, capaz de não só prevenir mas até de reduzir o colesterol.
Gosto particularmente dessa ideia dele porque também me parece ter pitadas de fantasia quando tentam dizer que a gente precisa prestar atenção e ser responsável por tomar decisões melhores quanto ao que comemos. Gyorgy Scrinis, nessa mesma entrevista pro The Food Service que já mencionei, também acha que isso é um bocado fantasioso. A gente não deve esperar que a solução venha de indivíduos fazendo escolhas, e sim de regulação governamental sobre o que pode ou não ser feito e comercializado pela indústria. Num contexto em que as cargas de trabalho são excessivas, sem deixar tempo suficiente pra que a gente prepare refeições, e que esses alimentos ultraprocessados são mais baratos justamente porque são de qualidade inferior, chega a ser dolorido falar numa solução que passe por escolhas quando elas são tão limitadas.
A gente precisa entender o que acontece e Scrinis, Pollan e tantos outros escritores ajudam nessa tarefa. Mas a nossa briga não é por concientização alimentar. É por mais tempo pra nós mesmos, pra que mais coisas boas e adequadas às pessoas e não ao lucro de alguns sejam produzidas; é pelo bem viver. Pra que não só o alimento seja saudável, mas a vida que dividimos uns com os outros, incluindo as formas vegetais e outros animais viventes, também assim seja.