Resgate, memória e resistência na palavra-flecha de Jr. Bellé
Por Antonio Arruda
Publicado na revista O Odisseu
Crítica de Retorno ao ventre, de Jr. Bellé
Fui profundamente tocado pelo Retorno ao Ventre, de Jr. Bellé (Editora Elefante, 2024), livro bilíngue português-kaingang, traduzido por André Luís Caetano, professor e liderança da Terra Indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul, semifinalista do prêmio Jabuti 2025. Fui tocado pela flecha kaingang, “ardida na chama mansa de um fogo insone [ … )/a ponta da flecha kaingang/é tocha chamejando as trevas”. Fui tocado, porque “a lança kaingang é silêncio de sangue/lenho cru amarrado em ponta de osso/a lança kaingang tem o peso da noite”. Fui tocado pela palavra-flecha do “Retorno ao ventre” de Jr. Bellé, suas metáforas, suas metáforas, suas imagens, seus símbolos, pelo verbo que nasce, ele próprio, como ser no/do poema construído com engenhosidade pelo autor. Fui literalmente tocado pela força poética da obra, que surge de forma tão inovadora e necessária.
O encontro com tia pedrolina (assim mesmo, com letra minúscula, como todas deste poema lírico que é também épico e também histórico e também social e político, mas, acima de tudo, de uma verdade espiritual e mítica que apenas quem resgata parte de suas histórias, bebe no sonho, pesquisa as origens, vasculha documentos, descobre nomes, resgata nomes, renomeia nomes, somente quem mergulha com profundidade na memória coletiva de um povo ao qual pertence e através dele se resgata e se faz Poesia consegue gerar uma obra desta grandeza), marca o início da travessia do eu que, por se desconhecer, parte em busca de si: “mas tu nem conheceu tua bisa né/e eu disse nem vovó eu conheci/e minha tia disse nem tua mãe tu conheceu direito meu fio/tu só conhece a morte – que veio antes ou que veio cedo”.
É do leito do hospital da tia com Alzheimer que o eu-lírico resgata suas memórias. E, com elas, inicia seu processo de descoberta do apagamento: “conta-se mas ninguém ouve/houve mais ninguém conta/que ela era filha do sul/e por isso ninguém sabe e ninguém nunca saberá/se kaiowá nhandeva se yaró mbyá/se xokleng se charrua carijó ou xetá/ – nem uma linha uma vogal um registro”. Da ausência do nome e da entrada no sonho (“afundei num sonho de águas barrentas/e senti uma cobra grande roçando meus pés”), quando o eu acessa a palavra “nügme jãgti” e o autor descobre “pesquisando em um livro” [ … ) que essa é uma expressão da língua kaingang/e quer dizer o sonho dos mortos, instaura-se a construção do mito e da palavra, “ainda sem grafia sem imagem sem sentido”.
E, aqui, devo dizer que o Retorno ao ventre torna-se um livro único por permitir ao leitor a descoberta, guiado pelo autor o eu os kaingang, do sentido de uma história que é a dele, do seu povo, do Paraná, do Brasil, de todos nós: dada a cada um a devida medida de sua parte nesse enredo. E, a meu ver, a maior de todas elas – e este fato confere à obra uma beleza ímpar – é que:
“esta é a história da mãe da mãe da minha mãe/e como não sei seu nome não sei seu rosto/te chamarei de mynh/que é como se diz mãe em kainganglesta é a história de mynh/esta é a minha história”.
A partir do ensimesmamento poético, onírio e mítico, da permissão para adentrarmos suas entranhas de carne e lembrança, de ressignificação e resistência, Bellé vai revelando as camadas da sangrenta história. Com o poema “demarcação”, inicia o processo de escancaramento das ações do Estado, do homem branco, dos donos do dinheiro, dos donos das cercas e das armas, das leis e das canetas que assinam as leis. Busca nos arquivos, nos registros, nas atas. Situa o sítio: a linguagem dos relatórios invade o poema, crua, cruel, cartorial:
“desse modo josé ozorzo fez saber/aos ilustres cavalheiros presentes/que empreenderá comitiva às barras do tibagi/a fim de desbravar as florestas rumo aos toldos indígenas/e divisar as terras que lhes pertencem”
E com a documentação oficial reproduzida nas páginas do “ventre”, Bellé encerra a primeira parte do livro, denominada “encontro/kato tê”.
Na segunda parte, “memória”/”venh jykre” – onde surge a flecha kaingang com a qual se iniciou este texto, Bellé resgata “os primeiros antepassados”, retomando o tempo antes do tempo:
“enquanto roma se erguia no mediterrâneo/e a diáspora grega corria pela ásia menor [ … ]/enquanto o ‘i ching’ era escrito/e o ‘livro dos mortos era escrito’ [ .. .]lantes de alexandria constantinopla bagdá [ … ]lantes da primeira runa rasgar as pedras da escandinávia [ … ]lantes desses e enquanto aqueles/os primeiros homens e as primeiras mulheres/da linhagem de mynh/já caminhavam pelas matas de araucária do sul”.
É doloroso constatar que, se há a memória e o seu resgate, é porque existiu, antes e de forma tão violenta, o já citado “apagamento” – título do poema que o autor denuncia: “é sobre uma bamba pilha de livros/que se equilibra o peso imenso e delicado da história/ou a gravidade brutal do seu vazio”.
Bellé menciona as obras canônicas das ciências sociais, da historiografia, da geografia, do jornalismo, da literatura paraense, das crônicas das frentes pioneiras, os mapas, os atlas, os livros didáticos para registrar que: “até o início da terceira década do século XX/o interior do paraná era um absoluto/vazio de gente”. Mas, como atesta o eu-lírico no mesmo poema:
“o vazio estava especialmente cheio de mynh/estava cheio de nós”.
O autor, portanto, não se apaga, não se esvazia. Antes, e com coragem, acende e preenche aquilo que lhe parece – e é – essencial. Como quando traz à tona a parte branca europeia da família: “bugrinha era como minha nona descendente de italianos/chamava sua nora minha mãe descendente de indígenas/bugrinha era a carne de caça a presa/a escrava a matéria-prima do bugreiro,” e nos apresenta:
“meu bisavô foi um reputado bugreiro/e como sei – mas não direi – seu nomeie como sei – mas não direi – seu rosto/te chamarei de adolf schwein/que é como se diz porco assassino em alemão”.
Nesse ponto do livro, já havia escrito em vários trechos “que ódio”, “que raiva”, “inacreditável”, “como assim?”, ao mesmo tempo em que indicava “que lindo”, “que imagem”, “genial”, “que porrada!” – movido que fui por uma enxurrada de sentimentos e emoções, sempre tomado pela linguagem e pela maneira como o autor se vale dela para nos colocar ao seu lado no percurso de sua vida. Foi assim que, antes de seguir com ele para a terceira parte da obra, intitulada “partida”/”tig ja”, fui novamente tocado pela delicadeza melancólica do encontro com tia pedrolina:
“você está velha – tia – você é/a sabedoria do tempo a biografia da terra/a tradução das profecias/a biblioteca viva de um povo/e também a minha.”
Tia ao lado de quem o eu-lírico continua no primeiro poema de “tig ja”, chamado “o destino do dia”, e para quem expressa “tantas dúvidas quanto um homem branco pode ter”; para quem confessa que “deus/talvez exista”; de quem começa a se despedir: “tia o médico disse que você entrou no estágio 7/esse é só um termo técnico mas quer dizer desesperança”.
Desesperança assinada, escriturada, registrada em nome do “poderoso colonizador e bem relacionado aristocrata/décadas antes e com as bênçãos da corte [ … )/foi assim que a terra de muitos povos/se tornou propriedade de um homem só” – nos conta o autor no poema “a expedição”, para, em seguida, nos poemas “peste branca”, “propriedade do homem” e “expiação” denunciar as tantas outras atrocidades:
“a peste embalada em couro europeu e nutrida em sangue azul” (poema “kaga kupri”)
“e portanto e de acordo com a lei da nova república/todos os vivos e os mortos deveriam deixá-las imediatamente” (poema “fag ty eg tü pe”)
“tua bisa foi pegada no mato né minha tia disse [ … ]!agarraram nos dentes tua bisa no laço meu fio ela disse” (poema “to ki rir”).
E se, até esse instante do livro, o leitor não se sentiu afetado pela história de Bellé, de sua mãe, sua vó, sua bisa, dos kaingang, talvez o poema “herança” seja o derradeiro – e explícito – golpe:
“isto não é um poema é uma dor de parto [. .. ] /mynh foi sequestrada/à luz do dia no meio da noite/mynh foi estuprada/a violência foi o único sexo que conheceu [ .. .]listo não é um poema é o corpo de uma criança [ .. .lida violência de um homem branco/da resistência de uma mulher indígena/nasci”.
Tomo a liberdade (e outra palavra, que não liberdade, não faria sentido) de falar diretamente ao autor, confessando-lhe – e também a quem agora me lê: Bellé, sou um homem gay pardo macumbeiro filho de mãe branca e pai preto avó e avô paternos pretos bisavó paterna preta/indígena bisavô preto – talvez ele tenha vindo do antigo Daomé, mas não sei, nunca saberei, minha história também foi apagada, extirpada, Bellé -, e aqui preciso lhe agradecer pelo Retorno ao ventre, e à tia “pêdra”, a quem você disse “acho que falei com os mortos eu disse”, a quem você disse “não falei com os mortos: ouvi os mortos falarem”, a quem você disse do seu sonho com a bisa – “ela falava uma língua que não sei”.
“e de repente um trovão
e de repente no mesmo instante e na mesma duração claro que tu sabe né tu num é burro daí tia pêdra disse.”
Eu sei, Bellé. Eu também falei/falo com os mortos. Também ouço os lamentos dos pretos, das pretas, também louvo meu ori, os orixás, meus ancestrais. E, por louvá-los, por revivê-los em cada rito, em cada gesto, em cada reza, em cada palavra iorubá, encontro-me no kaingang que você nos oferta, após a colheita de tantos, após a colheita de si.
E assim chego à última parte do livro, nomeada “retorno”/ “vesikã kãti”. Nela, comovido, leio, no poema “mátria”: “toda pátria é corpo mesmo a terra é corpo e todo solo é terra/nenhum solo é macho toda terra é útero é ventre é mãe/o corpo da mãe”[ … )
a resposta para todas as perguntas
é uma mulher.”
E então me permito – novamente com liberdade -sentar-me ao seu lado e ouvi-lo dizer sobre o não saber da morte de mynh:
“não sei o fim da sua história pouco sei do seu começo/só sei dos seus filhos só sei dos seus netos e sei de mim/sei que hoje te abraço/como quem abraça a terra onde nasceu”.
Ao ouvi-lo dizer, Bellé, reescrevo parte da minha história. Recebo com ímpeto de revolta os versos:
“entre 1974 e 1975/a áfrica faz a desintrusão de Portugal/na unha no ebó na bala/ainda perfumada de cravos”.
E recebo como alento e esperança as palavras finais de sua grande obra, Poeta (com maiúscula):
“hoje você é mãe e também território
saí do teu ventre
ao teu ventre retorno”
Está dito. Está escrito. Está feito.
O fim de mynh fi nugror to vesikã kãti
é o poema mynh.









