Introdução de Pertencimento: uma cultura do lugar
Imagem: Berea, no Kentucky, por Michael Schuier

 

A ideia de lugar — ao qual pertencemos — é um assunto recorrente para muitos de nós. Queremos saber se é possível viver em paz em algum lugar do mundo. É possível tolerar a vida? Podemos adotar um éthos sustentável que não envolva apenas o devido cuidado com os recursos naturais mas também a criação de significado, de uma vida que valha a pena ser vivida? Uma canção de Tracy Chapman expressa esse anseio ao repetir: “Quero acordar e saber para onde estou indo”.1 Toda vez que viajo, fico atordoada ao ver que muitos estadunidenses se sentem perdidos, sem direção, como se não conseguissem enxergar para onde nossa jornada nos leva, como se não soubessem qual seu rumo. Muita gente não tem senso de lugar, mas, sim, um senso de crise, de desgraça iminente. Até mesmo os idosos, que viveram muitas e muitas décadas, dizem que hoje a vida é diferente, “estranha demais”, que o nosso mundo é de “excessos” — e que esses excessos criam uma personalidade arredia, uma angústia diária que molda os hábitos daqueles que estão perdidos, vagando por aí, procurando por algo.

Baba (Sarah Oldham), a mãe de minha mãe, diria que é um mundo de “muito querer e de muito desperdício”. Ela viveu de maneira simples, uma vida demarcada pelas estações: primavera para a esperança e o plantio; verão para observar tudo crescer, fazer caminhadas e sentar-se na varanda; outono para a colheita; inverno rigoroso para a quietude, o momento de costurar e descansar. Durante toda a minha infância até o primeiro ano em que morei longe da família, já adulta, Baba viveu em segurança em um sobrado de madeira — seu santuário na terra, seu lar. Ela não dirigia. Não é preciso dirigir se você quer que o seu lugar na terra seja um em que possa circular a pé. Havia outras pessoas como ela na minha infância, pessoas que preferiam caminhar sentindo os pés bem firmes no chão a estar atrás do volante de um automóvel. Na infância, éramos fascinados por pessoas que faziam caminhadas, pelos braços que balançavam ritmados e os passos largos que permitiam avançar rapidamente, percorrendo quilômetros em um só dia, mas sempre em terras conhecidas, sempre voltando à realidade habitual, andando com uma intenção definida: a vontade de manter raízes no solo familiar e a certeza de saber o seu lugar.

Assim como muitas pessoas da minha geração, quero encontrar meu lugar neste mundo, experimentar a sensação de retorno ao lar, a sensação de estar ligada a um local. Nessa procura por um lugar de pertencimento, fiz uma lista do que precisarei para fincar raízes. O primeiro item é: viver onde eu possa caminhar. Preciso ser capaz de andar até o trabalho, até uma loja, até um lugar onde eu possa me sentar, tomar um chá e socializar. Ao caminhar, consigo demarcar minha presença, como alguém que reivindica a terra, criando uma sensação de pertencimento, uma cultura do lugar. Também fiz uma lista de cidades em que eu talvez gostasse de morar: Seattle, San Francisco, Tucson, Charleston, Santa Fé (entre muitas outras). Viajei até esses locais à procura da sensação de pertencimento que pudesse transformar algum deles em meu lar. Ironicamente, meu estado de origem, o Kentucky, não estava nessa lista. E, à época, nunca passaria pela minha cabeça, nem mesmo remotamente, considerar voltar para onde nasci. Ainda assim, o Kentucky é onde termina minha jornada à procura de um lugar. E foi aqui que comecei a escrever estes ensaios.

Pertencimento: uma cultura do lugar registra meus pensamentos sobre questões de lugar e pertencimento. Misturando passado e presente, este livro traça uma jornada em círculos, na qual dou voltas de um lugar a outro até terminar onde comecei: no meu velho Kentucky. Para mim, a repetição é assustadora. Ela parece sugerir uma estática eterna. Lembra-me dos dias quentes de verão da infância, que passavam muito devagar, repetindo sempre os mesmos padrões de rotina. Existe muita repetição neste trabalho. Ele abrange toda a minha vida. E isso me faz lembrar de como os meus antepassados contavam as mesmas histórias diversas vezes. Ouvir a mesma história faz com que nunca nos esqueçamos dela. Então conto a minha história aqui seguidamente. Fatos e ideias se repetem, porque cada ensaio foi escrito de maneira isolada — em momentos distintos.

Muitos dos ensaios deste livro abordam principalmente questões de terra e propriedade. Ao refletir sobre a migração em massa dos negros dos Estados Unidos no início do século xix, quando noventa por cento da população da zona rural do Sul se deslocou para as cidades do Norte, escrevo sobre os agricultores negros, sobre as pessoas negras comprometidas com a produção local de alimentos tanto no passado quanto no presente, com o cultivo orgânico e com a busca por alento na natureza. Sem dúvida, seria impossível contemplar essas questões sem refletir sobre as políticas de raça e classe. Seria impossível escrever sobre o passado do Kentucky sem trazer à luz sua história sombria de escravidão e a influência das políticas de dominação racial sobre os negros nos dias de hoje. Ao refletir sobre o racismo que continua a se manifestar no contexto da propriedade, escrevo sobre segregação na política de habitação, sobre o zoneamento econômico racializado. E, embora estes ensaios comecem tendo o Kentucky como pano de fundo, eles se estendem às políticas de raça e classe nos Estados Unidos como um todo.

De modo semelhante, os textos que abordam o meio ambiente e as questões de sustentabilidade vão muito além do Kentucky, destacando as formas de luta para restaurar o equilíbrio do planeta ao mudar nossa relação com a natureza e seus recursos. Analiso as conexões entre a autorreparação negra e a ecologia. Ao abordar a questão da remoção do topo da montanha, escrevo sobre a necessidade de criar um contexto social ético no qual os problemas dos moradores da cordilheira dos Apalaches sejam do interesse de todos os cidadãos. Escrevo aqui sobre família, fazendo um álbum textual no qual evoco os familiares que me criaram, que nutriram meu espírito.

Ao voltar para casa, abordo questões de regionalismo, explorando minha compreensão do que significa ser uma escritora do Kentucky. Esta coletânea de ensaios é concluída com a conversa entre mim e Wendell Berry, visionário escritor, poeta, ensaísta e crítico cultural do Kentucky. Descobri sua obra durante o primeiro ano da faculdade, longe de nosso estado natal. O que mais me empolgou em Wendell foi seu comprometimento definitivo com a poesia — naquela época, o foco da minha escrita. Em seus ensaios, ele também explorava uma variedade imensa de questões fundamentalmente radicais e ecléticas. Seguir os passos de Wendell era, desde o começo, um caminho que me levaria de volta ao meu lugar de origem, ao Kentucky. O tema da primeira aula que ministrei no Berea College foi a discussão de Wendell a respeito das políticas de raça em seu livro The Hidden Wound [A ferida escondida]. Em nossa conversa, refletimos sobre esse trabalho, sobre a vida dele e a minha e sobre a forma como nossos caminhos se cruzaram, apesar das diferenças de idade e raça.

No trajeto em direção à fazenda de Wendell em Port Royal, Kentucky, passei por belos celeiros que armazenam tabaco recém-colhido. Com base nessas imagens fiz uma breve reflexão sobre a planta do tabaco, também publicada nesta coletânea.

Ao nomear os traços que considera centrais para o Kentucky em Appalachian Values [Os valores apalaches], Loyal Jones enfatiza a importância da família ao comentar que “nosso pensamento se organiza em torno de indivíduos, nos lembramos daqueles que nos são familiares e temos menos interesse em abstrações e pessoas das quais apenas ouvimos falar”. Naturalmente, muitos dos ensaios em Pertencimento começam com a família e os parentes mais próximos a mim, em especial os textos sobre criatividade, estética e processo imaginativo. Escrever sobre o passado faz com que corramos o risco de evocar uma nostalgia que se limita a olhar para trás com saudade e idealização. Localizar um espaço de autenticidade, de integridade, enquanto recordo o passado e me esforço para relacioná-lo a ideais e anseios do presente, tem sido crucial para o meu processo. Ao usar o passado como matéria-prima — o que me obriga a pensar de maneira crítica sobre meu lugar de origem, sobre ecologia e questões de sustentabilidade —, retorno diversas vezes às memórias familiares. Ao longo do processo de escrita destes ensaios, Rosa Bell, minha mãe, começou a perder a memória, encaminhando-se rapidamente para uma condição de esquecimento da qual não há mais volta. Testemunhar sua profunda e constante dor com essa perda me fez entender, mais uma vez, o quanto a memória é preciosa.

Nascemos e mantemos nossa existência no lugar da memória. Traçamos nossa vida por meio de tudo de que lembramos, do momento mais mundano ao mais majestoso. Conhecemos a nós mesmos por meio da arte e do ato de recordar. As memórias nos oferecem um mundo onde não há morte, onde somos sustentados pelos rituais de afeto e lembrança. Em Pertencimento: uma cultura do lugar, presto uma homenagem ao passado como um ponto de partida para que revisemos e renovemos nosso compromisso com o presente, com a criação de um mundo no qual todas as pessoas possam viver de forma plena e satisfatória, no qual todos tenham a sensação de pertencimento.

 

1 No original, “I want to wake up and know where I’m going”. A canção é “I’m ready”, do álbum New Beginning, de 1995. [n.e.]

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