Silvia Federici: ‘Não estamos emancipadas, estamos cansadas e em crise’

A lendária feminista, autora de Calibã e a bruxa, nos convida a lutar contra "um sistema que tem muita experiência em tornar invisível o sofrimento que produz"

Por Núria Navarro
Publicado em El Periódico Catalunya
Foto de Elvira Megías

 

Sua mãe, Dina, uma dona de casa muito ocupada da cidade de Parma, na Itália, costumava reclamar que ninguém valorizava seu trabalho. “Não é um trabalho de verdade”, esclareceu o marido. Muitos anos e leituras depois, na década de 1970, Silvia Federici reivindicou um salário para o trabalho doméstico, salário este que, globalmente, a Oxfam acabaria avaliando em 9,2 bilhões de euros por ano. Por décadas essa ideia pareceria loucura, mas a pandemia – como um golpe no estômago – mostrou a importância dos cuidados na vida cotidiana. A feminista ítalo-estadunidense define-o como “trabalho reprodutivo” e reivindica o espaço central que hoje é feroz e exclusivamente ocupado pela economia produtiva.

 

Foi preciso um vírus para te dar razão. 

[Risos] A pandemia tem mostrado de forma nítida que as mulheres vivem em uma situação de crise permanente. Elas têm que trabalhar fora de casa e não há serviços para substituir sua presença. Quando voltam do trabalho – geralmente precarizado –, o trabalho doméstico ainda está lá para ser feito. Sua semana de trabalho não é diferente da dos trabalhadores da revolução industrial. Elas não têm espaço para se recuperar ou se divertir, o que piora sua saúde mental. Com o fechamento das escolas, essa situação se tornou dramática.

Você descobriu alguma rachadura imprevista?

Desde a década de 1970 venho denunciando que o feminismo não trabalhou o suficiente a questão do cuidado. Mas descobri, sim, inclusive na minha própria carne: meu marido tem mal de Parkinson e eu assumi todo o trabalho reprodutivo, o que só prova que não existe uma política única que garanta os cuidados. Eles continuam sempre recaindo sobre as mulheres. Fala-se tanto da emancipação da mulher pelo trabalho fora de casa, mas é hora de dizer: “Não, não estamos emancipadas, estamos cansadas e em crise”.

Esse é um bom lema para o Oito de Março.

Outro poderia ser: “Queremos umas às outras vivas, livres e sem dívidas” [em referência à reivindicação levantada pelo movimento feminista na Argentina]. Nos Estados Unidos, a grande maioria das mulheres que trabalha fora de casa usa seu salário para poder solicitar um empréstimo, pois o que ganha não é suficiente para garantir sua autonomia. São empréstimos com juros de 50%, o que aumenta sua vulnerabilidade à violência doméstica. Não é algo novo, mas a pandemia criou uma situação explosiva. É urgente exigir uma sociedade que reconheça o valor da reprodução social, não só com palavras ou com a celebração artificial do Dia das Mães, mas com um verdadeiro suporte econômico.

É aí que o feminismo deve se concentrar agora?

O feminismo deve se mobilizar para a redistribuição da riqueza. Em dois níveis: em primeiro lugar, devemos perguntar ao sistema que decide nossas vidas – protetor de capital, das terras, dos recursos – para onde vai o que produzimos; e, sem segundo lugar, devemos nos organizar de baixo para cima para termos mais poder de barganha com o Estado.

Como?

Criando formas coletivas de tomada de decisão. Imagine uma assembleia ampla e robusta da comunidade discutindo cuidados: o que precisamos, como mudar a política institucional de saúde e serviços. Na academia, já temos milhares de artigos sobre o assunto. Você tem que envolver a todos.

Anteriormente, você disse que não existe tempo para descansar ou se divertir.

Eu sei, por isso digo que não se pode fazer uma política forte de assistência sem lutar para reduzir o tempo de trabalho assalariado. Quando você trabalha durante vinte horas por dia em um escritório, não há tempo para assembleias comunitárias. Mas se não fizermos isso, o que podemos fazer? Como diz Verónica Gago em seu livro A potência feminista, o feminismo é uma perspectiva para mudar tudo. Seu interesse não é setorial. Não se trata de melhorar as condições de vida das mulheres. É uma perspectiva para reimaginar a organização da produção e da reprodução social. Hoje produzimos coisas que nos fazem mal, que nos matam, ao mesmo tempo que negligenciamos os vulneráveis ​​e a nossa saúde. Precisamos ter ambição em nossa visão social. A missão histórica do feminismo sempre foi a igualdade.

Você descobriu que o capitalismo não existiria sem a caça às bruxas, que disciplinava as mulheres, prendendo-as em casa. Ainda existe uma caça às bruxas?

Existe em muitos países, no sentido literal. Mas o que permanece oculto é a conexão entre a violência contra as mulheres nos espaços urbanos e a política expansionista do neoliberalismo, o extrativismo, a privatização da terra, o ataque aos regimes comunitários e os despejos. É por isso que as lutas devem ser conectadas. O feminismo é muito importante porque está localizado na experiência da reprodução social, mas deve se conectar com os movimentos ambientalistas, contra a guerra, contra a dívida, contra o racismo. Esta conexão deve ser trazida à superfície.

Há mulheres que acreditam ter razoavelmente quebrado o “teto de vidro”.

Percebemos que algumas mulheres conquistaram empregos mais qualificados e talvez mais criativos, e que são frequentemente empregos que lhes dão poder sobre as outras pessoas. Se são empregos que nos colocam ao lado do poder institucional, temos que politizá-los.

Sua liberdade depende da escravidão de outrem, você quer dizer.

Exatamente. Eu diria: “Companheiras, não há nada mais criativo em nossas vidas do que construir uma sociedade em que nossa felicidade não seja sustentada pelo sofrimento dos outros”.

Garotas podem não ser mais capazes de pensar em termos de felicidade.

As meninas acreditam que têm um mundo rígido diante delas ou que é tarde demais. E eu digo a elas: “Não, temos que continuar lutando, sem garantias de que venceremos, porque a alternativa é se inscrever em um sistema que cria destruição e morte, um sistema que tem muita experiência em criar divisão e causar o sofrimento que não é visível”. Só criando laços de afeto, de confiança, podemos superar esse individualismo que nos mata e nos isola.

Uma aliança, baseada no #MeToo, fala sobre a violência contra os corpos. Isso te alivia?

Muito, mas é importante expandir. Nos Estados Unidos, por exemplo, foi publicada uma lei que dá personalidade jurídica ao feto, o que significa que tudo que uma mulher grávida faz – desde comprar um medicamento até sofrer um acidente de carro – pode se tornar um crime. Uma loucura! Em vários estados, eles criaram sistemas de controle de saúde pública: os profissionais de saúde podem denunciar à polícia se virem algo suspeito. Assim, surgiu o Movimento pela Justiça Reprodutiva, pensando nos afrodescendentes e migrantes. Quando as feministas brancas denunciam que o aborto é o controle sobre seus corpos, elas dizem: “Não companheiras, essa é apenas uma das partes do controle.”

Você ainda tem alguma incógnita para resolver?

Claro! É agora que começo a ver com clareza que o capitalismo possui mecanismos que se repetem ao longo dos séculos: ele resolve cada crise com a desapropriação e a expulsão das pessoas de seu lugar. Diante disso, devemos nos opor à contínua criação de antagonismos entre os explorados.

Ser mulher tem sido uma experiência alegre para você?

Aos dezesseis ou dezessete anos de idade, perguntei-me: “Por que não nasci homem?”. Mas com quase oitenta anos estou muito feliz. Ser mulher me deu um olhar sobre a vida mais inclusivo e me permitiu entender o que é o trabalho doméstico, o que significa saúde… No começo do meu feminismo, eu pedia o salário do trabalho doméstico quase como uma provocação, mas logo eu compreendi a sua verdadeira importância.

Sua mãe estava certa.

Eu aprendi muito com a experiência dela… Ela me disse: “Você sempre fala dos trabalhadores, mas a sua tia, que é uma camponesa que se levanta às quatro horas da manhã para dar de comer aos bichos e criar quatro filhos, ela é ou não é uma trabalhadora?”. E ela era, sim.

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