Silvia Federici: “O feminismo deveria parar de perseguir o trabalho sexual e se concentrar em dizer ‘não’ à guerra”

Por María Martínez Collado e Candela Barro
Publicado em Público

 

Silvia Federici (1942) é uma das teóricas e ativistas feministas mais influentes do mundo. Nascida na Itália e com uma notória carreira acadêmica nos Estados Unidos, tem sido uma das vozes mais relevantes na análise crítica do capitalismo e, em particular, de seu impacto nas vidas das mulheres.

Seu trabalho tem sido fundamental para entender as raízes históricas da subordinação de gênero, promovendo uma perspectiva que marcou um antes e depois para o movimento feminista. Uma de suas obras mais importantes é Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, na qual oferece uma profunda análise sobre a estreita relação entre a acumulação primitiva e a opressão e exploração das mulheres. Ao longo da carreira, Federici também abordou temas como a globalização, a militarização e as lutas pela terra, sempre com um enfoque que coloca os setores mais vulneráveis da sociedade no centro do debate político.

Além de seu trabalho acadêmico, Federici tem sido uma incansável ativista e participou de movimentos sociais ao redor do mundo. Nos anos 1970, foi cofundadora da Campanha pelo Salário para o Trabalho Doméstico, com o objetivo de destacar a importância do trabalho reprodutivo não remunerado na economia de mercado.

 

Em Calibã e a bruxa, você aborda a caça às bruxas e a perseguição às mulheres. Você vê alguma conexão entre esses eventos históricos e a atual criminalização da prostituição? As prostitutas de hoje são as novas bruxas ou sempre foram? E o resto das mulheres?

 

É uma pergunta muito importante porque, de fato, há uma conexão profunda. O que se pensou historicamente, resumindo em um slogan, seria: De joven, puta. De mayor, bruja [Puta quando jovem, bruxa na velhice]. Muitas das acusadas de bruxaria eram mulheres mais velhas que haviam tido um passado de sexualidade não normativa: ou frequentavam muitos amantes, ou vendiam sexo ou mantinham aventuras fora do casamento. Essa conexão entre a perseguição das mulheres e a sexualidade subversiva é uma parte muito importante da atual criminalização das prostitutas.

Elas são tachadas de mulheres dominadas pela paixão, possuídas pelo demônio. Em Calibã e a bruxa, tento demonstrar como isso não passa de uma nova forma de disciplinamento do corpo das mulheres e, em geral, dos corpos que devem ser preparados para a exploração. O disciplinamento da sexualidade serve à nova classe capitalista para que a procriação seja produtiva, como ocorre com o casamento. A partir desse momento, o prazer pelo prazer é considerado algo anômalo que deve ser combatido. O perigo passa a ser a mulher que, por meio da “arte da sedução”, pode romper as relações de classe. Como demonstra a história, muitas mulheres acusadas de bruxaria também eram pobres que tinham amantes de uma classe superior.

Por sua vez, a repressão da sexualidade tem sido uma ferramenta para dividir as mulheres entre a “boa” e a “má”, a “esposa” e a “puta”. Trata-se da tentativa de criminalizar toda forma de sexualidade não produtiva, não orientada à procriação ou ao prazer dos homens trabalhadores e assalariados no contexto do casamento. A condição das mulheres na história do capitalismo é uma condição de grande empobrecimento. A mulher também foi excluída dos trabalhos assalariados que poderiam lhes dar mais ganhos. Sem fazer essa análise, não se pode entender a preponderância da prostituição, porque é aí, a partir do primeiro período da sociedade capitalista, que se observa uma grande massificação do trabalho sexual. Há uma continuidade histórica: o trabalho sexual, como todos os trabalhos de exploração, nasce das dificuldades materiais que as mulheres encontram.

 

Qual é a sua opinião sobre o debate em torno da prostituição que está ocorrendo atualmente no contexto espanhol, reacendido pela proposta de lei abolicionista do PSOE?

 

Como pode imaginar, sou contrária a essa lei. Acredito que a norma criminaliza práticas e formas de trabalho que, como disse anteriormente, são uma resposta das mulheres a uma sociedade que não lhes fornece os recursos necessários para viver. Parece-me uma nova forma de violência contra as mulheres. Primeiro, diz-se que o trabalho sexual é violento, quando, na realidade, a violência vem das instituições que o criminalizam. A penalização é extremamente hipócrita porque ignora as condições materiais [das mulheres que se prostituem]: privam as mulheres da possibilidade de viver com recursos suficientes e, depois, as criminalizam quando respondem com o trabalho sexual.

Em segundo lugar, é necessário dizer que o trabalho sexual não é o trabalho mais degradante. Por que não falamos sobre o quão degradante é o trabalho das proprietárias ou das mulheres que trabalham na indústria de armas? Vivemos em uma sociedade de mercado e qualquer pessoa que trabalha por um salário comercializa parte de sua capacidade: comercializam-se a mente, as emoções, a imaginação artística… É menos degradante vender sua mente? Ou publicar notícias falsas para não ser demitido? Parece-me que as companheiras feministas que se dizem abolicionistas se cegam diante dessa situação. Elas lutam contra a violência patriarcal dos homens, mas não lutam contra a violência patriarcal das instituições, que é muito pior.

Por outro lado, agora as mulheres no trabalho sexual estão organizadas. Trabalham em cooperativas, vivem junto a outras mulheres, organizando-se, são capazes de impor mais suas condições. Não são mulheres completamente indefesas; há uma grande história de organização. O medo de serem consideradas “putas” tem sido um forte elemento de disciplinamento das mulheres. Por isso, não podem ser as feministas a julgar a nós mesmas sobre o que devemos ou não fazer, e muito menos convocar a justiça e a polícia — a violência institucional — contra outras mulheres.

 

Por que você acha que, ao legislar sobre prostituição, se ignora um dos elementos fundamentais: as leis de imigração e o fato de que a maioria das mulheres que a exercem são migrantes?

 

São as migrantes que enfrentam a forma de exercer mais complicada, principalmente nas ruas, onde sofrem o racismo dos homens, das autoridades e da polícia. Muitas delas são mulheres sem documentos que não têm alternativas e que, como se pôde verificar em vários países, começam com o trabalho doméstico. Migram e trabalham na casa de outras pessoas, onde sofrem racismo, opressão e até mesmo violência sexual por um dinheiro mínimo. Então, decidem começar a exercer a prostituição para evitar essa violência — e ganhar mais. Nos Estados Unidos, há casas onde as empregadas domésticas não podem nem sequer dormir com a porta fechada, não as deixam. Nessas condições, deixar o trabalho doméstico e passar para o trabalho sexual é uma forma de se libertar, de reconquistar uma parte do seu tempo e de tentar ter acesso a mais recursos. A visão abolicionista se esquece do que é não ter recursos: é uma questão de classe.

 

Você acredita que o debate sobre a divisão do movimento feminista em determinados momentos fomenta as guerras culturais que dão força à extrema direita?

 

Se observarmos a história do movimento feminista, podemos ver que, no início, o movimento feminista apoiava o movimento das trabalhadoras sexuais. Claro que sempre houve mulheres que viam a prostituição com maus olhos, mas não existia um movimento abolicionista como tal. Quando, em junho de 1975, 150 mulheres trabalhadoras sexuais ocuparam a igreja de Saint-Nizier em Lyon (França) para exigir o fim da violência policial e resistiram até serem duramente reprimidas, as feministas as apoiaram massivamente. Então, acontecia como agora: queriam condená-las à escuridão, não as deixavam exercer a prostituição em hotéis e eram penalizadas. Foi um evento histórico. Em poucas semanas, surgiu um movimento de apoio às trabalhadoras sexuais em várias partes da Europa que pôs fim à sua invisibilidade. Elas sabiam que todas as multas e a criminalização da prostituição representavam um perigo para sua integridade. Mas a situação mudou um pouco desde então.

O abolicionismo feminista se expandiu nos anos 1980, sobretudo após as conferências mundiais sobre a mulher das Nações Unidas. Essa visão do trabalho sexual e das trabalhadoras sexuais como algo violento a ser eliminado é consequência de uma tentativa institucional de se apropriar e liderar o feminismo. A partir de então, começa-se a identificar o trabalho sexual com o tráfico, e é importante distinguir ambos os fenômenos. Sim, existe tráfico, mas nem todo exercício da prostituição é mediado pelo tráfico. As trabalhadoras sexuais são as mais interessadas em que a prostituição não seja violenta. Por isso se organizam para reivindicar mais direitos. Identificar tudo como tráfico implica um enorme desconhecimento sobre as raízes materiais que levam uma mulher, na maioria das vezes, a se prostituir; e essa é uma perspectiva bastante reacionária.

A direita e a extrema direita sempre quiseram impor essa lógica da “boa” e da “má” sexualidade, sem pensar no bem-estar das mulheres. O fascismo premiava até mesmo aquelas mulheres que eram mais produtivas em termos familiares. A razão de ser do movimento feminista — a análise crítica sobre a exploração de nossos corpos e como o capitalismo se aproveita dessa exploração — é justamente o contrário. Essa nova onda abolicionista encerra uma grande contradição com esse tipo de denúncia que enfocava a autonomia e a libertação das mulheres. O feminismo não pode celebrar a criminalização, o castigo ou o encarceramento de nenhuma mulher, tampouco das trabalhadoras sexuais; não pode adotar esse discurso que nos julga e nos classifica de acordo com o que decidimos fazer com nossos corpos.

 

Você falou extensivamente sobre o trabalho reprodutivo e sua importância na economia. Como você acredita que a valorização e remuneração do trabalho reprodutivo poderiam transformar a sociedade atual e, por consequência, a vida das trabalhadoras sexuais? Veremos algum dia esse reconhecimento?

 

É fundamental. Reconhecer e remunerar o trabalho reprodutivo daria às mulheres um poder que até agora não temos: o poder de decidir e fazer isso com liberdade econômica, que é o que leva muitas a ter, por exemplo, que se casar ou aceitar um trabalho precário e mal pago para poder empreender um projeto de vida. Atualmente, muitas mulheres suportam uma série de situações de extrema violência e submissão porque a alternativa é um empobrecimento brutal. Seria uma forma de tirar definitivamente a vida do mercado e construir uma sociedade que não estivesse baseada na exploração do trabalho físico, mental ou emocional do trabalho humano.

É muito importante ter em mente que apoiar a luta das trabalhadoras sexuais não significa apoiar o trabalho sexual, assim como apoiar a luta dos mineiros não significa apoiar a mineração, nem aplaudir os funcionários de escritório implica defender o trabalho de escritório. No entanto, só essas lutas nos permitem reorganizar nossa vida e ter mais poder social em um contexto capitalista. Lembro isso porque sinto que muitas vezes se tenta manipular os argumentos das pessoas que defendem os direitos das trabalhadoras sexuais. A pior derrota é a luta que não foi feita.

 

Em um contexto de escalada bélica como o que estamos vivendo, como isso afeta as lutas feministas e, em particular, as mulheres nas zonas de conflito?

 

Eu estou com o coração partido com o que está acontecendo na Palestina e em tantas outras partes do mundo, é terrível. Se formos coerentes com o que se diz a cada 8 de março, quando expressamos nossa solidariedade com as mulheres de todo o mundo, devemos rejeitar e nos opor a qualquer tipo de guerra, devemos nos opor ao aumento dos gastos militares e à ampliação dos exércitos. Vivemos em cidades cada vez mais militarizadas, mais securitárias e punitivistas. O movimento feminista deveria deixar de perseguir as mulheres que exercem o trabalho sexual e se concentrar em gerar um movimento que diga claramente “não à guerra”. Não há nada mais violento que uma guerra.

No entanto, vemos como muitas mulheres se juntam aos exércitos argumentando que o fazem em condições de igualdade, ou que vão à linha de frente porque também têm direito… Eu me pergunto: direito ou igualdade de quê, de matar? Não queremos que as mulheres comecem a participar dessas dinâmicas violentas, queremos que o feminismo proponha outra forma de organizar as relações internacionais, diplomáticas. O objetivo do feminismo como movimento transversal deve ser deixar para trás a lógica imperialista, colonialista e predatória que gera tanto sofrimento. Eu digo que o que temos que fazer é lutar contra esse circuito de morte e autodestruição. Me causa grande dor pensar que, a cada dia, milhares de mulheres e crianças morrem, e que isso não está sendo o foco principal do feminismo.

 

O aborto tem estado no centro do debate nas próximas eleições europeias. Colocar obstáculos para o aborto ou para a maternidade lésbica foram políticas bases do governo de Giorgia Meloni na Itália, por exemplo. Você se preocupa com o retrocesso que pode haver na Europa na questão dos direitos reprodutivos se a direita e a extrema direita alcançarem bons resultados?

 

Evidentemente, vimos isso nos Estados Unidos, onde está ocorrendo uma nova “caça às bruxas”. Atualmente, há mulheres que não podem abortar mesmo quando o feto está morrendo, apesar de haver risco de infecções fatais. Isso é uma barbaridade. Nesse ponto, é importante ver que há uma continuidade entre a política da direita e a política dos social-democratas. A direita parece extrema, mas nos Estados Unidos vemos como Biden e suas políticas são próximas das políticas de Trump, sobretudo no que se refere à imigração e à Palestina.

Há uma guerra contra a forma de reprodução da vida: o aborto e os direitos reprodutivos, a saúde, a escola, a comida etc. Isso faz parte de um processo em que a diferença entre esquerda e direita está se perdendo porque ambas são parte da força motriz do capitalismo. Basta olhar para o investimento na guerra versus o investimento em escolas, hospitais, bairros. É um grande problema, e o movimento feminista tem um papel fundamental nisso. Sempre digo que fomos forçadas ao trabalho de reprodução, vivemos isso como uma forma de confinamento, mas também contém uma grande possibilidade de educar de uma maneira diferente. Precisamos colocar um fim à guerra e criar uma forma de produção coletiva da vida.

Também pode te interessar