[Trechos do prefácio de A gente é da hora, de bell hooks]

 

Quando as mulheres se reúnem e falam sobre homens, as notícias são quase sempre más. Se a conversa se torna específica e o foco recai sobre homens negros, as notícias são ainda piores. Apesar de todos os avanços nos direitos civis, no movimento feminista e na liberação sexual, quando os holofotes se voltam para os homens negros, a mensagem é que eles não conseguiram sair do lugar e que, como grupo, não evoluíram.

[…] Lamentavelmente, a verdade de fato, que é um tabu quando verbalizada, é que a nossa cultura não ama homens negros; eles não são amados por homens brancos, por mulheres brancas, por mulheres negras, nem por meninas e meninos. Sobretudo, a maioria dos homens negros não se ama. Como eles poderiam amar a si mesmos e uns aos outros, como poderia se esperar que eles amassem cercados de tanta inveja, desejo, ódio? Homens negros na cultura do patriarcado supremacista branco capitalista imperialista são temidos, não amados. Obviamente, parte da lavagem cerebral que ocorre em uma cultura de dominação é a confusão entre temor e amor. Prosperando nos laços sadomasoquistas, as culturas de dominação fazem com que o desejo por aquele que é desprezado assuma a aparência de cuidado, de amor. Se os homens negros fossem amados, poderiam esperar mais do que uma vida trancafiada, enjaulada, confinada; eles poderiam se imaginar além da repressão.

Seja em uma prisão real ou não, praticamente todo homem negro nos Estados Unidos já foi forçado, em algum momento da vida, a conter o Eu que desejaria expressar, a reprimi-lo e refreá-lo por medo de ser atacado, massacrado, destruído. Homens negros muitas vezes vivem em uma prisão mental, incapazes de encontrar uma saída. Na cultura patriarcal, todos os homens aprendem um papel que restringe e confina. Quando raça e classe entram em cena junto com o patriarcado, os homens negros suportam as piores imposições da identidade patriarcal masculina de gênero.

Vistos como animais, brutos, estupradores por natureza e assassinos, os homens negros não têm sua voz ouvida de verdade no que diz respeito à forma como são representados. Eles interferiram pouco no estereótipo. Como consequência, são vitimados por estigmatizações que foram articuladas no século XIX, mas que dominam a mente e o imaginário dos cidadãos desta nação até hoje. Raros são os homens negros que recusam a categorização, pois o preço da visibilidade no mundo contemporâneo da supremacia branca é que a identidade masculina negra seja definida em relação ao estereótipo, seja incorporando-o, seja buscando outro. No centro do modo como a personalidade masculina negra é construída no patriarcado capitalista supremacista branco está a imagem do bruto — indomável, incivilizado, irracional e insensível.

[…] Hoje deve ser óbvio para qualquer pensador e escritor que fale sobre homens negros que a principal ameaça genocida, a força que expõe ao perigo a vida de homens negros, é a masculinidade patriarcal. Por mais de trinta anos, um aspecto do meu ativismo político tem sido trabalhar para educar um público de massa sobre os impactos do patriarcado e do machismo na vida das pessoas negras. Como defensora da política feminista, tenho chamado a atenção consistentemente para a necessidade de os homens criticarem o patriarcado e se envolverem na formação do movimento feminista e na abordagem da libertação masculina. Em um ensaio escrito há mais de dez anos intitulado “Reconstruindo a masculinidade negra”, [publicado em Olhares negros,] sugiro que nós “podemos romper com a masculinidade patriarcal sufocante e ameaçadora imposta aos homens negros e criar visões férteis para uma masculinidade negra reconstruída que pode dar aos homens negros formas para salvar suas vidas e as de seus irmãos e irmãs de luta”. No entanto, apesar desse trabalho e de outros semelhantes desenvolvidos por Michele Wallace, Gary Lemons, Essex Hemphill e outros defensores da política feminista, não conseguimos influenciar os escritos mais tradicionais sobre masculinidade negra que continuam a reforçar a noção de que tudo o que homens negros precisam fazer para sobreviver é se tornar melhores patriarcas.

Existe uma recusa pública em enfrentar a realidade de que a situação dos homens negros — jovens e idosos — é agravada pelo conluio de todos aqueles que manifestam preocupação e que, mesmo de maneira oportunista, se colocam à altura do desafio ao lançar luz sobre a masculinidade negra, mas que se recusam a dizer a verdade sobre o que precisa acontecer para alterar tal circunstância. Tanto conservadores quanto radicais parecem ser melhores em falar sobre a situação do homem negro do que em nomear estratégias de resistência que lhes ofereçam esperança e alternativas significativas. Aqueles de nós, mulheres e homens negros, que têm falado sistematicamente a respeito da necessidade de educar para a consciência crítica em diversas comunidades negras sobre o patriarcado e o machismo raramente recebem a atenção do mainstream ao discutir a crise da masculinidade negra. Nossos textos não são mencionados nos livros conservadores sobre o assunto.

Quando, no entanto, vou a ambientes negros diversos para dar aulas e palestras, deparo com homens negros de todas as classes na plateia. Ouvindo o que têm a dizer, compartilho a preocupação deles de que estão perdendo terreno, de que a situação está piorando. Não importa quanto chamemos atenção para a crise da masculinidade negra, ainda não há uma resposta coletiva. Um sentimento de desespero ameaça extinguir nossa vontade coletiva de criar uma intervenção positiva em favor dos homens negros. Vejo entre meus colegas um sentimento geral de cansaço, de que “os homens negros simplesmente não entendem isso”. De fato, os homens negros que eu conheço mais intimamente parecem não entender.

Aos oitenta anos, meu pai ainda está comprometido com o pensamento e a ação patriarcais, embora isso o mantenha isolado emocionalmente de seus entes queridos, embora seu machismo, mais a violência e o abuso que o acompanham, tenha arruinado um casamento de mais de cinquenta anos. Meu irmão, que na infância conseguiu subverter a dominação patriarcal ao permanecer emocionalmente consciente, ainda se esforça para realizar um ideal inatingível de masculinidade patriarcal, enfraquecendo, assim, a agência positiva em sua vida. Muitas vezes ele se sente confuso e desanimado. E os homens negros que amei como parceiros sofreram a devastação do vício dos pais e da negligência emocional. Mesmo sendo homens que trabalham duro, que estão em boas condições financeiras, emocionalmente eles sofrem.

Todos os homens negros que eu amo se veem isolados, segregados de qualquer sentimento de solidariedade de grupo. Eles veem a maioria dos líderes negros como hipócritas ineficazes e oportunistas que buscam o primeiro lugar. Compartilham com Michele Wallace a ideia de que, “quando você olha para a chamada liderança negra da forma como ela é refletida pela grande mídia, o que vê é um grupo heterogêneo formado pelo narcisista, pelo vagamente ridículo e pelo inepto”. Eu digo ao público, sempre que me perguntam sobre a falta de lideranças negras, que há visionários radicais entre nós dispostos a nos conduzir na direção da libertação — e a grande maioria dessas pessoas são mulheres negras. A fidelidade ao pensamento machista sobre a natureza da liderança cria um ponto cego que impede a maioria das pessoas negras de utilizar teorias e práticas de libertação quando estas são oferecidas por mulheres.

Percebendo isso, eu esperava, assim como minhas camaradas negras radicais, que os homens negros que se importam com a situação degradante do homem negro e que são eles próprios defensores do pensamento feminista se esforçassem mais para alcançar os homens negros como grupo. Mas isso não se realizou. Toda vez que encontro um irmão de pensamento radical, encorajo-o a escrever, a compartilhar sua sabedoria com os outros. Muitos dos homens negros que trabalham pelo fim da violência masculina contra mulheres e crianças são especialistas em explicar a crise dos homens negros e encontrar caminhos para a cura, mas sentem que não têm tempo para escrever. Não há nem mesmo um pequeno corpo de literatura antipatriarcal que fale diretamente aos homens negros sobre o que eles podem fazer para se educar para a consciência crítica, que os guie no caminho da libertação.

A ausência desse trabalho confirma a alegação de que a situação dos homens negros não é levada a sério. Um impressionante corpo de literatura surgiu na esteira das lutas de resistência das mulheres negras destinadas a desafiar os sistemas de dominação que nos mantinham exploradas e oprimidas como grupo. Essa literatura ajudou as mulheres negras a se fortalecer. Como escritora e leitora desse trabalho, sei que ele tem o potencial de mudar vidas para melhor.

Muitas vezes me vejo ponderando por que nenhum corpo de literatura de resistência emergiu de homens negros, nem mesmo daqueles à frente de revistas e editoras. Eles têm controle (ainda que relativo) sobre os meios de comunicação de massa. O fracasso está na falta de radicalização coletiva por parte dos homens negros (os homens negros mais poderosos da mídia são conservadores que apoiam o pensamento patriarcal). As lideranças masculinas negras carismáticas e individuais com consciência radical muitas vezes se tornam tão enamoradas de seu status único de homem negro diferente que deixam de compartilhar as boas novas com outros homens negros. Ou se permitem ser cooptadas: seduzidas pela promessa de maiores ganhos monetários e acesso ao poder convencional, recompensas por transmitirem uma mensagem menos radical.

Como mulher negra que se preocupa com o sofrimento dos homens negros, sinto que não posso mais esperar que os irmãos tomem a liderança e espalhem a palavra. Passei dez anos esperando por isso. E nesses anos o sofrimento dos homens negros se intensificou. Com este livro, espero somar minha voz ao pequeno coro que fala em nome da libertação masculina negra. As mulheres negras não podem falar pelos homens negros. Nós podemos falar com eles. Ao fazê-lo, incorporamos a prática da solidariedade, em que o diálogo é a base do amor verdadeiro.

Recobrei meu amor pela masculinidade negra após uma infância na qual o homem negro de quem eu mais desejava receber amor me considerava desprezível. Felizmente, Daddy Gus, pai da minha mãe, ofereceu-me o amor pelo qual meu coração ansiava. Calmo, terno, gentil, criativo, um  homem de silêncio e paz, ele me ofereceu uma visão de masculinidade negra que ia contra a norma patriarcal. Foi o primeiro homem negro radical na minha vida. Ele assentou a fundação. Sempre me envolvendo nos diálogos, sempre apoiando meu anseio por conhecimento e sempre me encorajando a falar o que penso, eu honro o nosso pacto e as lições da parceria negra masculina e feminina baseada na mutualidade que ele me ensinou ao continuar dialogando com homens negros, ao continuar fazendo o trabalho do amor verdadeiro.

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