Por Andrés Kozel e Fabricio Pereira dos Santos
Publicado em Estudo preliminar, introdução de Os futuros de Darcy Ribeiro

 

Darcy Ribeiro se interessou bastante por futurizar. E o fez em registros e em momentos distintos, deixando seus exercícios de futurização  articulados a predicações não necessariamente homogêneas ou somáveis entre si. O estudo sistemático dessa faceta de sua obra é relevante por si mesma: Darcy Ribeiro é um autor clássico das ciências sociais latino-americanas. Sua relevância aumenta se considerarmos que o estudo de suas elaborações futuristas pode nos ajudar a circunscrever melhor aspectos-chave da experiência latino-americana de “crise do tempo”, “mudança de regime de historicidade”, advento do “presentismo” (Hartog, 2007). As interrogações sobre a pertinência dessas categorias e a datação e a caracterização do processo a que aludem constituem um objeto de estudo significativo, pleno de arestas debatíveis, e, exatamente por isso, fascinante.

Além desta breve apresentação e de uma seção conclusiva, Os futuros de Darcy Ribeiro é organizado em quatro partes. Na primeira, são delineadas as coordenadas contextuais e conceituais a partir das quais propomos abordar os futuros de Darcy Ribeiro. Nas três partes seguintes, são discutidos, em ordem cronológica, três momentos das futurições darcyanas. Na seção conclusiva se oferece um balanço; é apresentada uma hipótese em dois passos e uma reflexão, e se defende a vigência da inquietude futurizante e do ato de futurizar como imprescindíveis em sociedades que, como as nossas, sofrem de dificuldades para projetar-se ao futuro.

 

Sobre os futuros do passado e o presente sem futuro

O interesse de Darcy Ribeiro pelo futuro e as formas diversas pelas quais o expressou não deveriam, a esta altura, nos surpreender. Foram parte de
uma sensibilidade de época cujos perfis já foram cartografados mais ou menos satisfatoriamente. Em 1967, num livro que nosso autor conheceu bem, Daniel Bell vinculou o ressurgimento do interesse no futuro a vários fatores: a fascinação que exercia a cifra 2000 — bruscamente percebida como próxima e interpelante —, o entusiasmo suscitado pela aventura espacial, a possibilidade de dispor de séries estatísticas sistemáticas, a valorização generalizada da planificação (Bell, 1969, p. 29-30). A etapa se caracterizou não somente pela profusão de prospecções sistemáticas, mas também pela consolidação da ficção científica: contos, novelas, séries, filmes.1 Na América Latina daqueles anos, futurizaram com fervor José Luis de Imaz, Oscar Varsavsky, Alfredo Calcagno, Jorge Ahumada, Héctor Hurtado, Carlos Domingo, Amílcar Herrera e sua equipe da Fundación Bariloche (Kozel & Patrouilleau, 2016). O nome de Darcy Ribeiro se deixa integrar sem problemas a essa lista.

Quanto à diversidade formal, Darcy se permitiu futurizar em passagens de suas obras teóricas, em explorações sistemáticas específicas, em declarações de ocasião, em um ensaio utopizante, em um romance de difícil classificação. Essa heterogeneidade tampouco deveria nos surpreender. Como toda obra portadora de certa densidade, a de Darcy é atravessada por impulsos e disposições parcialmente contraditórios, além de mutáveis ao longo do tempo. Uma obra é, para dizê-lo de alguma maneira, uma bricolagem em movimento, a forja trabalhosa de uma equação simbólica instável, que vai alcançando formulações provisórias. Eventualmente, algumas obras podem ser consideradas mais características, ainda que não convenha pensá-las como definitivas, menos ainda como expressões de uma suposta “essência” autoral. Um “autor” é, em todo caso, uma unidade problemática de propósitos, um itinerário mais ou menos desgarrado, uma voz por meio da qual ressoam ecos de numerosas vozes com as quais a voz em questão conversa, sabendo ou não.2 Em nenhum caso convém pensar os autores como essências nem suas obras como desdobramentos plenamente coerentes de um plano inicial.

O estudo da série textual especificamente futurista de Darcy Ribeiro pode ilustrar tudo isso de modo conveniente, além de oferecer (como adiantamos) um interesse adicional. O protagonismo intelectual e político do autor, os interesses multifacetados e a qualidade de suas elaborações se tornam, em seu caso, uma arena notável para aproximar-se dos modos pelos quais se foi processando simbolicamente uma mudança de época ou, para dizê-lo nos termos de François Hartog (2007), uma mudança de regime de historicidade.3 Darcy Ribeiro não parecia se referir a algo distinto quando, numa consideração retrospectiva, falava da passagem da “revolução necessária” à “pequena utopia”. Em seu laconismo, essa fórmula condensa admiravelmente o que por acaso ocorreu naquela conjuntura da primeira metade da década de 1970, que em vários sentidos foi o portal de entrada ao nosso tempo.

Como se recordará, Hartog localiza (não sem matizes) a mudança por volta de 1990; como tentaremos mostrar, no que concerne a vários aspectos
decisivos, os ajustes e as acomodações que se podem detectar na obra de Darcy Ribeiro parecem se antecipar mais de quinze anos a essa data. Em geral, e sem questionar a centralidade do momento 1990, pensamos que convém periodizar a (última?) experiência de “crise do tempo” recorrendo a essa dupla marcação. Isso, que possivelmente seja válido em geral, é decisivo quando nos dispomos a pensar a experiência latino-americana: em vários sentidos, o golpe de Estado de 1973 no Chile foi um choque que marcou a ruptura. Nem todos os atores o sentiram dessa maneira; no entanto, com o passar dos anos, foi ficando claro que com tal acontecimento se encerrou entre nós uma etapa histórica, caracterizada por uma relação mais ou menos específica com a temporalidade e suas dimensões.

Em termos gerais, o desmantelamento massivo de uma grande utopia estruturante coloca os pensadores afetados frente ao imperativo delicado de reinventar-se evitando os abismos da incoerência (enunciar algo que contradiz o que se dizia até ontem) e do anacronismo (seguir enunciando algo que não se ajusta às exigências da nova situação). Diferentemente daqueles que anunciam de maneira ruidosa suas mudanças de posição e dos que se gabam de uma coerência a toda prova, Darcy Ribeiro tendeu a perceber-se como alguém que conseguiu realizar a travessia mantendo relativa fidelidade a suas posições prévias. Há bastante acerto nesta autopercepção: ele foi ajustando seus pontos de vista de maneira gradual e sem abdicar por completo deles. No entanto, como veremos, houve deslocamentos, alguns significativos. O estudo de tais ajustes permite apreciar um tipo de “microrrevolução semântica” (Egido, 2006), isto é, de acomodações que não necessariamente foram presididas por gestos explícitos nem por uma vontade de reformulação integral, e sim coexistiram por meio de persistências, inclusive com assincronismos um tanto desconcertantes.4

 

1. Em 1968 apareceu The Population Bomb [A bomba populacional], de Paul R. Ehrlich; alguns anos depois, Os limites do crescimento, do casal Meadows e outros autores, que geraria, em 1977, a resposta latino-americana conhecida pelo nome triplo de Catástrofe o Nueva Sociedad, ou Modelo Bariloche, ou Modelo Mundial Latinoamericano [Catástrofe ou nova sociedade: modelo mundial latino-americano] (Herrera, 2004). No começo dos anos 1960 foi a vez de Primavera silenciosa, de Rachel Carson. Sem sairmos do mundo anglófono, e a título meramente ilustrativo, podemos recordar também a circulação das obras de Robert Heinlein, Arthur C. Clarke e Isaac Asimov, o aparecimento de séries como Star Trek, a estreia de filmes como Dr. Fantástico e 2001: Uma odisseia no espaço (ambos dirigidos por Stanley Kubrick), ou Corrida silenciosa (dirigido por
Douglas Trumbull).
2. Este modo de apreciar um itinerário-obra conta entre seus maiores antecedentes com o clássico estudo de Bakhtin (2003) sobre Dostoiévski. Além do mais, as tensões, torsões e matizes que cabe identificar em determinado itinerário podem ser interpretadas como indicativas de possíveis instabilidades axiológicas, da condição aporética das problemáticas tratadas, dos difíceis ajustes que o intelectual-bricoleur deve tentar realizar entre seus propósitos primordiais (e o imperativo de coerência que deles deriva) e as mudanças na correlação de forças no campo respectivo, assim como na dinâmica sociopolítica geral (Devés & Kozel, 2018).
3. Para Hartog, é possível que nos encontremos em um novo “regime de historicidade”, distinto daquele predominante na modernidade, o qual estava orientado pelo futuro. Esse novo regime pode ser experimentado de duas maneiras, a partir da posição social ocupada. Para alguns, é o tempo dos fluxos, da aceleração, da mobilidade, dos projetos. Para a grande maioria (trabalhadores informais, excluídos, imigrantes, refugiados…), é um tempo transitório permanente: um presente sem passado e sem futuro real.
4. Não é nossa intenção abordar aqui todas as facetas do itinerário/obra de Darcy e seus possíveis usos e releituras; tampouco queremos reconstruir integralmente sua trajetória. A bibliografia sobre o autor é crescente, um indicativo de que sua obra segue nos interpelando. Ver, entre outros: Pereira Gomes (1992), Mignolo (1995), Coelho (2002), Gomes (2010), Heymann (2012), Miglievich-Ribeiro & Romera Jr. (2015), Coelho & Rocca (2015), Kozel (2018; 2019), Vidal Costa (2021).

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