Por Darcy Ribeiro
Publicado em Os futuros de Darcy Ribeiro
Abra os olhos, leitor
É tempo já de se lavar os olhos do mundo para ensiná-lo a nos ver o que somos, sem nos esconder atrás de estereótipos. A ideia de uma América Latina da siesta e da fiesta, do machismo, dos ditadores vocacionais, da sombra e água fresca e de uma indolência doentia tem a mesma função do racismo. É escamotear a realidade da dominação colonial e classista.
Mais horas de descanso para o almoço eu vi na Holanda ou na Itália do que vejo aqui. A larga e afrodisíaca festa europeia das férias de verão não tem, lamentavelmente, nenhum equivalente por cá. Não conseguem é ser tão criativas, vivazes e belas como nossas festinhas.
Sobre a propalada preguiça latino-americana, deixe-me dizer-lhe que um operário da Volkswagen do México ou de São Paulo trabalha o mesmo ou mais que seu colega alemão, ganhando um salário cinco vezes menor. Os diretores e gerentes de cá é que ganham dez vezes mais que os de lá. O mesmo ocorre com o boia-fria do Paraná ou o vaqueiro da Bahia, que trabalham mais do que qualquer peão do Texas ou camponês galo, labutando em condições muitíssimo piores e ganhando dez vezes menos.
Onde está nossa preguiça? A preguiça entre nós, como a luxúria e o dengo, nunca foi coisa de negro nem de índio ou de mulato, nem mesmo de ranço pobre. É a fatia do branco rico, a mais gostosa de suas muitas regalias.
Uns poucos méritos que habitualmente se reconhecem em nós, latino-americanos, são logo degradados pelo espírito depreciativo com que se expressam. Esse é o caso, entre outros, da nossa música popular sabidamente bela, rítmica e vibrante, que devemos à veia criativa africana. Apesar de gabada, ela nos é mais vezes debitada do que creditada, como ocorre quando nos figuram como os insaciáveis dançadores de sambas, rumbas e boleros.
Caso ainda mais feio é o do chamado boom da literatura latino-americana. Nesse caso, o preconceito é evidente. Não há nenhum boom espantoso que tenha de ser explicado como um fenômeno. Simplesmente, o mundo moderno não conhece romancistas melhores que o Gabo, Borges, Cortázar, Rulfo e Guimarães Rosa. Nem poetas que poetam melhor do que Neruda, César Vallejo e Drummond.
Falando ainda de literatura, é de assinalar que grandes escritores nórdicos buscam, habitualmente, suas origens onde elas efetivamente estão, na Europa. É lá que Eliot e Pound vão beber na fonte. Nossa busca de origens se dá é em Guillén, poeta da negritude, ou em Arguedas, romancista da indianidade. Mesmo nossos literatos mais dados a europar lá se assentam é olhando pra cá, nos refazendo em palavras.
Alguns defeitos nos são atribuídos com carradas de razão. Entre eles o machismo. É verdade que muito temos pecado de machismo, mas nossas mulheres nos vêm reeducando com rigor para que, continuando a ser quentes e amorosos, sejamos cooperativos e cordatos e, se possível, até fiéis.
O mandonismo caudilhesco que também nos atribuem não é coisa nossa; pelo menos não é debitável ao povo latino-americano. Ele é que sofreu e sofre na carne a boçalidade dos régulos escravistas, coloniais ou multinacionais que a civilização europeia e sua filial ianque nos impõem como seus servidores mais fiéis. Cárdenas, Allende ou Fidel não se parecem com nenhum caudilho.
Abra os olhos e o entendimento, leitor, para outra revelação. Ditadores tropicais sanguinários, como Somoza, Trujillo e Batista, são criaturas que Washington criou, amestrou e nos impôs para perpetuar o domínio ianque sobre as “repúblicas de bananas” que mantém no Caribe. Elas são a expressão política natural e necessária da apropriação das terras pelas empresas norte-americanas produtoras de frutas de exportação. Se você duvida, olhe um pouco para Nicarágua, El Salvador e Guatemala e se pergunte quem quer reter a lucrativa tradição bananeira? Quem cria, ceva e perpetua ditaduras no Caribe?
As novas ditaduras militares do Brasil, da Bolívia, do Chile e da Argentina são também criações norte-americanas. São o correspondente político inevitável do domínio de nossa economia pelas corporações transnacionais, que, não podendo ser legitimado pelo voto popular, tem de ser imposto pela mão de governos militares. Cada uma delas nos foi imposta através de movimentos programados cuidadosamente em Washington — com a ativa participação internacional — de desestabilização de governos democráticos e progressistas, seguidos da apropriação do poder através de golpes de militares ianquizados. Uma vez implantada a nova ordem, seus mandantes atenderam solícitos a voz do amo. Redefiniram toda a política salarial para anular as conquistas sociais dos trabalhadores e impor regimes de medo e de fome. Logo após, com o mesmo denodo, revogaram por decreto a legislação de defesa dos interesses nacionais, para que as empresas multinacionais se apropriassem de nossos recursos e mercados. Em consequência, nos converteram em exportadores de capitais que mandam para fora lucros cada vez maiores, ao mesmo tempo que assumimos uma dívida externa que cresce astronomicamente.
Preste atenção, aliás, em um detalhe expressivo. Alguns desses ditadores novos da América Latina têm nomes que para nós soam tão bizarros como Geisel, Médici, Stroessner, Pinochet, Banzer etc. Serão os filhos exitosos dos imigrantes que acolhemos? Ingratos! Nenhum deles, por ser europoide, teve qualquer escrúpulo em adotar e até aprofundar a boçalidade do estilo ditatorial latino-americano.
Nessa altura você concordará comigo no quanto é duvidoso que o projeto de futuro que as nações ricas têm para nós seja alguma liberação. Sabidamente eles querem e necessitam de nossos produtos de exportação e de nossa mão de obra barata para com eles se prover e lucrar. Se acalentam algum sonho para nós, esse será tão feio como o de fazer da América Latina do futuro um imenso Porto Rico, a fim de estrelar e encher de riscos novos uma nova bandeira norte-americana. Doce sonho de tarados.
Nosso próprio projeto é outro, que fomos e somos impedidos de realizar. Para evitá-lo, dopam exércitos, subornam políticos, falem empresários. Mas não ficam nisso, entrando a perseguir, prender, exilar, cassar, torturar e matar quando se sentem ameaçados em seus privilégios.
[…] Hegel, que não entendeu nunca os povos americanos, mas tinha estalos de gênio, disse uma vez que a América, país do porvir, alcançaria sua importância histórica através de uma guerra entre a América do Norte e a América do Sul. Não sei se precisamos de mais guerra do que a suja guerra indeclarada que eles travam contra nós. Sei apenas que, uma vez liberados da opressão imperialista, nós floresceremos, e eles também serão melhores, porque estarão livres do feio papel anti-histórico que hoje encarnam. Vá se acostumando, leitor, com a ideia de que vamos dar certo e de que isso fará muito bem ao mundo. Somos e nos vemos como parte da civilização ocidental. Alternos das civilizações orientais como a indiana, a chinesa, ou a japonesa. Mas bem sabemos que somos um subúrbio dela, mais distante e diferenciado dos seus orgulhosos núcleos cêntricos do que os soviéticos, além de imensamente menos importantes.
Pouca ou nenhuma consciência temos, ainda, de que sobre nossos ombros recairá, em grande parte, a tarefa de criar uma nova ocidentalidade que seja, pela primeira vez, uma civilização humana respeitável. Entretanto, frente à hegemonia infecunda da América saxônica, que parece só preocupada em lucrar e reter a história parada; frente a uma Europa reduzida à sua expressão geográfica, dividida pela linha arbitrária das fronteiras das duas grandes potências hegemônicas e encolhida de medo da terceira guerra que estalará na véspera de sua destruição; […] frente a tudo isso, só vejo a nós para a tarefa urgente de humanizar nossa civilização e orientá-la por caminhos solidários que livrem os homens do medo e lhes devolvam a alegria de viver.