Vozes silenciadas

Historiador se debruça sobre autobiografias de pessoas escravizadas e lança luz sobre narrativas e personagens invisibilizados

Por Thiago André
Publicado na Quatro Cinco Um

 

A escravidão é o fundamento sobre o qual foram construídas as Américas como conhecemos hoje. Não tem como entender nossa história recente sem olhar atentamente para essa instituição cruel e resistente que moldou nossa sociedade. Muita coisa já foi escrita sobre a escravidão e a liberdade de pessoas negras nas Américas, mas pouquíssimas vezes pudemos ler e compreender o tema a partir de escritos produzidos pelos próprios escravizados. Em Vozes afro-atlânticas, Rafael Domingos Oliveira se debruça sobre autobiografias de pessoas escravizadas e lança luz sobre narrativas e personagens invisibilizados do grande público.

Na introdução o autor já deixa claro que se trata de um livro de história. Pode ser que isso assuste quem ficou traumatizado pelo maçante ensino factual de história — aquele que é “oficialesco” e valoriza datas, acontecimentos e vultos históricos ditos importantes. A observação é necessária, pois o livro lança um novo olhar para um tema conhecido, mas sem cair num revisionismo histórico sem critério. Vozes afro-atlânticas é norteado por perguntas difíceis e questionamentos sobre o passado, que são demandas do nosso próprio tempo, mas que está profundamente comprometido com o rigor metodológico do fazer histórico. É fruto de anos de pesquisa do autor, adaptado de sua dissertação de mestrado, orientada por um historiador e submetida a seus pares. Em tempos de guerra de narrativas, é importante ressaltar que Rafael escreveu sua obra com responsabilidade histórica. Isso não quer dizer que seja uma escrita enfadonha e cansativa, pois o autor é um historiador que escreve para ser lido.

Se você não estava numa caverna em 2014, provavelmente foi uma das muitas pessoas impactadas pelo filme Doze anos de escravidão, dirigido por Steve MacQueen, indicado em nove categorias do Oscar e premiado como o melhor filme pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. O roteiro é baseado na história de um homem negro chamado Solomon Northup, um músico que vivia em Nova York e foi repentinamente sequestrado e vendido como escravo para um proprietário de terras no Sul dos Estados Unidos. O sucesso estrondoso do filme levou para um grande público um tipo de narrativa da escravidão pouco comum até o momento: as que são escritas pelos próprios escravizados.

Doze anos de escravidão foi baseado na autobiografia de mesmo nome, escrita por Northup, que conta em primeira pessoa sobre a experiência de viver sob o domínio da escravidão. Como essa, existem muitas outras obras escritas por pessoas sequestradas para o trabalho escravo e que decidiram contar para quem quisesse ler sobre a vida da população negra escravizada nas Américas. Boa parte dessas autobiografias foi popular no seu tempo, e muitos de seus autores se tornaram pessoas célebres e notórios abolicionistas — caso de Frederick Douglass e Sojourner Truth —, mas, apesar disso, suas contribuições foram praticamente ignoradas por historiadores que pesquisaram a escravidão a partir do século 20.

Por uma questão de método e abundância de fontes, é quase natural que a história seja escrita a partir dos poderosos. Foram eles que escreveram as cartas, despachos, leis e documentos oficiais. Além dos poderosos, houve farta produção literária de pessoas negras egressas da escravidão que escreveram sobre o tema, mas, mesmo assim, foram desconsideradas por historiadores e pesquisadores. No contexto da escravidão moderna, ignorar isso é o mesmo que investigar um crime deixando de ouvir a vítima principal. Ainda que sabendo da existência de autobiografias de escravizados, pouquíssimos historiadores tiveram o interesse de investigar e dar legitimidade histórica a esse material. É nesse sentido que Vozes afro-atlânticas se estabelece como um trabalho raro e de resgate histórico.

Por muito tempo falaram e escreveram sobre pessoas negras, mas sem a participação ativa de pessoas negras. Não é como se os negros não quisessem falar por si. Na verdade, não eram nem considerados agentes de suas próprias histórias. Por uma lógica de dominação, as populações negras estão na lata de lixo da sociedade e por isso foram infantilizadas e tuteladas por uma sociedade hierarquizada que desprezou sua capacidade de agenciar suas próprias vontades. Quem diz isso não sou eu, é Lélia Gonzalez, mulher negra e intelectual brasileira, que em 1984 escreveu que se somos considerados lixo, então “o lixo vai falar, e numa boa”.

É disso que tratam as autobiografias de egressos da escravidão. São pessoas vistas como desprezíveis, colocadas na condição de sub-humanos, escrevendo sobre si e sobre o mundo em que estão inseridas. Enquanto escreviam suas próprias memórias, indivíduos como Frederick Douglass, Solomon Northup e Harriet Ann Jacobs puderam disputar narrativas e se pôr como sujeitos pensantes na praça das palavras. Inclusive, mulheres negras como Sojourner Truth puderam pontuar no epicentro do feminismo as diferenças fundamentais das experiências vividas por mulheres brancas e negras nas Américas.

Em Vozes afro-atlânticas, Rafael expõe que, entre a suposta passividade e a revolta escrava, existiram também as negociações e contradições entre o sujeito escravizado e o mundo escravista. É aqui que se abre a janela para a vida cotidiana dos autores e autoras, que nos dão a possibilidade de observar em primeira pessoa as memórias de uma África pouco explorada, a formação familiar nas Américas, as práticas religiosas e outros temas da vida ordinária. Em um mundo que buscava coisificar as pessoas negras, as autobiografias foram um contraponto eloquente em favor da liberdade.

Apesar de falar sobre a vida dos autores e autoras das autobiografias, Vozes afro-atlânticas não é uma coletânea de apresentação desses personagens históricos — ainda que tenha minibiografias de todos eles no fim do livro. O que Rafael fez, de maneira muito competente, foi organizar, analisar e contextualizar essa produção literária, nos apresentando semelhanças e diferenças entre elas. Mas, a meu ver, seu maior êxito reside na coragem de entrar nesse campo pouco explorado e expor, com habilidade ímpar, histórias silenciadas que ajudam a demolir os últimos obeliscos racistas erguidos ainda no século 19.

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