Ufa, que ano! 2020 superou as piores expectativas, né? É verdade que o Brasil já vinha numa toada desgracenta desde que o caldo das Jornadas de Junho entornou, em 2013. Quanta decepção. Daí o pessoal começou a dar apelidos engraçadinhos (ou desesperadinhos) para cada ano que se sucedia no calendário: depois de dois mil e treta, veio dois mil e catarse, dois mil e queen (em uma esperança vã de que seria melhor), dois mil e nêmesis… Em 2017, a tragédia começou a ficar mais séria, com a intensificação do desmonte conduzido pelo grande acordo nacional golpista. Daí ficou difícil continuar com as piadas. Em 2018, assistiríamos à execução de Marielle Franco no centro do Rio de Janeiro. Parecia que havíamos tocado o fundo do poço. Mal sabíamos.
Estamos a poucos dias da Virada, então pouparemos o leitor e a leitora — e a nós mesmos — de relembrar tudo de ruim, grave, inadmissível, absurdo, triste, revoltante, estarrecedor, criminoso que aconteceu nos últimos doze meses. Não falaremos dos quase duzentos mil brasileiros que morreram devido à covid-19, muitos dos quais poderiam ter sido salvos com políticas públicas. Tampouco mencionaremos a incineração da Amazônia e do Pantanal, as execuções policiais que continuaram ocorrendo mesmo durante a quarentena, ou o avanço do genocídio da população negra. Menos ainda escreveremos sobre a coleção de barbaridades pronunciadas pelo inquilino do Planalto. Estamos vivendo dias que ultrapassam em muito o limite do tolerável, mas continuamos tolerando em silêncio todos os passos que o país dá em direção à barbárie.
Por isso, aqui, preferimos invocar um velho clichê de Carlos Drummond de Andrade e olhar para as flores que brotaram no ambiente inóspito de 2020. Queremos falar da segunda onda, não do coronavírus, mas do movimento Vidas Negras Importam, que reemergiu com fortes protestos nos Estados Unidos e no mundo após o linchamento de George Floyd, derrubando estátuas de velhos senhores de escravos homenageados por nossas elites descaradas. Queremos olhar para a reafirmação do Sistema Único de Saúde, tão atacado, tão defendido, tão essencial: apesar da retumbante incompetência que reina em Brasília, com testes estragando em armazéns, seringas que não foram compradas e boicote às vacinas, é notável ver direitistas privatistas militares sendo obrigados a vestir a camisa do SUS em público, tamanha sua importância.
Queremos festejar o #BrequeDosApps, protesto que marcou o nascimento de um movimento de trabalhadores de aplicativos de entrega contra o avanço até aqui irrefreável da exploração capitalista digital. Queremos comemorar a aprovação da lei de descriminalização do aborto pela Câmara dos Deputados da Argentina, resultado de uma imensa mobilização feminista que construiu uma Maré Verde nas redes e nas ruas do país inteiro. Queremos vibrar com a ida de Guilherme Boulos e Luiza Erundina para o segundo turno das eleições municipais de São Paulo, um dos acontecimentos políticos mais surpreendentes e esperançosos do ano: afinal, quem diria que, nesta conjuntura, com a direita dando as cartas nos palácios estadual e nacional, um líder sem-teto e uma mulher nordestina indentificadíssimos com a luta popular chegariam perto de ganhar a prefeitura da maior e talvez mais conservadora capital do país?
Foi um ano de superlativa desumanidade, intensificada pela forma de contágio do coronavírus: se até então nos agarrávamos ao lema “ninguém solta a mão de ninguém” e cultivávamos bolhas de solidariedade que nos permitiam respirar, tivemos que evitar o contato com todo mundo, usar máscaras e álcool em gel, abolir os tão necessários abraços e nos contentar com desgastantes e frustrantes videoconferências e mensagens. Muitos de nós quase desistiram de acreditar em uma reação. Dias melhores ainda estão bem distantes. Mas, sim, flores brotaram nesse deserto de expectativas para mostrar que o trabalho é diário e a esperança não pode morrer, nunca. Esta talvez seja a grande lição de 2020: em meio a tamanha desolação, algumas brechas rasgaram o desconsolo e iluminaram o caminho. Queremos somar esforços para que, em 2021 e depois e depois — pois o trajeto será longo —, essas flores possam vicejar e se multiplicar. É por isso que publicamos; e é por isso que publicamos os livros que publicamos.
Ficamos felizes ao ver que, em 2020, muita gente se refugiou na leitura, no estudo, na reflexão. A Elefante nunca foi tão requisitada, e a manada cresceu muito: nosso número de seguidores nas redes sociais dobrou, o acesso ao nosso site e a procura por nossos livros bateram todos os recordes. Conseguimos oferecer combos a preços muito baixos, para reforçar o interesse dos leitores. E, pela primeira vez, pudemos conceder descontos de 50% em todo nosso catálogo, ao aderirmos à nacionalização da tradicional Festa do Livro da USP. Sim, vocês sabem, isso trouxe problemas técnicos e muitas falhas de envio e atendimento, pelos quais nos desculpamos. Mas aprendemos muito com todas as dificuldades e fizemos a lição de casa tecnológica. Principalmente, percebemos como nossos livros são queridos. Não há injeção de ânimo maior do que saber que, de Norte a Sul, existe um país inteiro querendo ler o que publicamos.
Apesar de todos os pesares, colocamos no mundo treze novos títulos em 2020. Começamos e terminamos o ano com obras coletivas: De bala em prosa, lançado em fevereiro só com autores e autoras negras, foi resultado de uma chamada pública que realizamos em 2019 contra o racismo estrutural; Retratos da vida em quarentena, fruto de uma parceria com a editora Dublinense, apareceu em dezembro com dezenove contos sobre os dias de isolamento social no país. A covid-19 também foi tema de dois outros lançamentos da Elefante: Capitalismo em quarentena, escrito a oito mãos entre o Brasil e a Europa (e que deu início à coleção Crise & Crítica), e Pandemia e agronegócio, de Rob Wallace, publicado em parceria com a Igra Kniga, duas obras essenciais para compreendermos o pano de fundo político, econômico, social e epidemiológico do surto de coronavírus — e das pandemias vindouras.
Da Argentina, trouxemos A potência feminista, de Verónica Gago, e Mineração, genealogia do desastre, de Horacio Machado Aráoz, dois livros para começarmos a pensar nossa história e nossas lutas com os pés fincados na América Latina. Contra Amazon, de Jorge Carrión, chegou no momento em que esse imenso shopping center on-line batia todos os recordes de vendas — e seu dono se tornava o homem ainda mais rico do mundo. Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal, de Christian Laval, dá continuidade às reflexões do autor sobre o sistema que nos governa (e inaugura a coleção Práticas Utópicas). História social do LSD no Brasil, de Júlio Delmanto, explica como o ácido chegou ao país, influenciou músicos e artistas nacionais e passou a ser reprimido pelas autoridades por influência dos Estados Unidos.
#VidasNegrasImportam e libertação negra, de Keeanga-Yamahtta Taylor, se debruça sobre o surgimento do movimento antirracista mais importante da atualidade, apontando os limites da representatividade das pessoas negras no ordenamento capitalista supremacista branco. Ensinando pensamento crítico coloca bell hooks em diálogo com Paulo Freire e dá continuidade às obras da autora sobre educação, das quais apenas uma havia sido publicado no Brasil até agora. Donos do mercado, de Vitor Matioli e João Peres, mostra como Carrefour e Pão de Açúcar prejudicam fornecedores, trabalhadores e a sociedade com suas práticas comerciais. E Os donos da terra, de Vitor Flynn, Daniela Alarcon e Glicéria da Silva, traz em quadrinhos a luta dos Tupinambá pela recuperação de suas terras no sul da Bahia.
Em 2021, a Elefante completa dez anos. Já pensamos em várias ações para os meses vindouros. Além disso, teremos lançamentos incríveis — uma prévia será divulgada em janeiro. Apesar de muito cansados e desejosos de férias, estamos ansiosos pelo fim do recesso (que vai até 11 de janeiro): queremos voltar logo à labuta, com as energias renovadas, para levar até vocês todas as novidades que preparamos. Iremos trabalhar para que 2021 seja definitivamente o melhor ano da Elefante até aqui. Costumamos ter muito pudor em antecipar dias bons, mas, depois de olhar para as flores que insistiram em brotar em 2020, resolvemos deixar o pessimismo para tempos melhores. Precisamos seguir adiante, mais do que nunca. Junto com vocês, como sempre. Em manada.
Um abraço paquidérmico,
Tadeu Breda
Editor