“Eles dizem que é amor.
Nós dizemos que é trabalho não remunerado.
Eles chamam de frigidez.
Nós chamamos de absenteísmo.
Todo aborto é um acidente de trabalho.
Tanto a homossexualidade quanto a
heterossexualidade são condições de
trabalho… Mas a homossexualidade
é o controle da produção pelos
trabalhadores, não o fim do trabalho.
Mais sorrisos? Mais dinheiro. Nada será
tão poderoso em destruir as virtudes
de cura de um sorriso. Neuroses,
suicídios, dessexualização: doenças
ocupacionais da dona de casa.”
– Silvia Federici. “Salários contra o trabalho doméstico” (1975),
em O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista
Mais uma vez, voltamos nossos olhares com alegria e admiração para nossas hermanas argentinas, que depois de conquistarem a descriminalização do aborto, em dezembro de 2020 – garantindo que nenhuma mulher morresse por abortar no país nos seis meses após a legalização –, agora nos presentearam com a notícia de que o cuidado materno foi reconhecido como trabalho e contará como tempo para aposentadoria.
Esta semana, o governo da Argentina apresentou oficialmente o Programa Integral de Reconhecimento de Tempo de Serviço por Tarefas Assistenciais, que permitirá que até 155 mil mulheres se aposentem contando como tempo de trabalho o período em que se dedicaram à criação dos filhos. A Administração Nacional de Seguridade Social (Anses), responsável pelas políticas de previdência no país, informou que a mudança beneficiará as mulheres que precisaram largar o emprego para se dedicar exclusivamente aos cuidados maternos, assim como as mulheres com mais de 60 anos que ainda não tinham somado o tempo mínimo de contribuição para se aposentar. Também têm direito as trabalhadoras com carteira assinada que recorreram à licença-maternidade, incorporando o período em que estiveram afastadas à contagem como tempo de serviço.
Segundo o relatório Tempo de Cuidar publicado pela Oxfam em janeiro de 2020, estima-se que pelo menos 12,5 bilhões de horas, a cada dia, são dedicadas ao trabalho doméstico pelo mundo, e outras incontáveis horas recebendo uma baixíssima remuneração por essa atividade, especialmente aquelas que pertencem a grupos marginalizados. Esse trabalho realizado gratuitamente por meninas e mulheres com mais de 15 anos agrega cerca de US$ 10,8 trilhões por ano à economia. Quase metade dessa população, 42%, não consegue emprego porque ocupa todo seu tempo com trabalho de cuidado e do lar – o que só acontece com 6% dos homens.
A pesquisadora sempre fala da importância de sua mãe na compreensão daquilo que viria a ser parte fundamental de seu trabalho. Vinda de uma família de camponeses, a mãe cozinhava, limpava, fazia compras e cuidava das crianças, além de fazer à mão tudo o que a família não podia comprar. Em uma entrevista ao New York Times, ela lembra que a mãe reclamava que ninguém via o seu trabalho, e o pai lhe respondia que era porque aquele não era um trabalho real. Assim, ela percebeu a grande contradição na sua frente.
“A classe trabalhadora para mim era o operário. E minha mãe várias vezes me disse: você está sempre falando sobre o operário como se ele fosse a única pessoa que trabalha! […] Ela disse isso, não meu pai, que era o professor, o intelectual, o conhecedor. Foi ela, a minha mãe, quem me contou as coisas que mais tarde se tornaram a minha política.” Mais tarde, Federici se envolveria com o grupo de feministas conhecido como International Feminist Collective [Coletivo Feminista Internacional], que iniciou a campanha Wages for Housework [Salários para o Trabalho Doméstico].
O ensaio de Federici, “Salários contra o trabalho doméstico”, cuja epígrafe famosa abre esse artigo, foi publicado em 1975 e é um dos primeiros manifestos apaixonados escritos pelo movimento, além de continuar sendo um de seus textos mais conhecidos. Nele, Federici expõe que o trabalho doméstico já é dinheiro para o capital, que o capital ganhou e ganha dinheiro com as tarefas exercidas pelas mulheres, como cozinhar, cuidar, e até mesmo transar. A conclusão é que o capitalismo necessita do trabalho não remunerado das mulheres para acumular valor e continuar existindo — à custa da natureza e das comunidades. Essa é a tese que sustenta todo o livro O ponto zero da revolução.
“O trabalho doméstico foi transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho, porque foi destinado a não ser remunerado. O capital tinha que nos convencer de que o trabalho doméstico é uma atividade natural, inevitável e que nos traz plenitude, para que aceitássemos trabalhar sem uma remuneração. Por sua vez, a condição não remunerada do trabalho doméstico tem sido a arma mais poderosa no fortalecimento do senso comum de que o trabalho doméstico não é trabalho, impedindo assim que as mulheres lutem contra ele, exceto na querela privada do quarto-cozinha, que toda sociedade concorda em ridicularizar, reduzindo ainda mais o protagonismo da luta. Nós somos vistas como mal-amadas, não como trabalhadoras em luta.” (O ponto zero da revolução, pp. 42-3)
Além da descriminalização do aborto e, agora, do Programa Integral de Reconhecimento de Tempo de Serviço por Tarefas Assistenciais, outras importantes decisões marcam a Argentina como uma referência na questão do gênero. Na quarta-feira, 21 de julho de 2021, o país se tornou o primeiro da América Latina a reconhecer oficialmente identidades não binárias, além de, no fim de junho, ter garantido a cota de trabalho para pessoas trans e travestis, com a lei que prevê que 1% dos cargos públicos devem ser destinados a essas pessoas.
As conquistas são fruto da luta histórica e atualizada dos movimentos feministas no país que, na chamada maré verde dos últimos anos, priorizou as alianças entre mulheres diversas e os corpos feminizados, como reitera inúmeras vezes Verónica Gago em seu A potência feminista – tanto que o tradicional Encuentro Nacional de Mujeres, realizado desde 1982, passou a se denominar em 2019 como Encuentro Plurinacional de Mujeres, Lesbianas, Travestis, Trans y No Binaries, abarcando a amplitude dos corpos em luta, como ressalta a feminista Mariana Bastos.