Trecho da introdução de Antropoceno ou Capitaloceno?
As notícias não são boas para o planeta Terra. A humanidade — e todo o restante da vida que a acompanha — encontra-se agora no limiar do que os cientistas do Sistema Terra chamam de “mudança de estado”. Esse momento está representado na consciência crescente acerca das mudanças climáticas — entre pesquisadores e também entre um amplo público preocupado. Mas o nosso momento envolve muito mais do que apenas um problema climático. Estamos vivendo uma transição na vida planetária com o “potencial de transformar a Terra rápida e irreversivelmente num estado desconhecido até então pela experiência humana” (Barnosky et al., 2012, p. 52).
O Zeitgeist do século XXI, portanto, infunde compreensivelmente um senso de urgência em cidadãos, ativistas e pesquisadores — por exemplo, Foster, Clark & York (2010), Hansen (2009), Parenti (2011) e Klein (2014). A realidade é bastante real. E, de acordo com qualquer avaliação razoável, a situação está se deteriorando. Semanalmente, até diariamente, as pesquisas se empilham. “Pressões humanas” estão levando as condições de estabilidade biosférica — sobretudo o clima e a biodiversidade — a um ponto de ruptura (Steffen et al., 2015; Mace et al., 2014; Dirzo et al., 2014). Múltiplos “limites planetários” estão sendo excedidos agora — ou logo serão (Rockström et al., 2009a). As condições da vida no planeta Terra estão mudando de forma rápida e fundamental.
A conscientização sobre essa difícil situação já vem sendo construída há algum tempo. Mas a realidade de uma crise — compreendida aqui como um ponto de inflexão fundamental na vida de um sistema, de qualquer sistema — pode ser muito difícil de compreender e interpretar; também pode ser muito difícil tomar qualquer atitude em relação a ela. Crises não são fáceis de compreender por aqueles que as vivenciam. As filosofias, os conceitos e as histórias que usamos para dar sentido a um presente global cada vez mais explosivo e incerto são — quase sempre — ideias herdadas de outra época e lugar. O tipo de pensamento que criou a turbulência global de hoje provavelmente não nos ajudará a resolvê-la.1
Modos de pensamento são persistentes. Não são mais fáceis de transcender do que os “modos de produção” que refletem e ajudam a moldar. Esta coletânea de ensaios é um esforço para ampliar e estimular uma conversa global acerca de um novo modo de pensar. Nosso ponto de partida é o conceito de Antropoceno, o mais influente dos estudos ambientais da década passada. Os ensaios deste livro oferecem críticas distintas do argumento Antropoceno — que é, na verdade, uma família de argumentos com muitas variações. Mas a intenção é ir além dessa crítica. O Antropoceno é um ótimo ponto de partida não apenas por sua popularidade, mas, mais importante, porque faz perguntas fundamentais ao nosso tempo: de que maneira nós, humanos, nos encaixamos dentro da teia da vida? Como várias organizações humanas e processos — Estados e impérios, mercados mundiais, urbanização e muito mais — redefiniram a vida planetária? A perspectiva do Antropoceno é poderosa e influente por trazer essas questões ao mainstream acadêmico — e até mesmo (embora de forma desigual) à consciência popular.
A função deste livro é encorajar um debate — e nutrir uma perspectiva — que vai além da Aritmética Verde (Green Arithmetic): a ideia de que nossas histórias podem ser contempladas e narradas somando a Humanidade (ou a Sociedade) e a Natureza, ou até mesmo o Capitalismo e a Natureza. Tais dualismos são parte do problema: são fundamentais para o raciocínio que levou a biosfera à transição atual em direção a um mundo menos habitável. Quase não se percebe que as categorias de “Sociedade” e “Natureza” — Sociedade sem natureza, Natureza sem humanos — fazem parte do problema, intelectual e politicamente. O par Natureza/Sociedade, não menos do que os binarismos do eurocentrismo, do racismo e do sexismo, está diretamente implicado nas colossais violência, desigualdade e opressão do mundo moderno. Esse argumento contra o dualismo envolve algo abstrato — Natureza/Sociedade —, mas, ainda assim, muito material, pois a abstração Natureza/Sociedade historicamente se conforma a uma série sem fim de exclusões humanas — para não mencionar as disciplinas racionalizantes e as políticas de extermínio impostas sobre naturezas extra-humanas. Essas exclusões correspondem a uma longa história de subordinação de mulheres, populações coloniais e pessoas de cor — humanos que raramente eram membros da “sociedade civilizada” de Adam Smith (1937 [1776]).
Essas são, sem dúvida, questões de opressão. E também são fundamentais para a economia política do capitalismo, que jaz sob uma estratégia audaz de acumulação: a Natureza Barata (Cheap Nature). Para o capitalismo, a Natureza é “barata” em dois sentidos: por um lado, precifica os elementos da Natureza, dando-lhes um valor “barato”; por outro, barateia, degrada ou inferioriza a Natureza num sentido ético-político, para torná-la barata em termos de preço. Esses dois momentos estão entrelaçados a cada instante e em cada grande transformação do capitalismo dos últimos cinco séculos (Moore, 2015a).
Isso é importante para a nossa análise e também para nossa política. Os esforços para transcender o capitalismo de maneira igualitária e amplamente sustentável serão frustrados enquanto a imaginação política radical for refém da organização e/ou da realidade capitalista Natureza/Sociedade. E qualquer esforço para discernir os limites do capitalismo nos dias de hoje — crucial para qualquer estratégia antissistêmica — não pode ir muito longe se inserir a realidade em dualismos que são imanentes ao desenvolvimento capitalista.
O argumento do Antropoceno mostra que o dualismo Natureza/Sociedade está na etapa mais avançada de seu desenvolvimento. E se o Antropoceno — enquanto argumento histórico, em vez de geológico — é inadequado, ainda assim é um argumento que merece nossa consideração. Novos modos de pensar emergem de muitos passos hesitantes. Há muitos estágios conceituais no caminho para uma nova síntese. O conceito de Antropoceno é com certeza o mais influente desses estágios. Nenhum conceito firmado na mudança histórica foi tão influente ao longo do espectro do Pensamento Verde (Green Thought); nenhum outro conceito sociológico atraiu tanta atenção popular.
Formulado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer em 2000, o conceito de Antropoceno tem sua origem em uma posição eminentemente razoável: o tempo geológico e da biosfera foi transformado de modo fundamental pela atividade humana. Uma nova conceitualização do tempo geológico — uma que inclua a “humanidade” como “grande força geológica” — é necessária. Sem dúvida foi uma proposta corajosa. Propor que a humanidade seja um agente geológico é transgredir um dos limites intelectuais fundamentais da modernidade. Pesquisadores chamam isso de duas culturas — uma das ciências “naturais”, outra das ciências “humanas” (Snow, 1964 [2015]). No melhor dos casos, o conceito de Antropoceno mescla história humana e natural — ainda que o “como” e o “por quê” continuem imprecisos e gerem muita discussão. Tal nebulosidade certamente merece crédito pela popularidade do conceito. Assim como a globalização nos anos 1990, o Antropoceno se tornou uma palavra da moda, que pode significar qualquer coisa para as pessoas. Embora reforçado por avanços na história ambiental (Worster, 1988), o argumento do Antropoceno foi se cristalizando gradualmente: “ação humana” mais “Natureza” é igual a “crise planetária” (Chakrabarty, 2009; Steffen, Crutzen & McNeill, 2007). A Aritmética Verde, ao mutilar a história como agregação de relações humanas e naturais, triunfou.
Aritmética Verde. É um termo curioso, mas não consigo pensar em nenhum outro que melhor descreva o procedimento básico dos estudos ambientais ao longo das últimas décadas: Sociedade + Natureza = História. Hoje é Humanidade, ou Sociedade, ou Capitalismo + Natureza = Catástrofe. Não quero depreciar esse modelo. Ele foi muito poderoso. Forneceu a base filosófica para estudos que produziram uma gama de conhecimentos a respeito da mudança ambiental. Esses estudos, por sua vez, permitiram uma compreensão aprofundada dessa “mudança de estado” que está acontecendo na biosfera. Mas não facilitaram — pelo contrário — nossa compreensão de como a crise atual vai se desdobrar num sistema-mundo que é uma ecologia-mundo, reunindo poder, natureza e acumulação numa unidade dialética e instável.2 Este livro busca transcender os limites da Aritmética Verde. Isso nos permite buscar, nas palavras de Donna Haraway, “narrativas maravilhosas e desalinhadas” de história multiespécie, narrativas que apontam as possibilidades “para entrar no agora e, também, na história profunda da Terra” (ver Haraway, “Ficar com o problema”, neste volume, p. 67).
A Aritmética Verde funciona quando acreditamos que Sociedade e Natureza formam uma soma. Mas formam de fato? A meu ver, essa “soma” foi necessária — e, por muito tempo, bastante produtiva. A consolidação das ciências históricas sociais após os anos 1870 avançou como se a natureza não existisse. Houve exceções (por exemplo, Mumford, 1934), mas nenhuma que perturbasse o status quo antes da década de 1970. Então, energizados pelos “novos” movimentos sociais — de raça, gênero e meio ambiente —, vimos uma revolta intelectual importante. As lacunas no mapeamento cognitivo dominante da realidade foram preenchidas; o mapa cognitivo antigo, incapaz de ver a natureza, foi desafiado. Nos estudos ambientais, pesquisadores radicais defendiam uma visão relacional da humanidade-na-natureza (humanity-in-nature) e da natureza-na-humanidade (nature-in-humanity), por exemplo, Harvey (1974) e Naess (1973). Mas essa crítica relacional se manteve, em grande parte, filosófica. Acima de tudo, nossos conceitos de “grande história” (big history) — imperialismo, capitalismo, industrialização, comercialização, patriarcado, formações raciais — permaneceram processos sociais. Consequências ambientais foram acrescentadas, mas o conceito de história enquanto história social não sofreu mudanças fundamentais.
Hoje sopram novos ventos conceituais. Parece que estamos prontos para fazer e até para começar a responder a uma grande pergunta sobre a grande história: e se esses processos históricos mundiais não apenas produzem, mas também são produtos de mudanças na teia da vida?
A questão vira do avesso uma série de premissas que se tornaram marcas registradas do Pensamento Verde. Duas se destacam. Primeiro, somos levados a fazer perguntas não a respeito da separação entre humanidade e natureza, mas de que maneira humanos — e organizações humanas, como impérios, mercados mundiais — se encaixam dentro da teia da vida e vice-versa. Isso nos permite começar a fazer questionamentos situados, no sentido empregado por Donna Haraway (1988). Começamos a ver a organização humana como algo “mais do que humano” e “menos do que social”, como algo completa e variavelmente poroso dentro da teia da vida. Em segundo lugar, podemos começar a fazer perguntas acerca de algo talvez mais significativo do que a “degradação” da natureza. Não há dúvidas de que o capitalismo impõe um padrão incansável de violência sobre a natureza, inclusive sobre os humanos. Mas o capitalismo funciona porque a violência é parte de um repertório maior de estratégias que “colocam a natureza para trabalhar”. Portanto, nossa pergunta incorpora a tese da degradação da natureza, mas vai além: como a modernidade põe a natureza para trabalhar? Como combinações específicas de atividade humana e extra-humana trabalham — ou limitam — a acumulação sem fim do capital? Tais perguntas, longe de serem as únicas, indicam um novo modo de pensar a respeito da humanidade na teia da vida.