Por Horacio Machado Aráoz
Publicado em A Sirene
Por acaso ou pelo destino, coube-me conhecer Mariana e percorrer as áreas devastadas pelo colapso da barragem de Fundão em 12 de outubro de 2022. Os truques que nos foram pregados pela história emaranhada de datas marcadas pelo poder, a memória dirigida de hegemonias impressas em instituições e órgãos, estavam presentes naquele dia, de comemorações antagônicas. De um lado, a data evocava grandeza e épicos da “humanidade”; do outro, apenas dor infinita e perdas irreversíveis.
Enquanto em Madri aconteciam as obscenas celebrações do imperialismo e do colonialismo, explícitas no “dia da hispanidade”, aqui, no interior rural do Brasil, as populações iam em massa às igrejas católicas para celebrar o dia de Nossa Senhora Aparecida, também outra marca da colonialidade, embora esta já tivesse se tornado um campo de disputa.
A invocação da virgem negra — que “apareceu” em 12 de outubro de 1717 nas águas do rio Paraíba para salvar os peixes que iriam alimentar o banquete de uma importante autoridade colonial — parecia tentar encobrir com o milagre da abundância o que era o horror daquele primeiro 12 de outubro [de 1492], o da catástrofe original, que desencadearia esta Era de Catástrofes em que vivemos hoje. Entretanto, longe de ser oclusiva, a Aparecida foi (re)tomada e (re)significada pelos humildes e despossuídos, como um símbolo de proteção e r-existência.
Foi sob esses sentidos que a comunidade de Paracatu de Baixo se reuniu no último 12 de outubro. Entre as milhares de missas celebradas em homenagem a sua padroeira no Brasil, estávamos em um pequeno templo “resgatado” das ripas da Samarco. As marcas do crime, presentes em suas paredes, subindo quase até o próprio teto, como um documento histórico da catástrofe de 5 de novembro de 2015, quando um mar de lamas extinguiu para sempre o modo de vida que seus habitantes ali haviam cultivado por sucessivas gerações.
Naquele dia, naquelas circunstâncias e naqueles eventos, os tufões de flagelo da violência colonial estavam se agitando nos corpos. Em suas múltiplas formas, em sua dinâmica diacrônica e sincrônica convergindo em tal data, a violência da despossessão original reapareceu na violência criminosa de nosso tempo. Nestas múltiplas e antagônicas celebrações e comemorações, o colonialismo/colonialidades esteve presente como a espinha dorsal da era moderna, uma verdadeira era de catástrofes socialmente produzidas e politicamente naturalizadas.
A colonialidade busca precisamente isso. Ela procura naturalizar as catástrofes, produzir sensibilidades e subjetividades acostumadas a viver com a dor da depredação e a desconsolação da injustiça. Ela transforma ruínas em monumentos históricos, e a história em uma memória tendenciosa que oclui sistematicamente o derramamento de sangue na construção da “proeza” da “Humanidade”. Pode-se dizer que Mariana é marcada por estas marcas pedregosas da colonialidade.
Mariana, uma cidade tombada, cheia de momentos e edifícios históricos, assim como Ouro Preto; carregando uma memória do passado imperial dourado, dos tempos do boom do ouro, e do comércio de escravos. As ruas empedradas, as calçadas pitorescas com pedras colossais nunca param de me olhar e gritar: eu os vejo e ouço os gritos de tantos corpos humanos massacrados na escravidão; sua força e capacidade de trabalho espremidas até a última gota, para enobrecer uma história e uma paisagem de grandeza estrangeira, que foi forjada à custa de sua exploração.
Uma cidade que foi achatada e uma população arrasada… Monumentos históricos coexistindo com paisagens de puras ruínas. Marcas da lama que arrastaram biografias, paisagens e histórias de comunidades vivas para seu próprio fim do mundo. 05 de novembro de 2015: um evento apocalíptico, que finge ser apagado como tal na história colonial do “progresso”, assim como uma “contingência”.
O progresso da burguesia mineira, os lucros recordes da FIEMG, esmagando campos de milho, leite e cana-de-açúcar, capim, legumes; cobrindo nascentes imemoriais que davam água a humanos e não-humanos, a comunidades com vidas inteiras; esterilizando o solo e asfixiando os nutrientes dos quais nasce o leite do qual seus habitantes fazem seus queijos emblemáticos; os lucros da mineração minando os tecidos da reciprocidade, destruindo as cadeias alimentares dos lugares, os círculos da comensalidade, a confiança, o presente, a ajuda mútua, a generosidade aberta; os sistemas comunitários de segurança e proteção sobre os quais as populações afetadas construíram seu sustento. Qual será o nome certo para este crime-desastre; qual, se houver, é a palavra certa para descrever sua natureza, suas condições de produção e seus efeitos duradouros? O que é este evento em si? Como nomear suas “vítimas”? O que significa exatamente ser “um/a atingido/a”?
Despossessão: crime político, evento apocalíptico
A temperatura da água do rio mostra o abate de árvores causado pela lava derramada. O calor, como sintoma do fogo devastador, é uma violência sutil que permanece na água corrente; quem sabe como afetará os peixes, a flora fluvial e ribeirinha, os micróbios, insetos e aves que vivem em seu ambiente; como a água que não os refresca mais terá gosto para o gado e as cabras… No mesmo banco, pode-se ver um grupo desvalorizado de coqueiros, dos poucos que ficaram de pé após a tragédia; alguns estão de pé mas já mortos, outros estão morrendo, com suas folhas finas e murchas, alguns são resistentes e parecem estar melhorando relativamente… todos com a marca do lama nas alturas de seus troncos.
As palavras de Dona Ana Maria (mãe de Clodoaldo, ambas reexistindo ao lado de sua fazenda leiteira dizimada pela lama) penetraram em meu sistema perceptivo como uma adaga para me deixar com uma frase indelével. “A bagunça da lama não se sai da cabeça… Fica lá… não se pode tirá-la…”. E os testemunhos, todas as vidas afetadas pelo crime da Samarco, confirmam isso. O ruído das enchentes varrendo tudo o que está à sua frente é registrado para sempre. O cheiro fétido e mórbido do mar de lama comendo os territórios da vida, permeia a vida diurna e assombra o mundo dos sonhos; ele transforma tudo em um pesadelo. A bagunça da lama não consegue sair da cabeça por causa de seu ruído e seu cheiro. É o cheiro do fim do mundo. A professora Andréa me diz que a primeira vez que ela caminhou pelas ruínas do território de Bento Rodrigues, Seu José Barbosa lhe disse: “Em três segundos, os 43 anos de minha vida terminaram”.
Não há palavras para conter a violência de 50 milhões de toneladas engolindo centenas, ou mesmo milhares de anos de vida em apenas alguns segundos. Os testemunhos de seus sobreviventes me sacodem visceralmente. Não se pode permanecer indiferente, imparcial, diante deles; a menos que a indolência já tenha afetado seriamente a humusidade do organismo humano. A questão do que significa ser uma vítima está, com razão, sem resposta.
O que é um “atingido/a”? O que é? Que estado mental, afetivo, social, psíquico-somático um “atingido/a” enuncia? Qual é a sensação de ser um? Ter passado pela experiência traumática de ver a lama tirar sua vida? Acordar no dia seguinte e ver tudo feito e semeado sob os escombros e a lama avermelhada da energia? Como subsistir e reexistir deste evento extremo de violência colossal e nua?
A empresa, de infinita crueldade e cinismo sem limites, brinca com o sofrimento dos atingidos; especula com sua dor, com suas enfermidades, com suas esperanças, com seus sonhos e pesadelos. Ela apenas especula. Nunca esteve interessada em consertar nada; os habitantes nunca estiveram em sua mira como “sujeitos de direitos”, muito menos como seres dignos de respeito. Para elas, as vítimas são, como o próprio crime que as criou, uma contingência de seus negócios; uma tabela em sua Excelência contábil, ou seja, um custo cujo único objetivo na racionalidade dos negócios é ser reduzido ao mínimo de expressão. Em cada operação de redução de custos, a impunidade é perpetuada; a crueldade é exercida de forma viciosa sobre vidas sobreviventes. De seu nome, “Renova”, a empresa Samarco criada para esconder e lidar com suas “contingências” fala da leveza desumana com a qual o crime é tratado. “Renova”, que nome é esse? O que é suposto à “Renova” renovar? Certamente não a vida. A Renova renova o sofrimento, a impunidade e a injustiça. Renova é a dor e o nome do irreparável. Renova renova os massacres históricos da mineração colonial; o colonialismo e a colonialidade, sua ripa de pilhagem, de territórios devastados e vidas afogadas na ganância pelo metal.
A vida das comunidades, suas paisagens, memórias e conhecimentos não é algo que simplesmente se apaga com um golpe de caneta e depois se “renova”. Não há renovação; não há reparação possível… Somente aqueles que são afetados podem vir a renovar seu compromisso com a vida; não que tenham uma vida nova e renovada, mas somente uma na qual devem recomeçar suas vidas, sobreviver com o peso da catástrofe sobre seus ombros. Marino, marido de Maria, ambos criadores de cabras, vacas, cavalos e queijos deliciosos, diz: “Somos como prisioneiros, vivendo uma vida dentro de uma prisão… Não temos para onde ir; não podemos pensar em nosso futuro; não podemos fazer planos para nossas vidas, até que a Samarco chegue à idéia de acabar com a reparação; somos prisioneiros da empresa mineira”.
Vida congelada, colocada entre parênteses, em uma temporalidade que corre, mas de fato estagnada; estagnada na tragédia, na impunidade, em uma situação de violência estrutural que se prolonga pelos longos tempos de “justiça” que não chega e pela incerteza que se torna carne e vida cotidiana… Viver sem poder retomar o próprio rumo, privado do direito elementar de construir o próprio sentido de existência… Viver uma vida interrompida, sem poder ser retomada, reapropriada… Talvez essa seja a violência mais aguda e insuportável criada por esse ato criminoso… Uma dor mais insuportável do que a própria lama.
Enquanto isso, os juízes e todo o sistema institucional colonial mostram suas imperfeições, incompetência e suborno; eles também continuam fingindo fazer o impossível: como fazer justiça diante de vidas destruídas? Como atribuir um valor ao irreparável, ao irreversível, ao insubstituível? A vida, por definição, não tem preço; ela não pode – justamente – ser traduzida para o idioma de valor de troca.
Re-existir; terra-xistir… A vida como um movimento apocalíptico-terrestre.
A questão da entidade ontológica de um/a atingido/a é um bumerangue contra um sistema construído sobre a crueldade e o cinismo. Não se trata de uma pergunta a ser respondida. É um grito de denúncia que surge das profundezas da carne que tem sido flagelada pelo apocalipse.
Bruno Latour (2017) propôs que a humanidade hoje está dividida em três grandes grupos: aqueles que “estão situados antes do apocalipse” que “são aqueles que vivem na doce inocência ou na ignorância crassa”; aqueles que estão situados depois do apocalipse, que “nenhuma trombeta do apocalipse será capaz de despertá-los de seu sono, e eles descerão como sonâmbulos para formas mais ou menos confortáveis de aniquilação”. Latour, ele só tem esperança para aqueles que estão situados durante o apocalipse, que são aqueles que, por terem passado por essa experiência apocalíptica, “sabem que não escaparão do passar do tempo”; sua “paixão apocalíptica não tem outro objetivo que impedir o apocalipse” (Latour, 2017: 245).
Minha mãe, também professora de vida, teóloga autodidata e discípula de comunidades apocalípticas, quis me ensinar que o apocalipse – contra as crenças coloniais feitas corpos – não é um evento, mas um movimento. Historicamente, é um “movimento de crentes que nasceu cerca de 700 anos antes de Jesus e que a igreja oficial conseguiu ‘sufocar’ e desviar o significado do mesmo. Com linguagem mítica – para não serem interpretados pelo império dominante – eles aludem à construção de uma nova sociedade, aqui na terra“. No quadro hermenêutico da Teologia da Libertação, é um movimento ainda mais radical que o profético, que visava “mudar o coração daqueles que têm o poder de governar”; no horizonte apocalíptico, “tratava-se de acabar com o próprio sistema de governo; de revolucionar a ordem do Império”.
Por acaso ou não, em 12 de outubro, em Paracatu de Baixo, no templo marcado pela lama da Samarco, foi lida uma passagem do Livro do Apocalipse. Sem saber seu significado revelado mais tarde, aquela única palavra me abalou e fez sentido para mim tentar entender tal paisagem em ruínas. Acho que a pergunta certa a ser feita não é o que significa uma pessoa presa? Mas onde ele/ela obtém a força para sobreviver, para reexistir?
Em lágrimas, as palavras de Patrícia vêm à minha mente: “Sempre pensei que somente a força sagrada das comunidades poderia deter a força devastadora da mineração. Com essa esperança e essa convicção comecei a participar dessas lutas… A revolução contra a mineração nasce das comunidades afetadas, porque nem mesmo os sindicatos defendem os direitos dos trabalhadores mineiros”. Sua companheira ativista Maria Teresa Corujo, Teca, também explica a centralidade da mulher neste movimento: “Esta luta exige um esforço sobre-humano. Muitas sucumbem; simplesmente não suportam… Acho que nós mulheres continuamos a perseverar mais, porque sabemos como compartilhar a dor; choramos e saímos de cada reunião chorando, mas fortalecidas. Nossa cultura cria um impedimento para que os homens sejam emotivos. Há um mandato que os leva a suprimir sua afetividade e isto os torna mais fracos e vulneráveis. É somente compartilhando a dor que podemos caminhar através desta luta”.
Sobreviver. Re-existir. Viver com a consciência de ser Terra que vive em um tempo apocalíptico, ou seja, um tempo permeado pela consciência de que sustentar a vida requer pôr fim a este sistema necro-econômico que nos tirou o mundo, o mundo da vida, e está devorando a Mãe-Terra, corroendo o húmus do humano.
Referências:
Latour, Bruno (2017). Cara a cara con el planeta. Una nueva mirada sobre el cambio climático alejada de las posiciones apocalípticas. Buenos Aires: Siglo XXI.
Passos, Flora d’El Rei Lopes (2022). Mariana: cidade tombada, territórios tomados. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG.
Zhouri, Andréa, Norma Valencio, Raquel Oliveira, Marcos Zucarelli, Klemens Laschefski, Ana Flávia Santos (2016). O desastre da Samarco e a política das afetações: classificações e ações que produzem o sofrimento social. Em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2016/09/v68n3a12.pdf
(*) Este texto não poderia ter sido escrito sem a valiosa colaboração de Andréa Zhouri e Klemens Laschefski, que compartilharam comigo sua vasta experiência e conhecimento profundo da realidade do extrativismo no contexto do estado de Minas Gerais e do Brasil em geral. Sou especialmente grato a Klemens pela visita guiada às áreas afetadas pelo crime Samarco, a Maria e Marino, a Dona Ana Maria e Clodoaldo que me abriram as portas de suas casas e suas vidas para me contar suas vivências do apocalipse; Patricia e Teca, por também me convidarem de seus saberes forjados na luta.