O gosto amargo de 2023
Querides,
2023 foi certamente um dos piores anos dos últimos tempos. Começamos e terminamos o calendário com notícias de genocídios: primeiro, dos Ianomami, em Roraima, vítimas de um criminoso descaso governamental e do avanço irrefreável do garimpo; depois, dos palestinos, em Gaza, onde mais de dez mil crianças já morreram devido à também irrefreável ofensiva israelense, apoiada desde a primeira hora pelos Estados Unidos e pela Europa, apesar de toda a barbárie que pulula na imprensa.
Com mais um ano da guerra na Ucrânia e tantos outros conflitos espalhados pelo mundo, 2023 registrou, de acordo com o levantamento de um centro britânico, um dos maiores índices de mortalidade desde a Segunda Guerra Mundial, atrás apenas de 1950, quando eclodiu a Guerra da Coreia, e de 1994, data do tristemente célebre genocídio de Ruanda. Esse morticínio indica uma (nem tão) nova fase do capitalismo internacional, com a falência total do discurso dos direitos humanos e a institucionalização indisfarçável da necropolítica.
Para além da violência, 2023 também foi o ano em que a Terra registrou recordes históricos de altas temperaturas. Nos últimos doze meses, as mudanças climáticas começaram a deixar de ser apenas previsões científicas para se tornar palpáveis por qualquer terráqueo que se dê ao trabalho de olhar em volta. No Brasil, tivemos ondas de calor, seca na Amazônia, ciclones e enchentes no Sul, tempestades violentas no Sudeste, quedas prolongadas de eletricidade enquanto o país registrava as maiores taxas de consumo de energia de todos os tempos. E é só o começo.
Tudo indica que temos diante de nós um cenário desolador, resultado da combinação explosiva entre guerra generalizada e colapso socioambiental, com ameaças constantes de conflagração atômica e uma guinada global à extrema direta — o bolsonarismo e suas múltiplas variações estão vivíssimos, como demonstra a vitória de Javier Milei na Argentina.
Talvez, em 2024, ou dentro de alguns anos mais, sintamos saudades do que estávamos vivendo em 2023. Às vésperas da virada, porém, estamos aliviados por saber que esses dias tão deprimentes ficaram para trás. A esperança (porque é preciso esperançar) é que não se repitam.
Na verdade, tem sido assim ano após ano. Ao escrever esta carta, no final de cada dezembro, minha sensação é a mesma: um lamento pelos acontecimentos dos últimos doze meses, seguido de uma comemoração envergonhada pelas conquistas que tivemos na Elefante. Um luto global, quebrado aqui e ali por um sorriso pessoal. Quantos de nós estamos vivendo da mesma maneira? E por quanto tempo mais conseguiremos viver dessa maneira?
2023 possivelmente foi o melhor ano da editora. Modernizamos nosso logo, reconstruímos nossa equipe, realizamos desejos antigos de produzir uma bolsa em homenagem à bell hooks e uma agenda, ampliamos nossa presença nas redes sociais e na imprensa, vimos nossos lançamentos despertar grande interesse em leitores e leitoras, aprofundamos parcerias com parceiros estratégicos, trouxemos Silvia Federici para eventos em Paraty, São Paulo e Sorocaba, publicamos dezenove novos títulos.
Ainda assim, não consigo simplesmente comemorar sem perceber um gosto amargo na boca. E não tenho muito mais o que dizer, além de pontuar que, para nós, na Elefante, os livros são uma militância — que sabemos insuficiente diante de tantos e tão graves desafios, mas que é o que sabemos e queremos fazer, na esperança de que um dia, de alguma forma, em algum lugar, esses livros frutifiquem mundos melhores.
Mais uma vez, e sempre, obrigado por estarem conosco.
Continuemos juntos, em manada.
Tadeu Breda,
editor