Causas da invasão norte-americana no Panamá — leia capítulo de ‘América Central’
América Central: desafios e resistências no século XXI é o novo título da coleção Realidade Latino-Americana e traz mais de 40 artigos a partir de viagens a Guatemala, El Salvador, Honduras, Panamá e Costa Rica. Apresentamos abaixo o capítulo 30, que abre a parte Política Contemporânea (veja o sumário aqui): Causas da invasão norte-americana no Panamá, 20 de dezembro de 1989. O texto é de Olmedo Beluche, panamenho, doutor em Humanidades com ênfase em Sociologia e professor na Universidad de Panamá. A tradução é de André Vilcarromero. Nesta outra postagem no blog, é possível ler a introdução da obra. O livro tem organização de Fabiana Rita Dessotti, Fabio Luis Barbosa dos Santos, Patrícia Sposito Mechi e Vitor Wagner Neto de Oliveira.
Causas da invasão norte-americana no Panamá, 20 de dezembro de 1989
Os objetivos da invasão estadunidense do Panamá em 1989 podem ser resumidos em três: os relacionados à estabilização da situação política e ao tipo de regime necessário para obtê-la; os econômicos, que estavam muito vinculados com o objetivo anterior, isto é, a aplicação do plano neoliberal; e os geopolíticos, ou seja, o problema das bases militares e de seu controle sobre o Canal do Panamá.
Em relação ao primeiro e ao segundo objetivos, é importante lembrar que o processo de democratização pactuado entre os militares panamenhos e o imperialismo estadunidense foi estilhaçado pelas lutas dos trabalhadores contra os planos de reforma estrutural. Muitas pessoas, no calor das contradições surgidas entre a Casa Branca e Manuel Noriega a partir de 1987, se esquecem de que o plano de “democratização” foi pactuado entre o exército do Panamá e Washington durante a assinatura dos Tratados Torrijos-Carter em 1977.
Entre 1968 e 1977, o Panamá esteve governado por um regime militar que adquiriu um caráter populista, comandado pelo general Omar Torrijos, com o objetivo de conseguir que os Estados Unidos aceitassem repassar à jurisdição panamenha a antiga Zona do Canal, entidade colonial criada em 1903, durante a construção do Canal do Panamá. Esse objetivo se concretizou nos tratados de 1977, assinados pelo chefe de Estado panamenho, Omar Torrijos, e pelo presidente norte-americano, Jimmy Carter.
Omar Torrijos morreu em 1981 em um acidente aéreo, que muitos consideram um assassinato. A partir de 1983, o general Manuel Noriega assumiu o comando das forças públicas, tornando- se o líder de facto do país, até o dia da invasão estadunidense em 20 de dezembro de 1989.
As contradições entre os militares panamenhos e os estrategistas do Departamento de Estado só surgiram em 1985, quando as lutas populares haviam afetado a estabilidade política do regime e suas “reformas” econômicas. Lembremos que a década de 1980 se caracterizou pela aplicação dos programas neoliberais na América Latina. O Panamá não escapou dessa circunstância. Em 1984, os Estados Unidos pactuaram com o general Noriega a presidência de Nicolás Ardito Barletta, ex-funcionário do Banco Mundial, que ficou menos de um ano no poder.
Barletta lançou um duro plano de reformas que incluíam privatizações, congelamento de salários e demissões. A reação popular deu origem a uma onda de greves e mobilizações que terminaram colocando o governo em xeque. A partir da luta contra as medidas econômicas, as pessoas também começaram a exigir democracia e a saída de Noriega do poder.
Essa é a origem das contradições: em 1986, um setor da burguesia panamenha e o Departamento de Estado norte- americano começaram a exigir que os militares panamenhos adotassem medidas concretas e críveis perante o povo e se retirassem da atividade política, cedendo o poder aos civis, subordinando-se ao presidente da República. Era necessário estabelecer um calendário de “democratização”, em que a data-chave era a retirada ou a aposentadoria do general Manuel Noriega, que aos olhos de todo o mundo era o homem forte do Panamá. Se não fizessem isso, não haveria maneira de dar legitimidade ao governo e ao regime, pois as massas panamenhas não engoliriam o conto da “democracia”.
O general Noriega havia sido por doze anos chefe da contrainteligência da guarda nacional, sob o comando de Torrijos. Quando assumiu a condução da força pública e, na prática, do Estado, formulou um plano para converter a guarda nacional em um exército moderno, as Fuerzas de Defensa. Seu objetivo era que, ao retomar o canal e a zona adjacente, o exército panamenho substituísse os norte-americanos nas funções de segurança e custódia do canal.
A resolução da crise se complicou até um acordo se tornar impossível graças às particularidades históricas panamenhas, uma vez que o problema nacional e a presença norte- americana determinam decisivamente os acontecimentos políticos. Assim, uma crise que em qualquer outro país latino- americano provavelmente teria se resolvido em um tempo menor, com a imposição de seus projetos por parte do imperialismo norte- americano e de seus aliados internos no Panamá, se prolongou por dois anos.
Devido ao enraizado sentimento anti-imperialista de importantes setores do povo panamenho frente à permanente intromissão norte-americana nos assuntos do país, uma parte notável do movimento operário cessou suas lutas contra o regime e seu plano econômico, conforme aumentavam as pressões norte- americanas. E, ainda, parte importante da classe operária e das camadas médias da sociedade apoiou ativamente Noriega, porque o via como a cabeça da luta nacionalista panamenha.
Certamente, esse feito não está em contradição com o apoio massivo recebido pela Cruzada Civilista, frente opositora encabeçada por grêmios empresariais (como a Câmara de Comércio) e associações profissionais (como médicos e professores), com raízes na classe média. Porque, mesmo que minoritários em comparação com os civilistas, não se pode ignorar que o nacionalismo levantado pelo regime militar também teve apoio de milhares de ativistas.
Essa base social ativa ou passiva foi o que permitiu ao regime militar panamenho sobreviver a dois anos de crise política aguda, sanções econômicas e pressões de Washington. Junto com a base social interna, temos de somar o apoio internacional à causa panamenha frente ao imperialismo estadunidense, o qual sempre impediu que a OEA votasse uma resolução de condenação ao regime panamenho, sem que, por outro lado, precisasse condenar a intromissão estrangeira. Noriega, sem ser um anti-imperialista consistente nem um nacionalista, apoiou-se nessas contradições reais existentes entre Panamá e Estados Unidos para sobreviver politicamente, convertendo-se em porta-voz da causa nacionalista panamenha.
Essas diferenças não eram meras nuances; nelas estava a base do problema concreto sobre qual fração deteria o poder e seus privilégios. O triunfo de um setor eliminava o outro. Essas contradições internas da classe dominante panamenha ficaram mais agudas às portas da última década do século, momento em que, de acordo com os Tratados Torrijos-Carter, deveriam ser repassadas valiosas instalações e terrenos, assim como o próprio canal, à soberania e à economia panamenhas. A fração da burguesia que ditava os destinos políticos do país seria, sem dúvida, a maior beneficiária da privatização dos “bens repassados”, avaliados em cerca de trinta bilhões de dólares.
O imperialismo norte-americano queria a destruição do aparato das forças armadas do Panamá por ser um ator “nacionalista”? Não. O comportamento dos militares panamenhos, até o princípio de 1987, não representava ameaça para os interesses de Washington. Por que destruir um aparato cuidadosamente construído pelo próprio Comando Sul dos Estados Unidos? As declarações dos porta-vozes da Casa Branca e as resoluções do Senado chegavam a apelar reiteradamente para que Noriega estipulasse uma data de sua retirada.
A invasão do Panamá se concretizou em meados de 1989, quando a crise panamenha chegou a um ponto sem saída e se conjugou com um plano do exército norte-americano para recuperar prestígio e tentar superar a “síndrome do Vietnã”, realizando ações militares diretas em outros países.
Segundo o jornalista norte-americano Bob Woodward, a administração do presidente George H. W. Bush começou a planejar seriamente a invasão em maio de 1989, após a anulação das eleições panamenhas. No entanto, no mês de julho daquele ano, o general Frederick Woerner, chefe do Comando Sul, se opunha à ação armada, sendo substituído pelo general Maxwell Thurman. Já em outubro de 1989, a decisão de invadir estava tomada, e simplesmente se acertavam os detalhes.
Por isso, os Estados Unidos não apoiaram o major Moisés Giroldi e os golpistas de 3 de outubro de 1989 que tentaram derrubar o general Noriega. No começo, os serviços de inteligência norte-americanos insinuaram para Giroldi que o apoiariam, mas, no dia do golpe, os deixaram sozinho, sendo derrotado pelos leais à Noriega e posteriormente fuzilado.
As políticas neoliberais aplicadas por todos os governos da pós-invasão, assim como os acordos de segurança com o Pentágono e a alternância eleitoral no poder — pactuada entre os partidos políticos em janeiro de 1990 —, corroboram essa tese.
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Foto: Jayme Perin Garcia











