
A bomba como exemplo; os mortos como ‘material de ameaça’
Hiroshima está em toda parte, de Günther Anders, é um compilado de três livros do autor alemão em edição que acaba de ser lançada pela Elefante. É também o tema da nossa nova temporada do podcast Elefante na Sala, em cinco episódios, a partir de 10 de julho – ouça aqui o teaser do Especial Hiroshima. Segue abaixo um trecho do texto de Günther em sua visita ao Japão, presente na primeira parte do livro, chamada O homem sobre a ponte: diários de Hiroshima e Nagasaki, de 1958.
Por Gunther Anders
À noite
Passei por um cinema cujo cartaz do lado de fora mostrava um homem deitado no chão, ferido de morte, sendo chutado por outro homem. Um terceiro aparecia, pálido, no fundo. Só agora entendo por que fiquei tanto tempo diante dessa figura vulgar e vista milhares de vezes antes. Trata-se da imagem do que aconteceu por aqui:
É costume geral (em parte por razão cronológica, em parte porque o número de mortos acabou “limitado” aqui a setenta mil devido a uma casualidade geográfica) identificar Hiroshima como o símbolo; a dizer seu nome em primeiro lugar, ou seja, dizer “Hiroshima e Nagasaki”. Esse costume é injusto. Para os moralistas, Nagasaki deveria estar em primeiro lugar, deveria ser assim: “Nagasaki e Hiroshima”. Pois esse segundo ataque foi ainda mais maldoso (caso haja algum sentido nessa comparação) do que o primeiro. Também aqueles meus amigos de Tóquio que, por um senso de justiça exagerado, tentam achar algo estrategicamente justificável em Hiroshima, ou que, na condição de cristãos, se esforçam para validar o ataque como “merecido”, emudecem quando escutam o nome Nagasaki e em seguida ficam petrificados. Pelo seguinte motivo:
Todos sabem que, após o primeiro ataque nuclear, o Japão tinha ido à lona, desfalecido, e estaria disposto à capitulação incondicional. Nos Estados Unidos também não há ninguém que duvide disso. E alegam que, na época, havia dúvida a respeito entre as instâncias responsáveis dos Estados Unidos. Afinal, os duvidosos tinham possibilidade de, em vez de repetir o ataque nuclear de imediato, somente ameaçar com a repetição do ataque. “Somente.” Parece incompreensível que não o tenham feito.
Mas só parece. Pois eles realmente ameaçaram. E de um jeito totalmente inadequado. A explicação do que quero dizer é um pouco difícil, pois a relação usual entre ameaça e ação foi colocada de ponta-cabeça aqui de maneira diabólica. Normalmente faz sentido e é justo distinguir entre a ameaça da ação e a ação em si.
Entretanto, a ameaça da ação já é uma ação. Foi assim com o ultimato de Hitler a Beneš, de bombardear Praga “se…” — ou seja, uma ameaça com a ação (não realizada) que já é uma ação em si. Mas a ameaça como ação, ou seja, a chantagem, e a ação ameaçada (não realizada) permanecem duas coisas distintas.
Mas aqui, no caso de Nagasaki, essa relação foi invertida. Desse modo, tudo o que é habitual entre políticos e chantageadores profissionais ficou para trás. Pois não se ameaçou com uma ação (um ataque, que aconteceria “se”), mas por meio de um ataque que realmente aconteceu. Essa ação real era uma ameaça na medida em que era endereçada a alguém que, por seu intermédio, deveria saber que “se” o ataque acontecesse, ele teria de presenciar a repetição desse ataque. E o que importava àqueles que realizaram o ataque — ou seja, o literal banho de sangue — não era o banho de sangue em si, mas exclusivamente a mensagem da ameaça que estavam transmitindo com esse banho de sangue.
Eu mencionei que o ataque tinha sido endereçado “a alguém”. A indeterminação foi proposital. Mas quem era o destinatário?
Em ações habituais de guerra, ameaçado e agressor são idênticos. Um lado ameaça o outro com um ataque; um lado ataca o outro que acabou de ser ameaçado.
Mas aqui — e eis a novidade do evento — os dois lados se distinguem. Não se pode dizer que a ameaça valia àqueles que a sofreram, ou seja, aos japoneses. Afinal, o Japão não precisava de mais ameaças. Elas estavam destinadas ao “inimigo do amanhã” da época, a quem se queria intimidar pela exemplificação da catástrofe, de acordo com o provérbio “Se você quer assustar o carneiro, mate o filhote”. Visto que a guerra contra o “inimigo do amanhã da época”, ou seja, a chamada “Guerra Fria”, ainda estava no estado da mera possibilidade; visto que ameaças diretas contra esse inimigo ainda não estavam sendo sopesadas, era preciso lançar mão de algo indireto, um disfarce. Esse algo indireto foi encontrado (e, com isso, a perversidade do caso se torna patente) justamente na ação mais direta, o disfarce da nudez mais nua. Ou seja, um ataque real, que apenas não foi direcionado àqueles que se pretendia ameaçar, mas àqueles que ainda era permitido tratar como inimigos, mesmo se, de fato, a guerra já tivesse terminado. Resumindo: os últimos momentos do estado de guerra contra o Japão foram usados para aplicar uma ação, uma ameaça, que não seria possível após a capitulação. Um banho de sangue foi promovido a fim de se aplicar esse gesto de ameaça.
Desse modo, os setenta mil assassinados não foram assassinados porque ainda eram inimigos, muito menos inimigos perigosos; mas simplesmente porque seu assassinato em massa devia ser um exemplo, porque era possível emprestar uma função a setenta mil cadáveres, porque era possível empregá-los como “material de ameaça”.
Note essas palavras: banhos de sangue como gesto de ameaça contra um terceiro; mortos como material de ameaça. Essas expressões são novas e feias, mas só porque as coisas são novas e feias. E repita as palavras, para que as coisas não desapareçam da sua frente. Pois elas são muito mais terríveis do que você poderia manter em evidência na mente, de maneira ininterrupta, caso um dia as tivesse visto. Ou seja: banhos de sangue como gestos de ameaça e mortos como material de ameaça. E não se esqueça: esse golpe não foi dado na última guerra quente, mas fazendo uso da chance aventada por uma guerra ainda não totalmente resfriada, já em vias de se tornar uma guerra “fria”, uma “guerra de manobras”. Os setenta mil carbonizados sob a cama na qual estou deitado não são soldados mortos; não são mortos de guerra, mas mortos por manobras. Lembre-se dessa expressão também. Diga: mortos por manobras.
O caso é típico para hoje. Não há nada que melhor caracterize a essência de nosso tempo que o fato de serem sistematicamente borrados os limites entre “teste” e “caso concreto”, entre “ameaça” e “ato”, entre “guerra fria” e “guerra quente”. O exemplo clássico disso hoje em dia são os “testes de explosão”, que, embora supostamente sejam apenas “testes”, geram eventos que terminam em mortes, ou seja, são “casos sérios”. Mas essa mancha não é nova. Já existia em 1936. Pois as manobras da Luftwaffe alemã e a ameaça de Hitler com a Segunda Guerra Mundial tinham acontecido na forma de uma guerra de verdade, a “Guerra Espanhola”. E também os mortos de Guernica são “mortos por manobras”. Desta vez, foram os japoneses.