A crueldade como política de Estado

Por Verónica Gago
Publicado em Le Monde Diplomatique

 

A crueldade tornou-se um termo crítico, sinalizando que a violência governamental ultrapassou um limite e atingiu um novo patamar. Mas qual é a diferença entre violência e crueldade? O que a noção de crueldade adiciona a uma análise da violência?

Inicialmente, a crueldade implica um prazer associado à execução da violência. Este prazer, ou “gozo”, como a psicanálise se refere, está no cerne do enigma da crueldade. O que significa, então, seu desenvolvimento como política de Estado? Existe algo na soberania do Estado que não esteja relacionado ao exercício da crueldade? É possível um Estado sem crueldade? E o que há de novo na utilização da crueldade pelo governo de Javier Milei?

Origens

No livro Historia de la crueldad argentina. Julio A. Roca y el genocidio de los Pueblos Originarios (História da crueldade argentina: Julio A. Roca e o genocídio dos Povos Originários, em tradução livre), compilado por Osvaldo Bayer e editado por Diana Lenton, Bayer usa o termo “crueldade” para descrever as torturas sofridas pela população indígena no século XIX. Ele também o associa a uma lógica social: “A crueldade emergia em uma sociedade criolla europeizada, profundamente racista.” Juan Bautista Alberdi, um dos autores da Constituição Nacional e referência de Milei, escreveu: “Não conheço pessoas distintas de nossas sociedades que levem sobrenome pehuenche ou araucano. Alguém conhece algum cavalheiro que se orgulhe de ser índio? Quem de nós casaria sua irmã ou filha com um índio da Araucânia? Preferiria mil vezes um sapateiro inglês.”

Esta “genealogia” da crueldade é fundamental, ligando-se diretamente ao racismo fundacional do Estado-nação e às descrições do extermínio que Bayer historiza. Além disso, como Alberdi indica, está relacionada a linhagens de sangue: o extermínio favorece certos sobrenomes e famílias que concentram terra e orgulho racista.

O governo atual ao reivindicar a Campanha do Deserto, não está apenas sendo anacrônico. Está recuperando a lógica do saque como política, refletida em projetos como o Regime de Incentivo para Grandes Investimentos que concede enormes benefícios fiscais a empresas estrangeiras, eliminando a regulação ambiental. A reivindicação da Campanha do Deserto cria uma continuidade entre os séculos XIX e XXI. A história da crueldade descrita por Bayer busca entender as raízes do desaparecimento sistemático de pessoas durante a última ditadura, indicando que esses métodos não surgiram recentemente.

Essa associação entre o Estado-nação e a crueldade levou o filósofo francês Jacques Derrida a dedicar um de seus discursos sobre os “Estados Gerais da Psicanálise” ao vínculo entre crueldade e soberania: “Se a pulsão de poder ou a pulsão de crueldade é irreduzível, mais antiga que os princípios de prazer ou de realidade, nenhuma política poderá erradicá-la. Apenas poderá domesticá-la, adiá-la, aprender a negociar com ela.”

A análise de Derrida sublinha que a crueldade é perene e não pode ser eliminada, mas pode ser negociada ou adiada. Todo Estado tem suas “zonas” de crueldade, mesmo em tempos que não são considerados cruéis. A crueldade de Estado não começou com Milei, mas agora está adquirindo novas formas e intensidade.

A Crueldade Segundo Milei

Quando falamos de uma política de crueldade no governo de Milei, referimo-nos à maneira como a política institucional abandona deliberadamente, com prazer, todo mecanismo de negociação e adiamento da violência. Assim, a crueldade reaparece.

Aqui surge uma paradoxal: a política da crueldade marca o fim das mediações políticas destinadas a manter a violência à distância, resultando, ainda assim, em uma política. A política da crueldade aposta na governança sem mediações, usando a violência direta e espetacularizada como mecanismo de insensibilização.

Isso não é novo, mas ocorre em certos momentos: a questão é entender a lógica dessa repetição. A crueldade nua emerge quando a política é pura conquista, conectando a Campanha do Deserto, os massacres na Patagônia e a ditadura militar.

Essa sequência reflete o caráter colonial da política de Milei, que busca transformar o país em uma “zona de sacrifício” para a extração de lucros, ignorando limites ambientais ou sociais. Enquanto o mercado oferece produtos “cruelty-free”, a crueldade se torna regime político. O governo cita Alberdi, reivindica a Campanha do Deserto e figuras como Roca, ensaiando uma revisão da história democrática recente ao defender responsáveis pela última ditadura.

A Crueldade Social

A crueldade política exibe um prazer na violência direta, insensibiliza e perpetua uma filiação histórica. Esses elementos – prazer, insensibilização, história – devem ser analisados tanto no nível governamental quanto em suas ativações e implicações sociais.

Derrida fala de uma “irredutível pulsão de morte” para explicar a crueldade. Ele propõe seguir a palavra “crueldade” nos textos de Freud para entender um “além” dessa pulsão. Derrida aponta uma pulsão de domínio, um exercício de poder e posse, articulando uma ordem psíquica e política.

Isso é essencial para entender o “poder de fazer” exibido por Milei. Contra os que duvidavam de sua capacidade de cumprir promessas, Milei demonstra um poder e velocidade que mantém a duplicidade de ser ao mesmo tempo um fantoche das corporações e um outsider, governando sem partido, sem maioria parlamentar, e criticando constantemente a política tradicional. É esse “eu posso” que molda heróis nos quais Milei se vê refletido: Elon Musk, Marcos Galperin, Benjamin Netanyahu.

No comunicado de imprensa da oitava revisão do acordo com a Argentina, o FMI destacou que o governo “superou” as metas. Este supercumprimento representa um ataque às condições de sobrevivência da população. A violência se manifesta nas finanças, e Milei afirma que “se as pessoas não chegassem ao fim do mês, estariam mortas”. Pessoas estão morrendo por falta de medicamentos e pela crueldade lesbofóbica promovida pelo governo. A dívida é outra dimensão da crueldade, onde o prazer do credor em relação ao devedor difunde uma lógica de maltrato.

Sacrifício

Derrida, na linha de Nietzsche e Freud, sustenta que a crueldade não tem oposição e que uma política que a desviasse ou contivesse é um desafio clássico: a política como o “outro” da guerra. Mas, considerando o cenário global atual de guerra, haveria espaço para uma política que redirecionasse a agressividade do ódio para outras expressões (como o ódio das classes despossuídas contra os apropriadores)?

A ultradireita capitaliza e fomenta a introjeção da crueldade; um afeto de autossalvação frente à precariedade. A temporalidade de espera combina austeridade e endividamento pessoal, criando uma bolha especulativa subjetiva: continuar ajustando e endividando-se até que as coisas melhorem.

Essa crença no sacrificial é um estágio superior da meritocracia, só possível porque se instalou a ideia de que direitos são “privilégios” de certos setores, considerados obstáculos ao “igualitarismo” da competição. A recessão e a inflação aceleram a crise, sob um darwinismo econômico que pode até mesmo corroer as esperanças dos apoiadores de Milei. A política da crueldade, então, incita a violência horizontal entre os afetados, como a criminalização de mulheres que administram centros de cuidados comunitários, promovendo o antifeminismo como vetor de uma política reacionária. O ataque à economia popular busca moralizar a população contra aqueles que “vivem do Estado”.

A movimentação começa pela economia cotidiana, e a batalha ideológico-cultural se estabelece depois para canalizar o ódio gerado pela crescente precariedade. Silvia Federici aponta que a fascistização é uma estratégia que empodera o capital, reduz o investimento na reprodução social, e cria divisões mais profundas entre as pessoas, baseadas em classe e raça.

Estas questões são concretas. Elas se manifestam, por exemplo, na negociação da reforma trabalhista no Congresso. O governo coloca como moeda de troca temas-chave: as aposentadorias para donas de casa, canceladas com a eliminação da moratória, transformando-se em uma prestação única mais baixa, e a desregulamentação das poucas garantias das economias informalizadas, como o MEI social, que também é eliminado, limitando formas de demonstrar relação de dependência e anulando multas por trabalho mal registrado. Dessa forma, direitos relacionados à reprodução social de setores feminilizados e informalizados são sacrificados em troca da manutenção de fronteiras do “trabalho assalariado”.

Em suma, a política da crueldade fomenta a hierarquia entre assalariados e trabalhadores não assalariados, promovendo tensões e conflitos dentro das classes populares. A lógica da crueldade precisa ser replicada tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima. Para combatê-la, é necessário confiar em mecanismos que possam impor limites e redirecioná-la de forma eficaz e decidida.



Também pode te interessar