A dor da cor: a maior chacina da democracia brasileira e o RJ
Por Marcelo Campos, Patrick Cacicedo e Paulo César Ramos
Publicado em Diplomatique Brasil
A cor da dor, que deu origem ao título deste texto, é um artigo científico de livre acesso publicado em 2017 em uma das revistas mais conceituadas da área da saúde, a revista Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz. A pesquisa analisa as iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil com foco nas influências da raça/cor no tocante à experiência de gestação e parto, sendo inédita a análise de abrangência nacional. Com base populacional representativa de todo o território brasileiro, com entrevistas e avaliação de prontuários, o estudo totalizou 23.894 mulheres. Em suma, o artigo identifica as inúmeras disparidades raciais no processo de atenção à gestação e ao parto evidenciando um gradiente de pior para melhor cuidado entre mulheres pretas, pardas e brancas. Dos resultados mais relevantes: i) há piores indicadores de atenção pré-natal e parto nas mulheres de cor preta e parda, em comparação às brancas; ii) mulheres pardas e pretas sofreram menos intervenções obstétricas no parto que as brancas; iii) mulheres pretas recebem menos anestesia local quando submetidas à episiotomia; e iv) há um menor uso de analgesia nas mulheres pretas.
Duas décadas atrás, outro estudo em maternidades na cidade do Rio de Janeiro (Leal, 2005) também já havia diagnosticado uma menor oferta de procedimentos anestésicos no parto vaginal para mulheres pretas e pardas, com menores proporções ainda para as de menor escolaridade. Ou seja, nascer preto e pardo no Rio de Janeiro é um processo que se inicia com muita dor pelas mães que deram à luz aos seus filhos e filhas. Agora, morrer cedo, como vimos na maior chacina da história política após a democratização do país em 1988, também é um processo sem anestesia para as mães moradoras do Complexo da Penha e do Alemão que tiveram que reconhecer os corpos pretos e pardos dos seus filhos mortos na Praça São Lucas. E na dor das mães que perderam seus filhos policiais mortos na mesma megaoperação letal.
A dor também marca a vida dos moradores e moradoras das comunidades nas quais as facções criminosas exercem seus domínios territoriais, mas isso não será o ponto deste artigo, pois, é evidente que o domínio armado nos territórios por qualquer grupo organizado (com a coparticipação, algumas vezes, de agentes públicos e privados como ficou provado na operação recente contra as fintechs) é um processo de produção de vidas sob medo e de conflitos armados que resultam em mortes dos jovens. O ponto aqui a ser ressaltado é como uma megaoperação legitima a morte, ou mais ainda, as vidas que não podem ser consideradas ou perdidas, se não forem primeiro, consideradas como vida. Butler (2018, p.13) diz o seguinte: “Se certas vidas não são qualificadas como vidas, ou se, desde o começo, não são concebíveis como vida de acordo com certos enquadramentos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras”.
É somente a partir deste ponto, histórico no Brasil porque junta cor da pele à categoria de suspeição e de dor, que podemos compreender que as vidas dos 132 mortos na maior chacina da nossa história após a Constituição de 1988, não são vidas consideradas ou perdidas. Como afirmou o governador Cláudio Castro em entrevista coletiva: “A megaoperação no RJ foi um sucesso […] De vítima ontem lá, só tivemos esses policiais… A gente não fica aqui chorando, a gente fica trabalhando”. Fernando Gabeira também comentou a operação nessa mesma direção: “Vale a pena a gente examinar nessa operação porque é preciso ver que talvez tenha um número muito grande de feridos na parte policial. Apesar da operação ser muito bem sucedida e necessária, é importante compreender que não resolve o problema”. Logo entendemos, pelas duas entrevistas e falas de um político e de um ex-político, de que as vidas dos jovens mortos em confronto não são consideradas perdidas, nem vividas. Elas não são concebíveis como vivas porque as suas mortes representam justamente o “sucesso”. E que devem apenas ser consideradas as outras vidas, as vidas dos agentes de Estado. A política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro portanto é um enquadramento que ensina para as demais pessoas, para o público em geral, que já vivem sob tensão e cerco nos territórios conflagrados, que não devem ser vistas por uma moldura que apreende a vida dos outros como perdida ou lesada. A vida suscetível de ser perdida ou lesada aparece como uma operação de discurso de segurança pública e de poder como saturada. A fala de uma mãe moradora do Complexo é emblemática em entrevista a uma rede internacional: “[…] quero tirar meu filho daqui e enterrar porque aqui tem um monte de gente chorando, mas lá fora tem um monte de gente aplaudindo. Trouxeram alguma coisa com essa operação para mudar a vida dos jovens? Não mudaram é nada”.
Há ainda uma dimensão institucional que agrava o sentido político dessa operação. O Ministério Público, órgão que tem por função constitucional exercer o controle da legalidade da atividade policial e zelar pelo respeito aos direitos fundamentais, participou oficialmente da ação. Sob o discurso de que se tratava de uma operação voltada ao cumprimento de mandados de prisão, a instituição integrou uma intervenção que, na prática, não teve esse objetivo como resultado principal. As prisões realizadas decorreram majoritariamente de supostos flagrantes, e não do cumprimento dos mandados que justificaram formalmente a operação. O efeito central foi outro: o grande número de mortos, em uma ação que o Ministério Público tinha o dever legal de controlar e evitar. A contradição é evidente. A instituição encarregada de conter o arbítrio do Estado colocou-se ao lado das forças que o executam, contribuindo para legitimar uma operação que produziu o que deveria impedir. Quando o órgão de controle se associa à violência que deveria limitar, a legalidade deixa de ser garantia e se converte em instrumento de justificação do extermínio.
Stanley Cohen, em sua obra States of denial, oferece uma chave teórica útil para compreender como sociedades e Estados organizam a recusa diante de práticas de violência sistemática. O estado de negação não é aqui um simples mecanismo psicológico individual: é um dispositivo social e institucional que permite que atos de violência, quando praticados pelo Estado ou em conivência com ele, sejam transformados em práticas invisíveis, inevitáveis ou até justificáveis. A negação opera por deslocamento e por represamento: desloca a responsabilidade para agentes isolados, para “excessos” operacionais; represando o luto e a dor, impedindo que o sofrimento seja recebido como pedido de reparação política. Aplicado ao caso das grandes operações policiais, o conceito de Cohen explica por que as mortes em massa são tratadas como “efeitos colaterais” e não como resultados de políticas públicas que organizam o desaparecimento social de pessoas negras.
Essa negação não é neutra: ela produz e sustenta uma estratégia política. Quando o governador afirma que a operação foi “um sucesso” e coloca no centro as vidas dos agentes do Estado, está, deliberadamente, enquadrando a narrativa pública de modo a converter a exposição de corpos em instrumento de disputa política. Estender corpos no morro ou na praça é permitir que eles se tornem espetáculo, e que isso se converta em um ato de provocação que obriga o “outro lado” político a responder. Qualquer manifestação que não seja adesão explícita à barbárie pode ser convertida em sinal de compaixão por “bandidos” e, assim, transformada em ganho político para quem defende a ordem por meio da dor e da morte. Esse cálculo instrumental transforma o luto das mães em ruído político irrelevante: a dor materna deixa de ser sinal ético e passa a ser previsível, já contabilizada, enquanto o público televisivo é convocado a reconhecer na operação uma reafirmação de autoridade. A política pela morte não busca o desaparecimento tranquilo: busca a cena, o corpo exposto, porque a cena produz efeitos simbólicos e eleitorais.
Para que a operação cumpra esse papel instrumental na arena política, entretanto, não lhe basta ser apenas mais uma entre muitas. Ela precisa de superlativos, de escala, de intensidade e de espetáculo para se transformar em evento. A repetição, por si só, não é suficiente; é necessário o aumento do número de mortos, a simultaneidade das incursões e a visibilidade midiática que converta a operação em uma marca de gestão. No governo Cláudio Castro, observa-se uma escalada que não é acidental. As chacinas se tornam cada vez maiores, produzindo vítimas em número crescente e projetando uma imagem de eficácia violenta e de resolução imediata de supostos problemas públicos. A repetição das operações, nesse contexto, não é simples continuidade de uma política de segurança, mas uma escolha deliberada que transforma a morte em linguagem de governo. Sua aparente gratuidade é a própria forma de eficácia retórica: quanto maior a chacina, maior a demonstração de autoridade e de capacidade de comando do Estado. Registros e levantamentos que indicam mais de 890 pessoas mortas em operações policiais durante o governo Cláudio Castro não constituem mera estatística, mas a materialização de uma estratégia em que o cadáver serve como instrumento de legitimação política.
A desvalorização da vida negra no Brasil não é um fenômeno recente. Ela atravessa a história nacional desde a escravidão até as prisões e operações policiais atuais, em que continuam sendo tratados como descartáveis. Nos dias correntes, sob a aparência de legalidade e ordem, o extermínio segue sendo tolerado, incorporado e até incentivado como forma de gestão dos conflitos sociais. O extermínio hoje se expressa nas chacinas que se repetem com regularidade assustadora. Nas falas das operações policiais, o poder precisa ser visto: o cadáver precisa aparecer, a cena deve ser exibida, o sangue se converte em signo de autoridade, eficiência e “sucesso”. No Brasil de hoje, a morte de jovens negros não é uma tragédia imprevista, mas a continuidade de uma história de exclusão que se atualiza e se reafirma como política de Estado.
Dor e morte no Brasil não são exceções, mas expressão de um padrão que atravessa séculos. Nascer preto e pardo em contextos de desigualdade é nascer já exposto à dor. Viver nesses territórios é existir sob permanente ameaça. Morrer em operações é ser incorporado a uma política que faz da visibilidade do cadáver um instrumento de poder. A capacidade de estimar uma vida é dependente de que essa vida seja produzida por normas e leis que a caracterizam como viva. Ligar a obstetrícia discriminatória incialmente referida à lógica exterminatória das megaoperações policiais é reconhecer um mesmo princípio de negação: o corpo negro pode doer, mas não deve comover. O desafio teórico e político é romper esse estado de negação e reconstruir o sentido de uma vida pública em que a dor das mães e das comunidades seja finalmente compreendida como denúncia. E não como ruído.
Paulo César Ramos é doutor em Sociologia pela USP, coordenador do projeto Reconexão Periferias e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Na Elefante publicou Gramática negra contra a violência de Estado: da discriminação racial ao genocídio negro (1978-2018).
Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil











