
A hipocrisia do cuidado, ou E se Hiroshima fosse hoje?
Por Günther Anders
Segue um trecho de Hiroshima está em toda parte, de Günther Anders, segundo livro do autor lançado pela Elefante (antes: Nós, filhos de Eichmann). Diante da monstruosidade das bombas, impressiona a força do texto do filósofo alemão, ao tempo em que chegamos aos 80 anos da destruição no Japão.
Se tivesse acontecido hoje.
Sim, se hoje a cidade tivesse sido destruída, a bomba empregada seria considerada “limpa”. A maioria de nós parece ainda não ter se dado conta de que a tentativa de construir “bombas limpas” não é menos terrível do que a construção das “armas nucleares” em si. Não estou me referindo à hipocrisia perigosa que está contida na expressão — pois o que ontem era considerado “sujo”, hoje é “limpo”. Quer dizer: a limpeza não é medida pelo efeito de destruição real, que não pode ser aumentado, mas simplesmente pelo grau de destruição possível de ser alcançado hoje em dia.
Também não estou me referindo à suposição perigosa de que aqueles que conduzem as guerras, embora tenham “armas sujas” à disposição, obedientemente se restrinjam ao uso das “limpas”. Afinal, é evidente que, no momento da irrupção de hostilidades sérias, o “princípio de leilão” seria colocado em ação. Quer dizer, se A resolvesse empregar a arma de tamanho 1, B se sentiria compelido; não, justificado; não, obrigado a responder com a arma de tamanho 2. A, por sua vez, não se faria de rogado em responder com a arma de tamanho 3. Ou seja, o início modesto não representaria nada além de um ritual infimamente breve de autojustificação, que imediatamente, num accelerando quase impossível de acompanhar, resultaria numa batalha nuclear de nível máximo. Não, a hipocrisia não é nenhuma novidade.
Por outro lado, nossa tentativa (que chega a ser frenética) de produzir armas cuja potência seja inferior à potência das armas de que realmente dispomos é inédita e revolucionária; ou seja, nos esforçamos por uma “melhoria por meio da piora”; nos esforçamos nesse sentido porque as piores seriam as melhores, porque as “melhores” significariam a catástrofe absoluta, ou seja, totalmente sem sentido tanto política quanto estrategicamente; as “piores”, por sua vez, talvez ainda pudessem ser empregadas como “armas”, ou seja, como meios políticos e estratégicos. Estamos diante de nossos produtos como até ontem estivemos diante das forças da natureza; aquelas forças da natureza que, para empregar, tivemos primeiro de domesticar (assim formulo o revolucionário status técnico que alcançamos). Se até ontem nossos equipamentos e instalações, produzidos por nós mesmos, garantiam a domesticação das forças da natureza, hoje a força de nossos produtos é tão ilimitada que somos obrigados a domesticá-los. Não, a diferença entre ontem e hoje é ainda maior: se até ontem almejávamos ser domesticadores da natureza, assegurar e potencializar nossa cultura (no sentido mais lato do mundo artificial que nos é imprescindível), hoje em dia, como domesticadores de nossos produtos, almejamos assegurar a continuação da natureza (ou seja, de nossa mera sobrevivência).
Portanto, palavra-chave para hoje: domesticação dos produtos. Nosso próprio potencial de força aumentou de tal maneira que se tornou impossível de ser aplicado, é maior do que qualquer objetivo desejável ou até imaginável. Por isso, nós tentamos — e com esse “nós” me refiro não somente a nós, os adversários das armas nucleares, mas também a seus defensores — revogar essa força. Mesmo em meio aos defensores das armas nucleares há, em curso, uma rebelião contra as máquinas. Não conheço nenhum outro momento na história moderna, quer dizer, na história da técnica produtiva em constante avanço, no qual tenha havido semelhante “retrocesso”. Nunca antes se tentou construir locomotivas que andassem mais devagar do que aquelas já em movimento; nunca antes se tentou construir armas cujo alcance fosse menor do que o daquelas já empregadas. Apenas hoje, visto que o “limite da empregabilidade” foi transposto, a técnica é revirada para se tornar a técnica de sua própria revogação.