Seria leviano dizer que a pandemia caiu sobre o mercado editorial como uma tempestade inesperada que varre um quintal florido e transforma a rua num mar de lama do dia para a noite, chocando a todos.
Já chovia forte na cabeça de editoras e livrarias independentes, sobrevivendo sem o respaldo de grandes arquiteturas financeiras ou programas de fomento, e vivendo de um relacionamento diário com os leitores, tocando lançamentos e vendas em série para garantir as contas do mês.
Diferente dos selos gigantes ou das megastores, falamos aqui daqueles que praticamente não têm margem para cometer erros comerciais. Não há muitas segundas chances, nem muitos colos para se acolher. Se não vender livro, não entra dinheiro; se não entrar dinheiro, não compra / não faz outros livro. Não há outros contornos.
Digamos então que, assim como em tantos setores, é como se o novo coronavírus não fosse o chute na porta, mas pegasse a fresta e a escancarasse. Não dá mais para não ver.
Faz tempo
Pela primeira vez as vendas em livrarias físicas desapareceram das listas, e isso acelerou o desmonte do modelo das grandes redes. A Saraiva demitiu quinhentos funcionários na semana passada: trezentos do centro de distribuição e duzentos das lojas.
Pouco antes, a empresa havia anunciado a suspensão dos pagamentos a fornecedores, gesto repetido pela Cultura. Se os calotes e atrasos já vinham de anos, a pandemia confirmou as dificuldades que a recuperação judicial tentou amenizar.
O agravante é que, ao trabalhar com consignação, as editoras na verdade estão deixando de receber, em março e abril, os livros que as livrarias venderam lá no início do ano, já que o pagamento é feito com sessenta ou noventa dias de prazo.
Instalou-se uma crise (maior ainda) no setor, como explica este texto do site Publish News: editoras cobrando os pagamentos, livrarias precisando se manter vivas com as lojas fechadas. Várias matérias contextualizam o momento crítico, aqui e aqui. E as entidades foram cobrar ajuda do governo federal.
Mas, por outro lado, como não se pode ir ao parque, ao boteco ou ao futebol (às vezes, nem mesmo ao trabalho), sobra mais tempo para ler — pelo menos em alguns lugares. No Reino Unido, a procura por livros cresceu 33%, com vendas on–line 400% maiores do que no mesmo período no ano passado. Na Espanha, o acesso aos livros digitais aumentou em 50%.
No Brasil, é notável o esforço de livrarias independentes, sebos e editoras para ampliar as vendas pela internet, com promoções, pacotes (já conhece os combos da Elefante?) e uma divulgação acima da média nas redes sociais.
Assim como os serviços de alimentação, diversas postagens e reflexões compartilhadas por aí pedem atenção a um consumo consciente e responsável e que valorize os pequenos, muito mais sensíveis à crise.
Mas tem um peixe grande (imenso) nessa história.
Amazon
“O homem mais rico do mundo está ficando mais rico, mesmo em uma pandemia, e talvez por causa disso”, começa o texto da Bloomberg, traduzido e publicado por O Globo. “E quase 24 bilhões de dólares mais rico. Os consumidores presos em casa confiam na Amazon de Jeff Bezos mais do que nunca”, continua.
No Le Monde Diplomatique, uma reportagem mostra o aumento das atividades na Amazon como um retrato dos efeitos da pandemia. Fábricas e lojas fechadas, mas os grandes armazéns logísticos frenéticos atendendo a pedidos de tapete de ginástica a cortador de grama. Em 16 de março, diz o texto, a Amazon recrutou cem mil funcionários temporários nos Estados Unidos, chegando a quase um milhão de trabalhadores em todo o mundo.
Ah, e nada de segurança. Uma francesa, funcionária temporária, entrou na Amazon em março, e dez dias depois foi diagnosticada com coronavírus. Ela ligou no RH da empresa e foi informada que a contratação havia sido feita por intermédio uma agência de recrutamento, e que não poderiam fazer nada.
No Japão, outro trabalhador revelou: “Um gerente nos disse que, se ficássemos doentes, a culpa seria nossa, e que cabia a nós respeitar as distâncias de segurança. Ele nos avisou que, em caso de ausência, não seríamos pagos, e nos estimulou a vir trabalhar com febre”.
No mercado dos livros, o sistema predador da Amazon vem de longa data. Tratamos disso num texto de maio de 2019, em que contamos por que os preços da Amazon são mais baixos e inviáveis até para quem produz o livro — nosso caso.
O jornalista Franklin Foer, cujo texto foi traduzido na revista piauí, fala disso no começo de sua reportagem sobre Jeff Bezos, o ambiciosíssimo fundador da Amazon. “Comecei a me preocupar com o poder da Amazon cinco anos atrás. Ficava angustiado com a maneira brutal como a empresa tratava a indústria do livro, obtendo dos editores contratos cada vez mais favoráveis à empresa, de cujas vendas eles passavam a depender”, explica.
“Quando o conglomerado editorial francês Hachette, que já havia publicado um livro meu, se recusou a aceitar as exigências da Amazon, a resposta foi uma punição severa. A Amazon atrasou as entregas de livros da Hachette e, se os consumidores procuravam alguns de seus títulos, o programa os redirecionava a livros similares de outras editoras”, continua Foer, dando ainda mais exemplos:
“Em 2014, escrevi uma reportagem para a revista The New Republic com um título provocador: ‘A Amazon precisa ser detida’. Por causa desse meu artigo, a empresa cancelou a campanha publicitária do seriado satírico Alpha House, produzido pela Amazon Studios, que vinha sendo publicada na revista.”
As críticas ao modelo se acumulam, e Jorge Carrión, um crítico e escritor catalão, se tornou uma das principais vozes para expor o negócio. Ele lançou um livro com um manifesto contra o que ele chama de “hipermercado”. Contra Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros chega agora ao Brasil (aproveite a pré-venda e adote uma pequena livraria!).
No primeiro capítulo do livro, Carrión lista sete motivos para essa repulsa, como se negar a ser cúmplice da expropriação simbólica ou defender a lentidão acelerada. Um trecho foi publicado na Folha de S. Paulo em 2018.
“A livraria Canuda, que fechou em 2013 depois de mais de oitenta anos de existência, agora é uma loja da Mango [multinacional de moda espanhola] de proporções faraônicas. A centenária livraria Catalónia agora é um McDonald’s com decoração modernista e kitsch. A expropriação é literal, física, mas também é simbólica”, escreve.
Contra Amazon traz críticas profundas e precisas à empresa de Jeff Bezos, mas é muito mais do que um libelo contra essa megacorporação. É um livro que exalta, de muitas maneiras, a humanidade dos livros, demonstrando como a cultura livresca e todo o seu universo tem muito pouco a ver com os valores pregados pelos amazonians.
Começamos a traduzir o livro de Jorge Carrión no segundo semestre de 2019, quando não havia uma única notícia sobre coronavírus. Iremos lançá-lo agora, com a certeza de que a obra se encaixa perfeitamente na difícil situação em que a pandemia colocou as pequenas editoras e livrarias. Com a ajuda de vocês, iremos passar por isso.
Seguimos. Se for comprar livros nessa quarentena, por favor, lembre-se disso.