Por Romaric Godin
Publicado em Mediapart
Tradução Pedro Henrique de Mendonça Resende

 

Anselm Jappe é representante, na França, da teoria crítica do valor, uma teoria crítica que relê Marx através da abstração induzida pela mercadorização do mundo. Esta crítica radical (no sentido de ir “à raiz”) do capitalismo, realizada no âmbito da revista alemã Krisis nos anos 1990 e 2000, se distingue profundamente, entretanto, de outras escolas marxistas por sua rejeição de alguns elementos-chave como a luta de classes. O autor havia apresentado essa teoria ao público francês por ocasião do lançamento de A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição

Nela, Jappe descreve o lento desenvolvimento do capitalismo por meio do narcisismo crescente do sujeito. A indiferença e a crueldade do capitalismo, obcecado pelo valor quantitativo em relação ao mundo real, encontram-se espelhadas na indiferença e na crueldade do narcísico em relação aos outros. In fine, o indivíduo, submetido a essa pulsão de morte do capitalismo, acaba por entrar em um processo de ressentimento e de autodestruição. A sociedade capitalista parece fadada a se devorar a si mesma e a única saída parece ser a abolição do capitalismo, pois as tentativas reformistas do marxismo tradicional não conseguiram se situar fora do sistema do valor de mercado. 

Nesta entrevista, o autor volta-se para alguns dos principais temas de sua teoria: para seu diálogo com a psicanálise ou com certos ensaístas críticos da sociedade neoliberal, para sua crítica do marxismo tradicional e para o futuro do capitalismo.

 

A sociedade autofágica explora em detalhe o tornar-se sujeito na sociedade capitalista. Você o concebe como continuação de As aventuras da mercadoria, que expôs para o público francês a teoria crítica do valor?

É evidentemente uma continuação, mas mais pessoal. A obra As aventuras da mercadoria apoiava-se principalmente em grandes teóricos da crítica do valor, notadamente naqueles que escreviam na revista alemã Krisis. Depois, uma parte destes últimos, notadamente Robert Kurz, fizeram esta teoria evoluir em direção a uma teoria da crítica do sujeito, que inclui uma crítica do Iluminismo. Eu desenvolvi paralelamente minhas próprias ideias, interessando-me igualmente pelo aporte da psicanálise. Neste sentido, eu fui particularmente marcado pela leitura de Christopher Lasch e de suas obras A cultura do narcisismo e O mínimo eu, mas também retomei as obras de Herbert Marcuse e Erich Fromm. A estas foram acrescentadas várias outras leituras importantes para a gênese do livro, como a do sociólogo Luc Boltanski, ou ainda de Dany-Robert Dufour, com quem eu não estou totalmente de acordo, mas cuja leitura me pareceu suficientemente estimulante para me dar vontade de lhe responder. É este percurso, que durou dez anos, que me permitiu construir A sociedade autofágica

 

A teoria crítica do valor sublinha a abstração que o capitalismo, por natureza, impõe ao mundo. Este é o ponto de partida da sua exposição?

O que é importante compreender é que a teoria crítica do valor não é uma teoria puramente econômica. Ela se inscreve na continuidade do pensamento de Karl Marx, que empreende uma crítica da economia política e não a elaboração de uma teoria econômica particular. Mercadoria, trabalho abstrato, valor e dinheiro não são, em Marx, categorias puramente econômicas, mas categorias sociais que formam todas as maneiras de agir e de pensar na sociedade. Isto não está sempre explícito em Marx, mas é o que se pode extrair de seus escritos. É por isso que eu considero o valor um “fato social total”, no sentido que o entende Marcel Mauss.

Essas categorias são, como diria Emmanuel Kant, formas a priori, formas vazias que são como moldes onde tudo deve entrar. Assim, na sociedade capitalista, tudo toma a forma de uma pura quantidade de dinheiro e, para além disso, de uma pura quantidade em geral. Isto vai, então, muito além do mero fato econômico. Essas categorias não são, entretanto, fatos antropológicos que existiriam em todos os lugares e sempre. São formas que progressivamente se impõem aos outros domínios da vida, notadamente às relações sociais. Vê-se isto com a emergência do “eu quantificado” no quadro da mensuração, por exemplo, das performances esportivas. A quantificação monetária é uma das formas mais visíveis da sociedade capitalista, mas não é a única.

 

A primeira parte do seu livro descreve a história do sujeito confrontada à essa abstração imposta pelo capitalismo.

Sim, mas é importante compreender a natureza desta abstração. A abstração, enquanto tal, é um fenômeno mental que é, evidentemente, um auxiliar para apreender o real. Como não se pode sempre falar de uma árvore particular, então se recorreu a um conceito geral de árvore. Mas trata-se, aqui, de outra coisa. Trata-se de uma abstração, o valor, que pode assumir não importa qual forma real pela quantificação. Toda realidade pode ser reduzida a uma quantidade de valor. Ela torna-se, então, uma “abstração real”, conceito que não está explicitamente presente em Marx, mas que foi desenvolvido no século XX. E isso tem impactos muito concretos. Um brinquedo ou uma bomba tornam-se assim apenas quantidades de valor abstrato, e a decisão de interromper ou de continuar sua produção depende da quantidade de mais-valor que esses objetos contêm.

Nós não estamos mais aqui na visão marxista clássica de uma dialética entre base e superestrutura, na qual a economia impunha-se e o resto se adaptava a ela. Aqui, trata-se de uma forma geral abstrata, o valor, que se expressa em todos os níveis. Eu gosto, dessa maneira, de citar o linguista alemão Eske Bockelmann que sublinha que no século XVII a música passou de uma medida qualitativa para uma medida quantitativa. E esta abstração se exprime, no mesmo momento, na nova física de Galileu ou na nova epistemologia de Descartes.

 

É aqui que toma forma um dos elementos-chave do seu pensamento, a noção de fetichismo. Fundado pelo homem, o valor dita sua lei ao homem. Um conceito que, segundo você, permite apreender a natureza do capitalismo para além das críticas habituais. 

No conceito marxiano de fetichismo, que resulta do que acabo de dizer, o que porta o valor não tem nenhuma importância. Um brinquedo ou uma bomba são apenas formas passageiras de outra forma de realidade invisível, a quantidade de trabalho abstrato, quer dizer, o valor. Uma vez compreendido isto, pode-se ir além da simples visão moralista da sociedade capitalista. O produtor de bombas produz bombas não porque ele é insensível moralmente, mas porque ele é submetido a essa lógica fetichista. A imoralidade pode ser acrescentada, mas ela não é o motor. E, de resto, na sociedade capitalista, esse fetichismo atinge também os operários. Aqueles que fabricam bombas não querem perder seus empregos. Todos participam dessa realidade, pois todos estão submetidos ao fetichismo da mercadoria e do valor. 

Não é necessário, entretanto, se limitar a uma visão muito sistêmica da realidade. Existe também um nível de realidade feito de ideologia e de mentalidades. Os indivíduos não são marionetes. Para se impor, o capitalismo deve passar pelos sistemas de motivação e de gratificação. É a cenoura agitada diante do asno. Essas motivações são apenas secundárias, elas podem sempre ser substituídas por outras. O que é essencial para o sistema é a existência de uma estrutura psíquica específica. E é aqui que entra em cena a questão do narcisismo do sujeito.

 

A escola freudomarxista havia tentado identificar e combater esta estrutura psíquica, mas você afirma que suas análises não são mais pertinentes hoje. 

A primeira geração dos marxistas, aquela da II Internacional (1889-1914), desenvolveu um paradigma economicista. Todas as pessoas estariam supostamente agindo apenas por seus interesses econômicos. Mas esta visão não chegou a explicar porque milhões de operários massacraram-se com entusiasmo durante a Primeira Guerra Mundial, nem porque eles se voltaram, em seguida, para os movimentos fascistas e autoritários.    

Foi então que marxistas como Wilhelm Reich ou Erich Fromm salientaram a importância de estruturas psíquicas no interior do capitalismo, utilizando a teoria de Freud, até ali rejeitada pela esquerda como “burguesa”. Esse freudomarxismo explicou como as estruturas autoritárias podiam se reproduzir pelo complexo de Édipo. Em Freud, esse complexo é percebido como uma garantia de civilização, mas os freudomarxistas fizeram dele um fator de dominação das estruturas familiares. Nos anos 1950 e 1960, pensadores como Herbert Marcuse desenvolveram ainda a ideia de que a libertação não passava somente pela política, mas também pela libertação dos constrangimentos familiares e sexuais. Esse pensamento teve muito sucesso e conduziu a mudanças de costumes duradouras.

A questão que eu me propus no meu livro foi a de saber se essa mudança representou, no final das contas, um progresso. Sem partilhar as visões de autores como Lasch e Dufour, que podem conduzir a consequências reacionárias, deve-se levar seus diagnósticos críticos a sério. Pois, se, por um lado, essa evolução para a liberdade individual é evidentemente positiva, por outro lado, o diabo, tendo saído pela porta, entrou novamente pela janela. É preciso constatar que o indivíduo que resultou desta evolução é fundamentalmente ainda mais fraco, justamente por causa da fraqueza de seu superego. Ele é presa das pulsões do consumo de mercadorias. E, de fato, assiste-se a uma grande reversão. O “partido da desordem”, anteriormente aquele dos revolucionários, tornou-se o do sistema capitalista.

 

Esse sujeito “ideal” para a mercadoria corresponde a uma nova fase da história capitalista, a da emergência do neoliberalismo. Entretanto, neste livro como nos precedentes, você adverte contra uma crítica do capitalismo que seria reduzida unicamente à sua forma neoliberal. 

A forma neoliberal representa, efetivamente, a forma mais recente e uma das mais hediondas do capitalismo. Mas ela não constitui algo fundamentalmente diferente da fase precedente, aquela dos Trinta Gloriosos e do capitalismo dos monopólios. No entanto, hoje, na esfera política, as críticas do capitalismo mais difundidas são somente críticas do capitalismo neoliberal e, quando lhe perguntamos a elas o que entendem por sociedade não capitalista, elas propõem geralmente uma visão idealista dos Trinta Gloriosos. Da minha parte, eu não sou nostálgico da sociedade que generalizou a linha de montagem, uma das piores abjeções da história humana, e na qual a mercadorização da natureza era objeto de um amplo consenso. Eu não acredito que seja necessário idealizar o fato de que o direito à escravidão fosse um pouco melhor repartido do que hoje, como faz, por exemplo, Bourdieu.

 

E você sublinha, aliás, que essa crítica reduzida do neoliberalismo pode conduzir a uma nostalgia de certa forma de autoritarismo. 

Eu sou muito cético quanto à ideia desenvolvida por Dany-Robert Dufour segundo a qual o neoliberalismo seria uma “ruptura civilizacional”. Parece-me difícil opor, como ele faz, um sujeito fundamentalmente fraco atual a um sujeito supostamente forte que teria existido até os anos 1970. Alguns poderiam ter uma nostalgia desse suposto sujeito forte, paternalista. Para mim, o sujeito neoliberal é muito mais uma nova etapa de um processo de enfraquecimento que começou bem antes. Não se pode usar as misérias de ontem contra as misérias de hoje. A “ruptura civilizacional” situa-se bem antes do neoliberalismo.

 

Nesse caso, contudo, por que o sujeito neoliberal, como você mostra, está sujeito ao narcisismo, enquanto o sujeito da “antiga forma de capitalismo” estava mais submetido a uma neurose clássica, como havia identificado o freudomarxismo? Não existe aí uma forma de “ruptura”?

O que eu tento mostrar é que o capitalismo nasce efetivamente entre o fim da Idade Média e o século XVII. Ele nasce com essa tendência narcísica que faz parte da sua estrutura de base, pois existe no valor uma forma de renegar o mundo. É por isso que se pode destacar já no cogito de Descartes essa forte tendência narcísica. Mas eu penso que o capitalismo estava presente enquanto potência no sentido aristotélico e que ele coexistiu com formas sociais mais antigas contra as quais durante muito tempo lutou, como o feudalismo ou o paternalismo. Levaram-se séculos para vencer as escórias de outras épocas e, para retomar um termo hegeliano, coincidir com seu próprio conceito.

 

Com as crises dos anos 1970 o capitalismo atingiu, então, essa forma mais próxima do seu conceito. E o conceito é precisamente o de uma indiferença em relação ao mundo, particularmente perigosa para a humanidade e o planeta. 

Marx sublinha que o valor é o produto do trabalho abstrato. Para ele, toda atividade produtiva no capitalismo tem, com efeito, duas faces. A primeira é que ela produz alguma coisa concreta que satisfaz necessidades. A segunda é que toda atividade necessita de um dispêndio de energia que se pode medir pelo tempo. Está aí a fonte do valor, e assim toda atividade se equivale, não tem diferença qualitativa, mas unicamente diferenças de quantidade de tempo dispendido, portanto, de trabalho abstrato. 

Ora, o capitalismo não se interessa senão pelo mais-valor, ou, dito de outro modo, pelo valor superior ao inicialmente investido. Ele se interessa, então, somente pela quantidade de valor criado por cada atividade. E, em face do valor, existe uma igualização do mundo. Todas as coisas se equivalem e são apenas porções mais ou menos grandes da mesma substância. Todos os objetos e serviços têm que justificar sua existência não pela satisfação de uma necessidade ou de um desejo humano, mas pela quantidade suficiente de mais-valor que eles representam.  

Antes mesmo da luta de classes, da injustiça ou das desigualdades, encontra-se o que eu chamo – para retomar as palavras de Joseph Conrad – “o coração das trevas” do capitalismo: esta indiferença total para com o conteúdo e para com o que é próprio do ser humano. É uma diferença fundamental com as sociedades pré-capitalistas, as quais, quaisquer que tenham sido seus aspectos desagradáveis, não tinham essa dinâmica cega que consiste em uma acumulação sem finalidade de alguma coisa que não tem conteúdo próprio.

 

Esta cegueira é precisamente aquela do sujeito narcísico, que é o sujeito próprio do capitalismo.

Segundo a leitura de Freud que faz Christopher Lasch, o narcisismo se forma durante a primeira infância, antes do complexo de Édipo. A criança quer, então, evitar a separação com o mundo circundante e não quer reconhecer que se é sempre dependente de alguma coisa mais forte do que nós. Ela compensa sua impotência real com uma onipotência imaginária e mágica que passa por um desejo de fusão com o mundo exterior. O narcisismo, tal como é comumente entendido, não é senão uma forma do narcisismo freudiano. Mas, em realidade, todo mundo tem um componente narcísico e o que eu estou expondo é que a forma atual do capitalismo conduz menos a uma extensão do número de narcisistas do que para um forte aumento da “taxa de narcisismo” na população inteira. 

O narcísico não interiorizou a existência do mundo exterior, ele passa ao largo, ele não o conhece. Ele conhece apenas seu eu, como pura função da existência, e é por isso que eu considero que o cogito de Descartes era já extraordinariamente similar ao narcisismo. O mundo exterior não é senão uma extensão de seu próprio eu, que ele pode manipular à vontade e dispor segundo suas próprias fantasias. O narcísico não pode estabelecer verdadeiras relações de amizade ou de amor, porque, para ele, todos os outros são intercambiáveis. E é aqui que é incorporada a noção de valor em Marx. Pois mesmo que para o valor todos os objetos e as pessoas sejam intercambiáveis e não sejam senão encarnações temporárias de uma “substância” única, embora imaginária, o mundo real não é para o narcísico senão uma vaga hipótese em que nada tem autonomia própria. 

O narcísico pode se adaptar a todas as circunstâncias, a todos os empregos, a todas as pessoas… Compreende-se que o indivíduo fordista dos anos pós-guerra, com seus valores, sua moral, sua poupança, tenha se tornado disfuncional com a ampliação da esfera mercantil.

 

Como você evocou, o “partido da desordem” tornou-se aquele do capitalismo, notadamente pela glorificação da flexibilidade e da mudança permanente. O que é chamado comumente de “reformas”, que começou pela esfera econômica, notadamente o mercado de trabalho, tende hoje a se alargar para o resto da sociedade. São elas, desde então, um sintoma dessa vontade de tornar o sujeito mais narcísico?

Sim, o que é demandado hoje, antes de tudo, é a flexibilidade. É preciso estar pronto para mudar de trabalho, de parceiros, até mesmo de sexo. Tudo o que é fixo é considerado como mau. Isto não significa que todo mundo seja tão flexível assim, mas é uma pressão social constante.

 

Você sublinha o quanto esta pressão do capitalismo atual agrava a crise narcísica do sujeito, provocando desastres psíquicos que chegam até aos assassinatos em massa. Como se exerce esta pressão? 

A abstração dominante tem necessidade de alguma coisa de substancial sobre a qual se enxertar para se tornar real. No início do processo capitalista, essa forma de organização concernia apenas a certos setores da sociedade e a certos países. Balzac descreve em As ilusões perdidas um mundo parisiense tornado narcísico com a irrupção do capitalismo. Mas esses valores, tornados hoje dominantes, seriam, naquele momento, marginais. Segui-los seria também fruto de uma escolha, de uma decisão amadurecida. Era possível permanecer à margem e rejeitá-los.

Valores como autonomia, flexibilidade, espírito de iniciativa, que eram anteriormente necessários para se tornar ministro, são doravante necessários para obter qualquer emprego. É um dos aspectos mais desprezíveis da sociedade moderna. A escolha não é mais possível. Ora, esta exigência pesa sobre os indivíduos.

Tanto que eles acreditam que o curso de suas vidas não depende senão deles, que eles são os artesãos do próprio destino. Ora, o indivíduo contemporâneo não tem realmente controle sobre nada. Está aí uma forma suplementar de culpabilidade. Doravante não se tem mais a desculpa de ser uma mulher, um provinciano, um proletário. Se não somos bem sucedidos, é nossa própria culpa. Os indivíduos tornam-se, então, sobrecarregados de expectativas geralmente irrealistas em relação a si mesmos. E isto cria sofrimentos reais. 

Nas sociedades mais tradicionais e até na sociedade fordista, o indivíduo podia se revoltar contra uma ordem exterior exploradora. O operário podia cruzar os braços para desafiar o contramestre, o empregado doméstico podia roubar seu empregador… Atualmente, não se pode mais se revoltar contra uma ordem exterior, mas somente em relação a si mesmo, em relação ao seu próprio gozo. Acaba que, a partir de então, odeia-se a si mesmo. O superego interior é mais punitivo do que o superego exterior. Não nos terá sido, portanto, muito útil nos desvencilhar do complexo de Édipo, pois estamos agora entregues a um superego ainda mais implacável e difícil de nomear e combater.

 

Nesta luta consigo mesmo a tecnologia não é, para você – e é ainda uma diferença importante em relação aos marxistas tradicionais –, um meio para a libertação.

O narcisismo está em associação com a tecnologia. Ela é o vetor da ilusão de onipotência. Ela ajuda o indivíduo a permanecer em uma forma constante de adolescência que é, de resto, uma noção relativamente moderna. Como resumia perfeitamente Yves Saint-Laurent, nossa época é a primeira em que as mães querem se parecer com suas filhas e não o inverso. Pela primeira vez na História crescer não é percebido como uma vantagem. Assiste-se a uma recusa da idade e, portanto, da maturação. A flexibilidade abole a maturação da personalidade.

 

No final do seu livro você propõe a abolição do capitalismo como a única saída. Mas como realizar esta abolição quando justamente o sujeito narcísico aparece como o principal guardião desta ordem capitalista destruidora?

Como eu já indiquei, a questão é menos a de um indivíduo plenamente narcísico do que a de uma “taxa” global de narcisismo que pode mudar. É possível reconhecê-lo e combatê-lo, observando-se a si mesmo com certa distância. A sociedade está cheia de tentativas de recuperar as formas de ajuda mútua. Muitas pessoas não estão prontas para viver como os tubarões do mercado financeiro que aparecem nos filmes americanos. Nem toda forma de consciência desapareceu.

A lógica abstrata depara-se sempre com o vivo e com o sensível. Esta luta é reencontrada precisamente nos sofrimentos do indivíduo. Esta imagem desenvolvida pelos liberais, de um indivíduo feliz porque ele apenas maximiza seu benefício pessoal, não corresponde, evidentemente, a nada de real. A ditadura econômica é tão contrária às nossas necessidades e aos nossos desejos que estamos em conflito permanente com ela. 

As pessoas não seguem uma lógica única nos diferentes aspectos de suas vidas. Pode-se ter uma carreia pessoal e se inquietar, ao mesmo tempo, com a construção de um depósito de lixo perto de sua casa, pode-se também sofrer fraturas na sua vida, tomar consciência de certos fatos… Constata-se, por exemplo, uma consciência crescente em relação aos pesticidas. Eu não sou, portanto, forçosamente pessimista.

 

Em contrapartida, você não espera nada das formas de luta postas em prática pelo marxismo tradicional. 

Eu não penso que se possa ter uma linha de combate com um grupo social no qual apostar para sair do capitalismo, como se podia acreditar em períodos anteriores, notadamente no que concerne ao proletariado. Os migrantes que chegam à Europa geralmente sonham se tornarem burgueses europeus. Seu lugar na sociedade não determina sua reação à sociedade atual, para mim, porque as catástrofes ecológicas que são consequências da essência do capitalismo afetam todo mundo. 

O marxismo tradicional concentra sua atenção na distribuição do dinheiro e do valor, sem recolocar em questão a existência destes dados. Historicamente, esta crítica se concentrou na esfera financeira. É o que retomam hoje os populistas. Evidentemente, eu acho o mundo financeiro pouco simpático, mas a financeirização da economia é apenas uma consequência da crise do capitalismo, não sua causa. É ilusório pensar que se resolveria todos os problemas eliminando um cardume de tubarões do mercado financeiro que colaboram com os políticos. 

Em contrapartida, existe uma ditadura da economia sobre a sociedade, e isso é para mim o conceito central. Esta ditadura nem sempre é fácil de identificar. Às vezes é bastante fácil: quando se quer construir uma mina de ouro em um local protegido, por exemplo, ou no caso do projeto do aeroporto de Notre-Dame-des-Landes. Mas outras vezes é mais difícil, como quando se inventam dispositivos inúteis para ocupar o espírito das crianças. 

Mas meu ponto de vista é de ter uma desconfiança sistemática em face da economia. Por exemplo, existe atualmente uma polêmica em torno dos contadores [de consumo de energia] Linky: alguns advertem sobre os riscos potenciais, outros negam sua existência. Eu teria a tendência, da minha parte, de pensar que se uma companhia quer instalá-los, é forçosamente por má razão. Não existe pressuposição de inocência para quem gere o processo econômico e técnico. E se boas decisões são tomadas, como por exemplo a interdição de um pesticida, isso será sempre contra sua vontade, e geralmente muito tarde.

 

Nesse quadro, deve-se novamente colocar a questão, como antes fez Rosa Luxemburgo: reforma ou revolução?

A questão me parece ultrapassada. Hoje uma revolução sob a forma de uma “tomada do palácio de Inverno” parece impossível e o reformismo sempre reforçou o poder existente. As verdadeiras reformas, hoje, seriam de fato já uma revolução. Pois o sistema capitalista é incapaz de se reformar. Quando se observam os compromissos assumidos quanto ao clima ou à biodiversidade nos anos 1990, que já eram insuficientes, eles não foram respeitados. E é a mesma coisa no domínio econômico: depois da crise de 2008 tomaram-se medidas cosméticas contra os excessos do mercado financeiro, e rapidamente elas foram abandonadas. Em uma lógica da concorrência, todos os atores desconfiam uns dos outros. Caso se chegasse a um acordo entre os atores do capitalismo, não se estaria mais no capitalismo. O que define o capitalismo é precisamente a concorrência entre atores anônimos que nada conecta. O que é mais razoável, então, é abolir o capitalismo.

 

Para você o capitalismo corre, de toda maneira, para sua perdição…

O marxismo tradicional pensou que se a insatisfação material do proletariado não o levasse a derrubar o capitalismo, este último perduraria. O que eu defendo é o contrário: esta contradição que o capitalismo porta inicialmente no seu seio, este esgotamento da fonte do valor com a substituição do trabalho pela tecnologia ao longo dos últimos anos, tomou tal amplitude que o capitalismo não sobrevive senão com muletas como a financeirização. O sistema está em face de seus limites internos, ao que se acrescentam limites externos como a crise ecológica. Ele serra o galho sobre o qual está assentado. O capitalismo sabota a si mesmo. Ele não resolve nenhum dos seus problemas fundamentais. O capitalismo está em vias de esgotar-se e isto impulsiona para a criação de alternativas. Pois uma sociedade fundada no valor é uma sociedade inviável no plano humano. Existem mil campos de batalha contra essa lógica econômica da valorização sempre mais evanescente e que atinge agora domínios como o serviço para pessoas idosas ou para crianças. Progressivamente, é necessário subtrair cada vez mais terreno do mercado e do Estado. Eu penso que não se chegará a nada, todavia, com a política, as leis e os parlamentos. 

 

O mito de Erisícton nos fala de um rei que se devorou porque nada satisfaria sua fome, punição divina por ultrajar a natureza. A partir dessa metáfora potente, Anselm Jappe analisa o que chama de “pulsão de morte do capitalismo”: uma explosão de violência extrema gerada pela perda de sentido e pela negação dos limites, características de uma sociedade regida pela mercantilização.

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