“Amazon está intencionalmente criando uma experiência viciante para seus clientes”, diz Danny Caine

Por Luis E. Jordán
publicado em Suplemento Pernambuco

A Lei Cortez (PL 49/2015) voltou desde o começo de maio a tramitar na Comissão de Educação, Cultura e Esporte, no Senado. O objetivo do projeto é proteger pequenos comerciantes de livros de práticas predatórias de grandes entidades internacionais, fixando em 10% o desconto máximo que uma empresa pode aplicar a um livro nos primeiros 12 meses após seu lançamento. A ideia pode soar estranha a alguns, mas tem sentido: uma pesquisa de 2021 na Europa mostra que leis de preço fixo ajudaram a garantir valores menores e a proteger livrarias independentes. Os casos exemplares são da Alemanha e da França – neste país, a lei do preço fixo já tem mais de 40 anos e garantiu, entre outras coisas, que o valor de venda subisse 24% de 1996 a 2018, em contraste com os 80% de aumento, no mesmo período, no Reino Unido (que derrubou sua regulação de proteção a esse mercado em 1995).

Quando se fala em grandes empresas internacionais com políticas de preço predatórias, geralmente se quer falar da Amazon, uma big tech responsável, em 2019, por metade das vendas online de livros e 80% do comércio de e-books no Brasil, segundo a plataforma Statista. Como é enorme, abrangente e não depende dos lucros de venda, a empresa pode disponibilizar produtos em geral com preços baixos, realmente muito baixos, às vezes inferiores ao custo de produção — o que impossibilitaria qualquer concorrência real, ainda mais considerando a agilidade de entrega e a comodidade oferecida pela Amazon.

Nesta entrevista com o norte-americano Danny Caine, poeta e autor de Como resistir à Amazon e por quê, ele defende que os preços atrativos são bons apenas em aparência e causam efeitos nocivos a toda a indústria. Em lugar de colocar todo o peso da decisão no indivíduo, para que ele não utilize os serviços da big tech, Caine aponta que é preciso conversar sobre políticas públicas, parecidas com a Lei Cortez, para evitar abusos. Lançado neste mês pela editora Elefante, em tradução de Joana De Conti, o livro traz em seus capítulos críticas e hipóteses contra a Amazon, intercalando-os com narrativas contrastantes envolvendo a Raven Book Store, da qual o autor é dono. Caine aponta que sua experiência como dono de livraria o levou a defender causas a favor dos pequenos comerciantes e se agora confronta a gigante do varejo, é por consequência.

 

Já vi por entrevistas no YouTube você contar uma história interessante sobre como seu livro teve um começo de trajetória bem atípico, via redes sociais. Poderia começar falando um pouco sobre o início do seu projeto até a eventual publicação?

 

Sim! É uma história bem improvável. Primeiro comecei a falar sobre a Amazon nas redes sociais, pelas contas da minha livraria. Uma das postagens feitas no Twitter sobre a Amazon viralizou. Pouco depois, uma amiga minha, também dona de livraria, sugeriu que eu transformasse aquilo das redes sociais em um zine, para que ela vendesse na loja dela. Então eu mesmo fiz e imprimi o zine, enviei algumas para minha amiga e vendi algumas na Raven. Também postei no Facebook para saber se outros donos de loja também estariam interessados [em vender o material]. Houve um grande pico de demanda, então passei algumas semanas fazendo zines no meu tempo livre. Eventualmente a Microcosm Publishing me contactou e se ofereceu para publicá-lo. E quando perceberam quanta gente estava interessada nesta história, me convidaram para transformá-la em um livro. Com certeza não é como as pessoas costumam começar a vender não ficção!

 

Você aponta que o ser humano é bem mais do que cliques, venda de dados ou dinheiro. A princípio é uma frase difícil de contestar, mas, se olhamos para a sociedade atual, a maioria das pessoas age como quem discorda dessa afirmação básica — afinal, se concordassem, a Amazon não existiria e serviços locais, com seus procedimentos mais particulares e menos maquinais, teriam mais poder para contestar essas grandes empresas, ainda que o consumidor tivesse que pagar um pouco mais caro. Como se muda isto? Que tipo de ações podem guiar as pessoas em outras direções, talvez, como você diz, mais “humanas”?

 

É uma pergunta interessante. A primeira coisa que vou falar é que a Amazon está, deliberada e intencionalmente, criando uma experiência viciante para seus clientes — e esta experiência afasta pessoas de lugares como livrarias e outros pequenos negócios. O princípio que guia a Amazon é tornar seus consumidores obcecados por ela. Fazem isso a partir dos cliques e dos dados que coletam dos clientes com sua política de preços predatória. Quem sustenta o custo dessa conveniência? Humanos. Mais especificamente, as pessoas que trabalham na Amazon em condições exaustivas e perigosas. É uma questão humana, em mais de um sentido. Espero que trazer esse assunto dos trabalhadores à discussão possa ajudar as pessoas a perceber o custo humano que existe por trás desta conveniência [de comprar na Amazon].

 

Você aponta que a Amazon vende a ideia de que livros deveriam valer menos, quando aplica preços abaixo daqueles das editoras. Sem entrar na ética da questão, falando unicamente da perspectiva do cliente, não poderia ser dito que essa é uma coisa boa? Por que, neste caso, a disponibilidade ampla de informação ou arte para o público é uma coisa negativa?

 

Só posso falar pelo mercado de livros nos Estados Unidos, mas posso dizer, com certeza, que ser mal pago e estar sobrecarregado de trabalho é um problema persistente para inúmeras pessoas que fazem e vendem livros. Se a Amazon consegue desvalorizar um certo livro, então vai agravar o problema de baixos salários na indústria. Mais: se há pouco dinheiro circulando dentro do mercado de livros, há uma limitação das vozes às quais temos acesso como leitores. Se ninguém faz dinheiro escrevendo livros, apenas quem já tem dinheiro poderá escrever, excluindo inúmeras vozes importantes. Por último, acredito em acesso amplo e fácil à arte e literatura, mas um sistema robusto e público de livrarias é uma solução melhor que um monopólio que faz uso de políticas de preço predatórias.

 

Resistir à Amazon, como sugere o título do seu livro é uma tarefa difícil em si. Porém, além da própria Amazon há uma dúzia de outras grandes empresas cujas práticas também são questionáveis, ou cujos donos são odiados — penso, por exemplo, no Twitter, que foi comprado por Elon Musk. Sendo assim, parece ser ainda mais difícil manter alguma consistência neste tema, estamos de certa forma acorrentados a esta ou àquela empresa. Existe um jeito de lidar com tantas responsabilidades como consumidor, quando a cada esquina há grandes corporações que administram cada aspecto das nossas vidas?

 

Esta é uma boa pergunta, e no fim meu livro é sobre mais do que a Amazon. Sempre digo que é [uma obra] a favor de livrarias e pequenos negócios, em lugar de ser um livro contra a Amazon (apesar de, claro, ser um pouco disto também). Pelo fato do indivíduo já enfrentar tantas escolhas impossíveis nesse mundo controlado por corporações, eu nunca direi que a solução para todas essas questões está apenas nas mãos do indivíduo e nas suas escolhas. A solução é sistêmica. A defesa da implantação de políticas públicas e um movimento de massa [dos consumidores de livros] são algumas das respostas para o problema do monopólio corporativo. Suas escolhas individuais podem enriquecer sua própria vida, como o fizeram com a minha. Acredito mesmo que minha vida é melhor por não usar mais a Amazon e estar ativamente formando relações com pequenos negócios. Mas não acho que essas pequenas decisões têm grande impacto sobre o problema em si. Por isso, parte da minha defesa é pressionar por políticas públicas e provocar este tipo de conversa.

 

Pode comentar algumas das políticas públicas que você defende?

 

Aqui vão duas: primeiro, o Amazon Marketplace é configurado para que a Amazon seja a um só tempo hospedeira de uma plataforma e competidora nesta plataforma. Tecnicamente, o Marketplace é um site no qual comerciantes terceirizados poderiam vender suas coisas. Mas a maneira como a Amazon o configura permite todo tipo de práticas predatórias, como a cobrança de taxas de venda absurdas. Ainda pior, ela compete com os vendedores terceirizados, o que significa que pode dar a si mesma anúncios gratuitos e até roubar ideias para fazer seus próprios produtos. Tudo isso é particularmente ruim porque o Marketplace é uma grande potência de vendas online — há quem diga que é a única maneira viável de vender produtos online nos EUA. Então, falar que a Amazon está administrando sua plataforma de vendas de uma forma injusta é [na verdade] dizer que eles estão administrando A plataforma de vendas de forma injusta. Seria fácil proibir esse tipo de prática, por exemplo.

Segundo, acabei de passar um tempo em Paris escrevendo meu próximo livro. A França tem uma lei que estabelece preços fixos para os livros, prevenindo abusos [a Lei Lang, aprovada em 1981, obriga o varejo oferecer até 5% de desconto ao consumidor por dois anos após o lançamento da obra]. Ajudaria bastante as livrarias que mais leis assim existissem, como tem acontecido na França. Paris tem centenas de livrarias. Chicago [que possui população e território maiores que a capital francesa], tem 55.

 

Durante a pandemia, com o isolamento social — e a leitura implica sempre algum grau de isolamento —, saíram vários artigos apontando um boom de consumo de livros. Você acha que isto mudou de alguma forma a lógica do consumo de livros e ajudou negócios locais, ou simplesmente serviu para que a Amazon crescesse e se tornasse ainda mais potente?

 

Novamente, posso apenas falar pela minha experiência, mas a pandemia foi um momento raro, em que livrarias tiveram uma breve oportunidade contra a Amazon. Em abril de 2020, a Amazon deixou de priorizar livros por algumas semanas. Os pequenos comerciantes puderam, então, enviar livros mais rápido que ela (sem que se curvassem, claro, às terríveis práticas trabalhistas da empresa). Usamos aquela chance para ganhar novos clientes, e, depois, reter alguns desses clientes como membros da nossa comunidade, quando a Amazon retornou ao jeito usual de entrega. Toda essa situação foi uma boa chance para que contássemos nossa história e filosofia de comunidade. Acredito que crescemos um pouco por isso — ainda que a Amazon continue sendo uma grande ameaça, a maior de todas contra as livrarias e seu ofício.

Por último, uma pergunta talvez incontornável: você crê que há realmente como ganhar contra a Amazon?

Espero que sim, de verdade. É mais do que [uma questão de] sobrevivência das livrarias e do comércio online, é sobre como as comunidades serão no futuro, como serão se deixarmos corporações e monopólios o definirem. É algo tão importante para mim que não consigo me imaginar desistindo.

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