Atef Abu Saif: Israel não está em guerra contra um partido político, mas contra Gaza

 

Por Chris Hedges
Entrevista a Atef Abu Saif

 

O jornalista estadunidense Chris Hedges fez uma longa entrevista com o escritor palestino Atef Abu Saif, autor de Quero estar acordado quando morrer. Em seu canal no Youtube, Hedges e Saif conversaram longamente sobre o cerco israelenses a Gaza e as inúmeras guerras e ataques que o autor vivenciou ao longo dos seus 50 anos de vida e sobre as quais escreveu. A eloquência e a vulnerabilidade das falas de Saif revelam o peso do genocídio israelense em Gaza. Abaixo, selecionamos e traduzimos trechos da entrevista em vídeo — que tem duração de cerca de uma hora e foi realizada em inglês

 

 

Um grande número de escritores, jornalistas e fotógrafos palestinos, muitos mortos nos ataques israelenses a Gaza, está determinado a nos fazer ver e sentir o horror desse genocídio. No fim, eles vão vencer as mentiras contadas pelos assassinos. Escrever e fotografar em tempos de guerra são atos de resistência, atos de fé, atos que confirmam a crença de que um dia — dia este que talvez os escritores, jornalistas e fotógrafos não estejam vivos para ver — as palavras e imagens poderão evocar piedade, compreensão e indignação, e proporcionar sabedoria.

Eles relatam não apenas os fatos, embora os fatos sejam importantes, mas a textura, a sacralidade e a dor das vidas e comunidades perdidas. Eles contam ao mundo como é a guerra, como aqueles que são abocanhados por sua mandíbula mortal suportam a situação, como alguns se sacrificam pelos outros, como é o medo e a fome, como é a morte. Eles transmitem os gritos das crianças, os lamentos das mães, a luta diária diante da violência industrial selvagem, o triunfo em meio à sujeira, à imundície, à doença e à humilhação. É por isso que escritores, fotógrafos e jornalistas são alvo nesta guerra: para serem destruídos. Eles são testemunhas do mal, um mal que os agressores querem que seja enterrado e esquecido. Eles expõem as mentiras. Eles condenam, mesmo do túmulo, os assassinos.

O escritor palestino Atef Abu Saif, juntamente com seu filho de 15 anos, Yasser, que vive na Cisjordânia ocupada, estava visitando a família em Gaza, onde Atef nasceu, quando Israel iniciou sua campanha de terra arrasada. Atef não é novato em relação à violência dos ocupantes israelenses. Atef fez o que os escritores fazem, inclusive seu colega de Gaza, Refaat Alareer, que foi morto, juntamente com o irmão, a irmã e os quatro sobrinhos, em um ataque aéreo ao prédio onde moravam, em 7 de dezembro. Atef descreveu durante 85 dias o horror que o cercava, produzindo um trabalho assombroso e poderoso, Quero estar acordado quando morrer: diário do genocídio em Gaza. Atef Abu Saif concedeu esta entrevista on-line, de sua casa em Ramallah, na Cisjordânia ocupada, para falar sobre o genocídio em Gaza e sobre seu livro.

 

 

Então, Atef, vamos voltar para antes de 7 de outubro. Essa não é a primeira vez que você teve contato íntimo com a violência israelense: quando menino, você foi baleado pelos soldados de Israel. Então, vamos começar com esse incidente e depois falar sobre os ataques israelenses anteriores que você viveu em Gaza, e sobre os quais escreveu.

 

Lembremos que, há 67 anos, essa guerra nunca parou para o povo palestino. Quando minha avó e meu avô foram arrancados de sua cidade de Yafa e enviados para as areias de Gaza para viver em um campo de refugiados, eles morreram lá, infelizmente. Nunca retornaram. Portanto, essa guerra nunca parou. Assim como a guerra contra autores, intelectuais, artistas, pintores palestinos e, eu diria, contra a cultura palestina, também nunca parou. Podemos mencionar dezenas de autores palestinos, como Ghassan Kanafani. É uma longa lista.

Assim como os palestinos, os jornalistas internacionais que tentam veicular a verdade sobre a Palestina também foram alvos, como a estadunidense Rachel Corrie, morta pelos soldados israelenses em Rafah há 15 anos. Portanto, seja quem for que queira transmitir ou contar o que realmente está acontecendo nos territórios ocupados por Israel, está sujeito à violência, não importa quem, e provavelmente será morto.

Quanto a mim, como você disse, nasci no campo de refugiados de Jabalia, no norte de Gaza, em 1973. Eu tinha dois meses de idade quando a guerra de 1973 começou. Portanto, eu diria que, como a maioria dos palestinos, nasci durante a guerra e, na verdade, posso morrer durante a guerra. E é assim que começa meu romance selecionado para o Arab Booker Prize, A Suspended Life.

Naim, o personagem principal do romance, nasceu durante a guerra e morre durante a guerra. E essa é a nossa vida como palestinos. O que vivemos é o tempo de sobrevivência. Mas, no fim, nós não sobrevivemos. O decurso normal é ser morto e sua casa ser destruída, como a minha casa foi destruída nesta guerra. Portanto, nosso tempo de vida é como um intervalo. Não é uma vida normal.

Eu me lembro da primeira vez que fui preso. Eu tinha nove anos de idade. Eu estava na escola primária quando o exército israelense atacou nossa escola. Era 1982, mesmo ano em que Israel invadiu o Líbano. Estávamos na escola primária. Lembro-me do que minha mãe disse ao capitão quando ela foi atrás de mim ao acampamento das forças de ocupação israelense: “Ele não entende de política, sabe?”. Ela queria me tirar dali de qualquer jeito. Passei um dia preso e depois nos libertaram — éramos dez estudantes.

Quando veio a primeira intifada [1987], eu era como a maioria da minha idade. Os meninos e as meninas da minha idade, da minha época, jogavam pedras nos soldados. E, por isso, fui alvejado três vezes. Em uma delas, os israelenses me levaram para a cova onde eu deveria ser enterrado. E, de repente, eu me lembro, era uma médica britânica… Ela estava conosco no Hospital Batista Al-Ahli, onde agora Israel massacrou quinhentas pessoas. Nós o chamamos de “hospital britânico”. E essa médica disse aos soldados: “Ele está vivo”. Passei por uma cirurgia de doze horas. Então, eu diria que sou filho da morte. Fui tirado da boca da morte.

Sempre me lembrava disso quando estava tentando proteger meu filho, Yasser, que estava comigo durante em Gaza quando a guerra atual começou. Eu pensava o tempo todo que ele não podia ser morto, porque eu seria responsável por isso, pois sou o seu pai. E, é claro, você se sente impotente. Muitas vezes eu me via sentado assim [com as mãos na testa] dentro de uma tenda, pensando coisas como, sabe, se um foguete caísse aqui, disparado por um helicóptero ou drone israelense, ou qualquer outra coisa assim, e matasse o meu filho, a culpa seria minha.

Eu ficava tentando me convencer de que nós, humanos, não podemos, não controlamos nosso destino. No nosso caso, é ainda pior, pois é o exército israelense que controla o destino dos palestinos em Gaza. As mortes e a destruição nunca pararam em Gaza.

Posso contar centenas de histórias que eu mesmo presenciei durante meus 50 anos de idade. Posso contar que meu avô materno foi morto na guerra de 1967. E, antes, ele foi ferido durante a Nakba. Dá para acreditar? Ele estava em Yafa naquela época. Acho que tinha 16 anos quando foi ferido em 1948 pelas gangues sionistas, que agiram para expulsar, matar e instaurar o terror nos palestinos antes dos primeiros assentamentos israelenses. Há tantas histórias a serem contadas sobre isso, mas sempre temos que nos lembrar de que a vida é preciosa, e que temos que vivê-la e lutar por ela.

 

Você tem um livro anterior, The Drone Eats with Me [O drone faz as refeições comigo], sobre os ataques de Israel a Gaza em 2014. Você poderia falar sobre esse livro e comparar aquela guerra com o que está acontecendo agora?

 

Como eu disse, vivi todas as guerras de Gaza desde 1973. Eu escrevi sobre vários ataques anteriores aos atuais, mas nunca publiquei. E ainda tenho os manuscritos. Quero dizer, espero que ainda tenha, que ainda existam em algum lugar de Gaza. Mas, sobre a guerra de 2014, ela começou como a de hoje. E foi muito grande, enorme e muito agressiva. Sofremos muitos ataques israelenses. Naquela ocasião, tudo aconteceu de repente. Os ataques ocorreram em toda parte. E o exército israelense invadiu Gaza pela primeira vez desde os Acordos de Oslo [1993].

Eu escrevia diariamente sobre o que estava acontecendo, porque sentia que ia morrer naquele momento. Assim como senti que ia morrer durante a ofensiva atual. Podemos até comparar guerras, mas às vezes é ridículo comparar guerras, porque, como você sabe, o objetivo da guerra é matar você. Portanto, a morte está mais perto de você numa guerra ou outra, mas ela está sempre tentando pegá-lo. A guerra de 2014 foi para nós a primeira guerra em massa a que assistimos, que testemunhamos e vivenciamos.

Então, naquela época, e não gosto de dizer isso, mas acho que era um ensaio para a guerra que estava por vir.

E quando a guerra de 2023 começou, tentamos comparar com a de 2014, porque a guerra de 2014 era tudo o que tínhamos em nossa memória relacionado a uma guerra massiva. Com meus outros amigos, dizíamos que, “se essa guerra não parar no 51º dia — que foi a duração da guerra anterior –, então isso aqui é diferente”. E, é claro, o que estávamos fazendo era apenas um tipo de autoindulgência, estávamos tentando nos acalmar, dizendo a nós mesmos que a nova guerra não duraria 51 dias.

Por exemplo, quando estávamos nas tendas de refugiados, minha tia-avó Nur me perguntou: “Você acha que vamos passar o Ramadã aqui?”. Porque ela não queria passar o Ramadã em uma tenda. A propósito, Nur viveu toda a sua infância em uma tenda. E passou os últimos meses de sua vida na tenda, assim como minha sogra, que nasceu em 1948, em Magdala, e foi levada pela mãe para Gaza.

Falei sobre ela em Quero estar acordado quando morrer, e ela estava viva no dia em que terminei meu livro, quando saí de Gaza. Depois do Ramadã, por telefone, ela me perguntava: “Vamos passar o ano aqui?”.

[…]

Por que Israel destrói um castelo em Gaza? Por exemplo, o palácio Qasr al-Basha. Quando Napoleão entrou em Gaza, ele utilizou o palácio como seu escritório. Os turcos o usaram como escritório militar, assim como os britânicos. Por que Israel quis destruí-lo? Um castelo não pode te prejudicar… E os israelenses já o tinham ocupado, já estavam lá dentro. Os tanques estavam lá e, a propósito, eles nem mesmo atiraram de muito longe no castelo. Os tanques estavam em frente à muralha histórica do castelo.

O palácio Qasr al-Basha era também um museu, onde havia jarros fenícios e espadas de cruzados, sabe? Há objetos de todas as épocas, são monumentos. Portanto, ninguém entende por que um tanque se posiciona em frente a um palácio histórico onde não há resistência, nenhum exército, nada, e o destrói. Mesmo que você seja louco, você se senta lá e toma seu café como um vencedor. Vamos assumir que você venceu a guerra, então você se senta ali e aprecia a paisagem. Está na colina no meio da Cidade de Gaza. Ninguém consegue entender por que Israel precisa entrar nos estúdios dos artistas. Isso está gravado em vídeo, os israelenses gostam de destruir pinturas. E se divertem roubando as coisas! Saqueiam e escondem.

 

Os projetos coloniais precisam destruir a cultura, a identidade e a história daqueles que ocupam. É dessa forma que eles afirmam a própria supremacia.

 

Sim, sim, sim. Teoricamente, você pode entender isso. Mas, se fosse só isso, eles não estariam fazendo essas coisas com alegria, sabe? Os soldados israelenses estão fazendo isso com imenso prazer. Aliás, por que você mata um poeta? […] Então, é como se esta guerra estivesse mirando tudo em Gaza. O alvo é Gaza, não um partido político ou uma milícia, uma pessoa, um líder. Israel não tem nenhum outro objetivo além de eliminar Gaza e tornar a vida em Gaza impossível. Impossível para hoje, para amanhã, para o dia seguinte, e o dia depois do dia seguinte. Para muitos anos.

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