Breve história do progressismo antipático

Por Pedro Rocha de Oliveira
Entrevista a Tadeu Breda

 

Que, diante da ascensão da extrema direta, as forças progressistas e de esquerda brasileira se transformaram em ferrenhas defensoras da institucionalidade injusta e desigual que vigora no país — e que até pouco tempo criticavam ferrenhamente —, todo mundo sabe. Mas ninguém ainda havia explicado esse processo ao grande público como Pedro Rocha de Oliveira, que está lançando Discurso filosófico da acumulação primitiva: estudo sobre as origens do pensamento moderno — “um livro do barulho”, segundo Paulo Arantes —, que chega às livrarias em abril pela Elefante.

O professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) recorre aos principais pensadores do Renascimento inglês — Francis Bacon, Thomas More e Thomas Smith, cuja vida e obra destrincha em seu livro — para interpretar o fenômeno que levou à eleição e à quase reeleição de Jair Bolsonaro, e para entender como Alckmin, Globo e Alexandre de Moraes se tornaram, repentinamente, aliados do progressismo. Como resultado, o autor vê uma linha direta entre os ideais que fundaram o capitalismo no século XVI e a realidade política do Brasil no século XXI.

“Bacon queria agredir o populacho com sua concepção de ciência; More queria submeter as pessoas comuns involuntariamente a uma engenharia social bizarra. E o que os iluministas chamavam de ‘povo’ era uma fração da população como um todo: a que podia simpatizar com suas ideias”, explica. “Aí a intelectualidade progressista da contemporaneidade pega os conceitos fundamentais desses autores e pretende usá-los para falar com as pessoas comuns — apenas pretende, porque de fato não faz isso. As pessoas comuns são historicamente os inimigos dos autores modernos clássicos; passaram-se séculos, e elas continuam indiferentes aos intelectuais progressistas, com as suas ideias de laicidade, igualdade formal, racionalidade econômica, diferença entre o público e o privado etc. Essas ideias foram todas originalmente forjadas como armas contra a multidão.”

Na entrevista a seguir — que conseguiu a proeza de ser profunda e descontraída ao mesmo tempo —, Pedro Rocha Oliveira mobiliza suas pesquisas sobre as origens do pensamento moderno para torcer e retorcer a análise sobre a política brasileira da atualidade, com destaque para o fracasso popular dos valores progressistas, vistos com cada vez mais antipatia pelas maiorias. Além de lamentar, como temos feito inutilmente nos últimos anos, agora podemos começar a entender por quê. O avesso do avesso.

 

Por que estudar história da filosofia moderna no Brasil do século XXI?

 

Pois é, Thomas More a essa altura do campeonato?! Bom, teve algo que me marcou na graduação em filosofia e nunca mais saiu da minha cabeça. E isso não é uma experiência única, só minha: é o comum, o usual, na filosofia acadêmica, em qualquer lugar, nos centros de excelência ou nas periferias que se espelham neles. A gente abre lá os autores clássicos, o Kant, o Platão, e aí dá dois minutos lendo qualquer coisa deles e você encontra lá o sujeito sendo misógino, racista, defendendo autocracia etc.

O Kant sempre que pode fala alguma coisa sobre como as mulheres são intelectualmente incompetentes, sobre como as pessoas comuns são estúpidas como bichos. O Platão, na República, no meio daquelas coisas lindas sobre o Bem e o Verdadeiro etc., tem mil ideias sobre como as pessoas comuns pertencem a uma cepa rude e estão destinadas a serem governadas por uma raça superior inteligentíssima. O Aristóteles, sujeito enciclopédico, também contribui lá com seu argumento sobre a inferioridade das mulheres e diz, basicamente, que se você foi escravizado é porque você não é realmente humano. E aí é aquilo, o Heidegger, no caso, bateu os calcanhares para o regime nacional-socialista… e por aí vai.

Mas o que acontece é que, a todo momento, esses “pequenos detalhes” sobre os autores clássicos são academicamente tratados como se fossem assunto periférico: não é a filosofia propriamente dita. Vamos ler os textos aqui, vamos entender o argumento, olha que difícil, olha que sutilezas. É assim que se lê. E eu ficava encafifado pensando: não é possível, deve haver alguma conexão entre o racismo da página 172, a misoginia explícita da página 335 e o argumento transcendental da página 284…

Afinal, o Platão foi se meter na política de Siracusa, certo? O primo dele foi um dos Trinta Tiranos que dissolveu a democracia ateniense e tomou o poder com ajuda dos Espartanos, ou não foi? O Aristóteles, com todas as finuras sobre a virtude, foi o preceptor de um cara que parece que mandou matar o próprio pai pra virar rei, e daí montou no Bucéfalo e foi subjugando povo atrás de povo da Macedônia até a Índia. Será que esses caras, que estavam no olho do furacão, iam ter tempo de parar pra escrever umas coisas completamente desconectadas desses contextos superimportantes em que viviam? Não. A filosofia deles deve dizer respeito ao contexto em que foi escrita — e diz!

O fato de que a gente não a estuda assim se deve a um problema intrínseco ao desenvolvimento das ciências humanas, o “progresso do saber”, que tende à especialização. A gente estuda história, sociologia, filosofia, como disciplinas com abordagens estanques e objetos independentes. Sob esse aspecto, a filosofia é legível por qualquer um em qualquer época — é o “discurso universal”, ela se dirige “ao humano” etc. etc. — justamente porque é tornada completamente desimplicada das questões específicas do seu tempo e da classe que a produziu. A gente lê o texto do Heidegger, estuda o raio do alemão, a filologia dos prefixos e os escambaus, mas o fato de que o Hitler vira chanceler da Alemanha em janeiro, e o Heidegger reitor de Freiburg em abril, a gente deixa de lado.

Ou seja: a gente aprende a tomar a filosofia como algo completamente inofensivo. Mas, assim como seus autores não foram inofensivos — na maioria, aliás, foram sujeitos realmente horríveis, pelos quais não deveríamos ter a menor simpatia —, seu pensamento também não era inofensivo lá no seu lugar e tempo de origem. Imagina que daqui a 1.700 anos alguém resolve estudar os poemas do Michel Temer desde o ponto de vista das sutilezas gramaticais que ele emprega. Talvez, retirados de seu contexto, os poemas ficassem até bons, imagine só! Claramente, o mais relevante no caso não seria a estrutura dos versos, mas o fato de que uma figura como o Temer escreveu poemas. Isso seria o fundamental, isso é que teria que ser entendido! Isso é tudo que não somos ensinados a fazer com a obra dos grandes filósofos — mas é o que eu tento fazer nas minhas aulas, e também no livro Discurso filosófico da acumulação primitiva.

E aí ocorre que, com os filósofos do renascimento, isso é mais fácil de fazer, porque a renascença é exatamente o momento em que aparece uma classe intelectual preocupadíssima em ter relevância na política. A querela desses primeiros modernos com os medievais — a crítica à preocupação desses últimos com o “sexo dos anjos” etc. — diz respeito justamente a isso: a uma classe que não quer ficar apenas especializando-se em exegese, mas que quer usar o que sabe para influenciar o curso do mundo. Notavelmente, na Inglaterra em particular — mas não só ali! —, a direção dessa influência é hedionda: são todos agentes do capitalismo agrário-mercantil, no tenebroso período da acumulação primitiva, da destruição dos últimos resquícios do modo de vida comunal no velho mundo, e do começo da destruição disso no mundo novo.

Veja bem, estamos falando de gente que realizou a tradução da Bíblia pro vernáculo, investiu nas companhias coloniais, formulou os alicerces do método científico, sedimentou a burocracia estatal monetizada, ressuscitou a terminologia da democracia clássica, militou no cercamento dos campos combatendo os camponeses rebeldes, estabeleceu as bases para o contratualismo e para o liberalismo… Intelectuais mais orgânicos do que esses, impossível. O que essas duas ou três gerações de pensadores têm de especial é que se tratavam de membros letrados das classes proprietárias, a quem coube, num momento crucial e particularmente infeliz da história humana, formular um monte de coisas pela primeira vez. O brilhantismo da filosofia que produziram se deve à total inerência dessa filosofia a um processo histórico absurdamente determinante para o destino da humanidade nos séculos seguintes — inclusive no nosso, e sabe-se lá por quantos mais.

Mas aí, como é que a gente é ensinado a estudar esses caras? Filosoficamente — ou seja, sem qualquer preocupação com o contexto. Olhem esses argumentos. Olha que bonita essa ideia de utopia, o não lugar. Mas é aquilo, o inventor da palavra “utopia”, Thomas More, foi xerife de Londres. Quer dizer: era chefe de polícia, gente. Chefe de polícia. E isso num período em que Londres vivia em estado de sítio, por causa dos sem-terra expulsos pelo cercamento dos campos e dos soldados empobrecidos que lutavam nas guerras absurdas do Henrique VIII, que aliás era amigo íntimo do More. Imagine, daqui a quinhentos anos, ler um livro do Sérgio Paranhos Fleury, o delegado do DOPS de São Paulo, desconsiderando completamente o contexto em que foi escrito. E lembre-se que, por calamitosa que tenha sido a ditadura brasileira (1964-1985), não se compara nem de perto ao período em que More atuou como xerife: ali foi, afinal, um ponto de virada na história da humanidade — o nascimento do capitalismo e do imperialismo, simplesmente. O cara é chefe de polícia, burocrata, parlamentar, presidente da Câmara dos Comuns no momento em que a modernidade está nascendo e o pau está comendo. Escreve um livro. Cunha o conceito de “utopia”. A gente vai pegar o conceito e achar bonito? Tem alguma coisa errada nisso, não tem não? A gente não pode ler um livro desses fora do contexto, e tomar os conceitos para nós, para dizer as nossas coisas. Se esses conceitos foram compatíveis com o projeto social e político de gente como Thomas More, eles deveriam ser incompatíveis com o projeto social e político de alguém que pretendesse pensar contra o capitalismo. Dialética tem limites!

 

Mas por que a Inglaterra do século XVI?

 

Eu compartilho da percepção, defendida por alguns pensadores críticos do capitalismo, de que o século XVI inglês é o momento certo para se assistir ao nascimento do capitalismo. É ali que o dinheiro começa a suplantar as relações de honra e favor tipicamente medievais; é ali que a comida vai sendo transformada sistematicamente em mercadoria, o que é um marco importantíssimo — e terrível — na história da humanidade; é ali que as formas tipicamente modernas de administração, representação e opressão passam a funcionar de modo sistemático; e é ali, também, que o modo de vida moderno europeu começa a se difundir pelo mundo, na base de tiro, porrada e bomba. Enfim, é um momento fulcral, justamente porque é um momento de transição.

Deixa eu falar um pouco melhor sobre isso, sobre transição. Trata-se do fim de uma era, e o início de uma outra, é o ponto de encontro entre duas formas de viver, a forma não moderna e a forma moderna. Antes da generalização da mercadoria, as pessoas viviam do que plantavam, caçavam, colhiam, com as próprias mãos, num mundão que não era de ninguém. Dependendo de onde você estivesse, o acesso à terra poderia ser mediado por uma classe de administradores — como no chamado “feudalismo”, por exemplo; mas havia uma relação imediata entre a vida ativa, o engajamento com as coisas, o trabalho, os costumes etc. e a satisfação de necessidades. Isso está muito claro no material histórico mobilizado por autores como Peter Linebaugh ou Marshall Sahlins. Os seres humanos se juntavam basicamente para isso, para viver juntos, para viabilizar a vida. Com a mercadoria, o dinheiro, o trabalho assalariado — ou seja, com o capitalismo pleno —, a vida como ponto de partida e de chegada vai para o beleléu. A vida humana deixa de ser algo em prol do que os humanos podem se esforçar diretamente. O fato de que você existe não garante que você vai conseguir se engajar em processos para tentar satisfazer suas necessidades. Não há garantia de que você vai trabalhar, porque tudo depende de uma contabilidade complicada que mede quanto trabalho de que parcela da população é realmente necessária para que possa ser produzida uma riqueza que reverta em lucro etc.

Bom, quando a gente estuda Revolução Industrial — século XIX e tal — para entender o que é capitalismo, a gente está olhando para uma época na qual, em grande medida, a transição do não moderno para o moderno já se completou. Na Europa e no Novo Mundo, as formas tradicionais de vida já foram em grande medida derrotadas: a perspectiva de voltar para a satisfação de necessidades através da lida direta com a natureza já não existe mais, na prática. É por isso que uma figura como o Marx, quando fala do fim do capitalismo, e apela ao comunismo — que é um termo que evoca as sociedades “primitivas”, não modernas, destruídas pelo capitalismo moderno —, também insiste que não há caminho de volta, que o único caminho possível é adiante, para frente, no progresso, aprofundando as relações modernas, desenvolvendo a sociedade burguesa ao máximo, até o ponto em que ela possa ser destruída por suas próprias contradições internas.

Bom, já no início do século XX vão aparecer uns caras, tipo o Walter Benjamin, o Marcuse, o Adorno, que vão dizer: olha, o capitalismo tolera muito bem contradições internas, tá? O capital come dialética ensopada com batata no almoço e no jantar, ele não vai sucumbir à crise e ao caos civilizatório: ele é a crise, ele é o caos civilizatório. E aqui estamos, em meio ao colapso ambiental, crises econômicas infinitas, financeirização ficcionalizada de tudo, esperando a próxima pandemia, num mundo de desigualdades impensáveis, com bilionários high-tech brincando de Lex Luthor — e o capitalismo nada de mostrar nenhum sinal de enfraquecimento… A crise capitalista não produz alteridade, é isso que os frankfurtianos, nos seus melhores momentos, estavam dizendo. E isso parece que simplesmente se verificou. Tem quem viva em negação contra essa ideia, mas, na prática, a desesperança reinante entre as pessoas comuns, a inexistência de uma política radical viável para além da falação dos ilustrados, reflete esse fato básico.

Mas aí, quando eu digo isso, a primeira objeção é geralmente: “Ah, seu pessimista, você não vê saída, você se acomodou”. Não é isso que eu estou dizendo. Eu gosto muito de uma frase do Kafka, é uma frase absolutamente genial, é uma ideia que, como é típico dos escritos dele, interpela direta e brutalmente a alma da classe média letrada, que é a classe moderna por excelência. O Kafka disse: “A esperança existe — mas não para nós!”. É exatamente isso. Existe esperança, existe saída, mas não dentro da modernidade e para os modernos…

Como assim? Bom, quando a gente olha para o século XVI, para o tal período de transição, o que é que a gente vê? Justamente o confronto do capitalismo com a sua alteridade, a sociedade não moderna, primitiva, comunal etc. Aquilo que, através de um malabarismo histórico, o Marx queria colocar no fim do processo, mas que já estava ali no início. A gente vê levantes populares organizando-se em torno de demandas e ideias que, para nós, soam completamente esdrúxulas — justamente porque são ideias fundamentalmente antimodernas, práticas, modos de fazer e de ver que pertenciam a um outro tempo, a um outro modo de vida — um modo de vida que (surpresa, surpresa) era radicalmente anticapitalista.

Você tem os cristãos radicais que pregavam sexo livre e propriedade comunal, os motins em que as mulheres aprisionavam os mercadores e ditavam o preço justo das mercadorias, as rebeliões em que o objetivo básico era simplesmente parar de trabalhar e passar o verão assaltando os armazéns das classes proprietárias, os caras que fugiam das colônias para ir viver com os índios, os escravizados fugidos que viravam pregadores de seitas milenaristas abolicionistas… A maior salada, messianismo, balbúrdia, reorganização do trabalho, distribuição de bens, abolição das fronteiras e de propriedade, democracia radical no exército, monarquia divina eleitoral… Isso aparece na obra da Silvia Federici, do Linebaugh, essa criatividade popular fervilhante que, no tal momento da transição, chegou ao auge.

Segundo essa perspectiva, se você quer olhar para além do capitalismo, você deveria olhar para tudo que existia antes dele. E aí a gente deparar com as estruturas sociais, os costumes, as crenças, as ideias, os comportamentos, que são realmente incompatíveis com a modernidade capitalista, que tiveram que ser varridos do mapa para que essa sociedade viesse a existir. Isso é muito estimulante para o pensamento histórico e político: é deparar com evidências incontornáveis de que a humanidade é capaz de viver de forma completamente diferente deste jeito insano, doente, catastrófico que vivemos.

 

Por que você acredita que os estudiosos que te antecederam preferiram omitir determinados acontecimentos da vida de pensadores como Bacon, More e Smith?

 

Basicamente, para poderem se relacionar com as ideias deles sem dor na consciência — como se fosse possível, contudo, aplicá-las fora de contexto, num sentido diferente daquele que estava embutido nelas originalmente. Um exemplo particularmente eloquente — para pegar um dos temas de que eu trato diretamente em Discurso filosófico da acumulação primitiva — é o conceito moderno de ciência experimental. O Francis Bacon, que é quem formula esse negócio de maneira clara e sistemática pela primeira vez, diz com todas as letras que, para alcançar a verdadeira ciência, cuja aplicação é realmente eficaz, é preciso deixar de lado qualquer relação de amor e curiosidade para com a natureza. Ele diz que essas são disposições infantis que impedem que o fazedor de ciências olhe para as coisas desde o ponto de vista da repetição e da quantificação.

Bacon vai adiante e diz o seguinte: toda a linguagem das pessoas comuns está formada com base em preconceitos, em concepções pré-científicas sobre como as coisas são: ele chama essa linguagem de idólatra. Então, para lidar com a natureza de maneira repetitiva e quantificadora, a gente tem que se livrar da linguagem das pessoas comuns, também. Em resumo: a ciência é um troço onde os sentimentos não contam e que tem que ser, por definição, incompreensível. Essa é a receita para se criar alguma coisa diante da qual as pessoas comuns vão torcer o nariz, certo? Aí passam cinco séculos, e o que está acontecendo? Os intelectuais progressistas se veem obrigados a defender a ciência de um desprestígio social generalizado. Ué, qual é a surpresa? Olhando lá para a sua origem, não tem nada de surpreendente nisso! O projeto era esse, mesmo.

Essa ciência que conhecemos nasceu num contexto de guerra civil, em que as pessoas comuns estavam resistindo o quanto podiam à ação de classe dos proprietários letrados que, com sua agrimensura, contabilidade, geologia etc. promoviam a conversão da terra onde se produzia comida em terra onde se produziria mercadoria. É essa classe proprietária que vai lá e formula um método científico, o qual tem que ser intrinsecamente antipático e antagônico ao modo de vida das pessoas comuns. A gente poderia continuar esse raciocínio: como será que uma sociedade baseada nessa ciência — uma sociedade inteirinha cientificizada, onde o sexo é mediado pelas substâncias químicas, a guerra é feita pelos tecnólogos e pelos homens de jaleco, e, como dizia o Trotski, o papa viaja pelas ondas de rádio —, como será que uma sociedade assim acabou desencadeando um processo provavelmente irreversível de destruição ambiental? Como será que foi, hein?

A partir daí, a grande pergunta é como diabos a esquerda acabou se encontrando na posição de defender, diante das pessoas comuns, o trabalho intelectual de gente que via o povo como uma ameaça, como uma turba de ignorantes. E acho que parte da resposta está justamente na questão da ignorância. No fundo — às vezes explicitamente, às vezes implicitamente —, nossos intelectuais estão situados diante das pessoas comuns nesse mesmo lugar do Francis Bacon, que é o lugar iluminista: essas pessoas são estúpidas e precisam de nós. No outro dia passou na minha time-line um vídeo de um intelectual importante da nossa esquerda… Não vou citar nomes, já me disseram que parece que estou de implicância… Mas é que tem pessoas que incorporam de forma resumida e sucinta o espírito de seu tempo e de sua classe, e prestar atenção nelas é como prestar atenção em toda uma coletividade. Enfim, no tal vídeo o cara dizia exatamente o seguinte — e estou citando literalmente, eu anotei: o papel da “classe intelectual” é falar sobre “o que a sociedade não gosta de falar”. Isso é a definição básica do papel da intelectualidade progressista, é como essa classe se vê, e como ela espera ser vista.

A sociedade está confortável com os seus ídolos, nosso papel é vir aqui e desmistificar tudo. Mas, gente, vamos ouvir com cuidado essa fala do intelectual progressista, vamos ouvir com muita atenção! O papel ao qual ele se arvora é profundamente antipático e antagônico, não é? Não há nesse intelectual empatia nenhuma para com seu suposto público. Ele gosta do que o público não gosta, ele quer o que o público não quer — e ele se orgulha disso. No que é mais essencial, no gostar mesmo, na esfera do desejo, o intelectual é diferente do público. E o intelectual então não tem preocupação com o conforto das pessoas que vão ouvir, não há o desejo de deixá-las bem, não há desejo de ouvi-las e entendê-las…

Quer dizer, entendê-las intelectualmente, sobre isso ele vai dar uma aula, mas entendê-las empaticamente, na sua necessidade intrínseca, no seu lugar que é o lugar possível, o nicho onde deu pra cavoucar uma existência no meio dessa desgraceira moderna, isso não vai rolar. Seus ídolos, sua religião, seu voto errado, suas distrações, seus confortos precários, seus gostos acessíveis, suas pequenas satisfações… não há nenhuma empatia para com nada isso — como não havia em Platão, em Kant, em Bacon. Existe o imperativo da hierarquia cognitiva: eu tenho aqui o dever de destruir as suas crenças! O intelectual progressista é como o psicanalista de um analisando involuntário, que não pediu pra ser analisado, mas vai ter seu inconsciente esfregado na sua cara, quer queira, quer não. A eficácia disso, clinicamente, seria zero — e essa é também a relevância do intelectual progressista para o grosso da sociedade.

Tipo: a rapaziada da escola pública na comunidade, na frente de onde eles estudam, a polícia vai e mata um cara, o corpo fica ali, isso acontece toda semana. Aí o intelectual chega para esse público e diz, então, eu quero falar com vocês do que vocês não gostam de falar, eu tenho uma verdade incômoda pra vocês. Mais incômodo, mano? Esse público precisa ser mais incomodado do que já está, é isso mesmo? A tiazinha passa duas horas no transporte público pra chegar no trabalho, duas horas pra voltar pra casa. E aí o que está faltando na vida dela é falar do que ela não gosta de falar? É escutar verdades inconvenientes? Isso não faz nenhuma espécie de sentido. Mas o antagonismo das ideias modernas, seu aspecto repugnante diante das pessoas comuns, não é um acidente: é, originalmente, um projeto de classe. Bacon queria agredir o populacho com sua concepção de ciência; More queria submeter as pessoas comuns involuntariamente a uma engenharia social bizarra. E o que os iluministas chamavam de “povo” era uma fração da população como um todo: a que podia simpatizar com suas ideias. O resto eram traidores, eram o “sangue impuro” cantado na Marseillaise, a ser derramado impiedosamente pelos verdadeiros cidadãos. O público original dos autores modernos clássicos é um público segregado, é a oligarquia inteligente, culta: eu procuro mostrar isso em Discurso filosófico da acumulação primitiva.

Aí a intelectualidade progressista da contemporaneidade pega os conceitos fundamentais desses autores e pretende usá-los para falar com as pessoas comuns — apenas pretende, porque de fato não faz isso. As pessoas comuns — a multidão, a plebe, o populacho — são historicamente os inimigos dos autores modernos clássicos; passaram-se séculos, as pessoas comuns estão aí indiferentes aos descendentes contemporâneos daqueles autores: os intelectuais progressistas, com as suas ideias de laicidade, igualdade formal, racionalidade econômica, diferença entre o público e o privado etc. Essas ideias foram todas originalmente forjadas como armas contra a multidão; pensando assim, no senso comum que resiste aos intelectuais progressistas, reside uma sabedoria histórica preciosa. Pensar contra o capitalismo precisa ser, também, se conectar a essa sabedoria.

Enfim, resumindo, o que eu tento construir em Discurso filosófico da acumulação primitiva é a percepção de que a postura antagônica e antipática da intelectualidade progressista não é uma coincidência, ou um acidente; é uma questão de classe, mesmo. Ela diz respeito à ingrata, desgraçada, infeliz e irrefletida continuidade que existe entre as ideias do Sérgio Paranhos Fleury do século XVI, as ideias dos iluministas do século XVIII, e as ideias dos revolucionários dos séculos XIX e XX.

 

Por que seu livro tem tanto a ver com a ascensão da nova direita no Brasil?

 

Por duas razões principais. Primeiro, porque fala de um alheamento, e até de uma inimizade histórica, entre os progressistas e as pessoas comuns, a despeito das eventuais juras de amor daqueles por estas. Isso torna inteligível o fato de que, de uns tempos para cá, socialmente falando, vêm acontecendo coisas absolutamente inaceitáveis desde o ponto de vista dos progressistas, mas que, como as últimas eleições presidenciais mostraram, são completamente “ok” para boa parte da população — a metade dela, e possivelmente mais da metade. Além disso, Discurso filosófico da acumulação primitiva fala dos limites da imaginação política moderna — limites esses que são justamente o combustível da nova direita, que é, em seu discurso, antimoderna.

Isso é muito curioso, é interessantíssimo, porque até pouco tempo atrás era a esquerda que monopolizava a crítica às instituições modernas. Mas a tal da sociedade dividida de hoje em dia é isso: a esquerda defendendo a modernidade — Estado laico, democracia, ciência etc. — e a nova direita batendo em tudo isso sem parar um segundo.

Quando a gente pensa no lema “a Globo mente” isso fica muito claro, e o que eu estou dizendo aqui é óbvio, mas precisa ser sublinhado. Quando eu era moleque, nos anos 1980, “a Globo mente” era um lema dos brizolistas, do pessoal que, no estado do Rio de Janeiro, inventou a educação pública integral, que fez abolicionismo penal na prática fechando presídio e controlando operação policial violenta: ou seja, um lema da esquerda. Quando o Brizola foi eleito governador do Rio em 1982, a mídia e os institutos de pesquisa — hoje, arqui-inimigos da nova direita, note-se bem! — diziam que ele não tinha chance, que era Moreira Franco na certa, e ele passou o resto da vida lembrando disso, junto com o fato de que a Globo tinha apoiado a ditadura.

Dez anos depois, no governo FHC, a esquerda metia o malho na propaganda unilateral que a mídia fazia das privatizações: de novo, “a Globo mente”. Dez anos depois disso, o lulopetismo e a esquerda da esquerda eram inimigos entre si, mas continuavam dizendo, enquanto progressistas esclarecidos: “a Globo mente”. Uma década depois, Lava Jato, impeachment e tal. “A Globo mente” significava que a mídia estava naturalizando um processo de judicialização da política, apoiando golpe pela segunda vez etc. Mas, nos tempos que correm, quando o jogo virou, o Bolsonaro se tornou inimigo público da sociedade bem-pensante, e aí a Globo virou “nossa” aliada, junto com todas as chamadas “instituições democráticas” — inclusive o próprio Supremo Tribunal Federal (STF), o qual, especialmente depois da Lava Jato, atua abertamente como um órgão de poder discricionário, inalcançável por qualquer “freio e contrapeso”, árbitro último da democracia eleitoral. Beleza, o jogo virou. Mas vamos pensar nisso com calma.

Na época das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e das ações policiais-militares nas favelas cariocas do final do lulopetismo, na época do impeachment e dos cinquenta anos da ditadura, o conceito de “estado de sítio” ou “estado de exceção” emergiu como uma ferramenta de explicação para as barbaridades que vinham ocorrendo, a mistura fina de autoritarismo e democracia que estávamos vendo. Passados dez anos, essa mesma mistura — através dos chamados “excessos” do STF, a respeito dos quais até a Globonews tem que falar, por desencargo de consciência, apenas para espanar o assunto pelos ares em seguida — é a garantidora da manutenção do lulopetismo reeditado contra a nova direita. É claro, os tais “excessos” dizem respeito a firulas processuais, sabe-se lá se os inquéritos de ofício do Alexandre de Moraes são realmente legais ou não, a questão não é essa. Vai ter dez especialistas com bons argumentos pra dizer que sim, dez pra dizer que não, e dez outros pra dizer “talvez”. A questão é justamente que, por definição, como na época da Lava Jato, não dá pra saber se os atos mais “polêmicos” do STF são legais ou não, porque o STF, como qualquer corte suprema, opera no espaço de decisão a respeito da legalidade, foi feito para operar nos limites da democracia mesmo, é o poder discricionário — no qual a vontade é sinônimo de lei — sobre o qual repousa todo o resto. Isso é o arroz-com-feijão da teoria crítica do republicanismo e do Estado moderno, Giorgio Agamben, Luciano Canfora etc. Mas tá valendo autocracia e amizade com a reedição do Joaquim Barbosa se o assunto é “barrar o fascismo”, como se diz.

Olha, não estou dizendo que os progressistas estão sendo incoerentes, o problema não é esse. A crítica marxista coloca claramente: o Estado é uma ferramenta de classe, ele serve para oprimir, para exercer poder de forma concentrada, para fazer violência. A questão toda é: qual é a classe que está usando o Estado, e para quê? Assim, na imagem da revolução proletária, o “nosso” lado tomaria o poder e usaria contra a burguesia as mesmas armas que a burguesia usou contra o proletariado anteriormente. Em termos formais, nada de errado com isso. Mas a questão é a seguinte: qual é o setor da sociedade que apoia os excessos do STF? Qual é o setor da sociedade que está empregando os órgãos do Estado, com o apoio da mídia corporativa, para ajudar a enterrar a nova direita? Quem disser que é “o povo”, “os trabalhadores”, ou está mentindo na cara de pau, ou está usando óculos cor-de-rosa. Metade da população foi lá, viveu o bolsonarismo e votou no bolsonarismo de novo. Quando a gente tem que mobilizar os dispositivos autocráticos, discricionários, para impedir que essa metade da população vá lá e vote na nova direita pela segunda vez — e continue votando para todo o sempre, como se delineia na Turquia e na Hungria —, o que a gente está assumindo é que, na base do discurso racional e do voto, há um risco grande demais de ser impossível deter a nova direita. Ou seja: os progressistas não estão dispostos a deixar a democracia nas mãos do povo. Quando defendem usar qualquer recurso disponível para “deter o fascismo”, estão assumindo que acabou o caqui, que a democracia moderna fracassou, ela implodiu, ela está demasiado pronta para dar um passo em direção à própria abolição — a não ser que a gente a defenda por meios possivelmente não democráticos, como os inquéritos de ofício etc. É um paradoxo, né?

Não estou dizendo que os progressistas estão sendo incoerentes — não estou querendo corrigir o Marcos Nobre quando ele diz que quem defende a democracia em abstrato acaba tendo que engolir Hitler. Estou só querendo tirar as devidas consequências do fato de que defender a democracia concretamente exige que façamos aliança com os tradicionais inimigos da democracia brasileira — como a Rede Globo — e com os atores políticos que operam por definição com um pé dentro e um pé fora dela — como o STF. O que isso significa é que a democracia virou, para usar o vocabulário do século XVI, uma facção entre muitas, está em descrédito, se tornou virtualmente o projeto político de uma minoria — uma minoria que precisa apelar para meios antidemocráticos ou semidemocráticos para sobreviver. Os intelectuais progressistas são os representantes autodeclarados dessa minoria. E o resultado é que acaba ficando nas mãos da nova direita dizer aquilo que uma figura como o Agamben poderia estar aqui dizendo, também: o STF é um órgão autoritário; vivemos sob a ditadura da toga. Isso é mentira? Quando o Lula foi preso, e na época da Lava Jato, achávamos que não. Que rolo, né, minha gente?

Então estamos falando de uma situação na qual a esquerda progressista, que tradicionalmente representa os interesses do povo, tem que virtualmente se situar contra o povo: não só contra a parte do povo que vota contra a democracia, mas contra a parte do povo que poderia votar contra a democracia — e sabe-se lá em quantos brasileiros corre esse perigoso “sangue impuro”! O que a gente tem que perguntar é: como chegamos até aqui?

Pra responder a isso, eu sinceramente acho que tem que reescrever a história do Brasil prestando atenção, desde os primórdios, na diferença entre como as pessoas comuns se manifestaram politicamente e como as classes letradas progressistas — os intelectuais e os políticos profissionais — se manifestaram politicamente. Imaginando essa história sendo reescrita, antevejo que, chegando em tempos recentes, o conceito mais importante que a gente vai ter que encontrar é o conceito de populismo. Populismo é alguma coisa que o povo gosta, mas diante do que os progressistas torcem o nariz, porque fica aquém dos critérios modernos de racionalidade administrativa, política e econômica. Percebe que voltamos à imagem dos intelectuais antagônicos sem empatia, inimigos do senso comum, cuja missão é despejar verdades desconfortáveis nos ouvidos das pessoas ignorantes? Intelectuais que, para além de profissões de fé, não construíram, através dos séculos, nenhuma aliança política sólida, nenhuma comunidade indissolúvel de interesses com as pessoas comuns…

Pois bem, nenhum lugar melhor do que o século XVI para entender a gênese desses intelectuais. Discurso filosófico da acumulação primitiva é sobre isso mesmo: sobre a origem do progressismo. Hoje testemunhamos seu ocaso, na fogueira resplendente de contradições e urgências em que a modernidade vai virando um amontoado de cinzas estéreis. Esse espetáculo tenebroso é a propaganda que vende o meu peixe.

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