
Em Hiroshima, uma voz nos escombros da monstruosidade
Por Günther Anders
Segue um trecho de Hiroshima está em toda parte, de Günther Anders, segundo livro do autor lançado pela Elefante (antes: Nós, filhos de Eichmann).
Os textos que compõem a edição — um diário, uma correspondência e um discurso — abordam o advento do autoextermínio e a responsabilidade de cada ser humano pelos acontecimentos monstruosos que marcaram o século XX.
“Quando retomei a consciência, estava severamente queimado. Minha mulher também estava num estado lastimável. Caminhamos por entre os escombros. Daí minha mulher tropeçou em algo. Era um homem. Não o reconhecemos. E não pudemos ver se ainda estava vivo ou se estava morto. Mas ele nos reconheceu. ‘Me deixem, filhos’, ele sussurrou, ‘fujam!’ A voz estava empastada e estranha, mas percebi que era a voz do meu pai. Mas, quando olhei para ele, disse a mim mesmo: não é ele. ‘Saiam daqui!’, ele gritou (não, não acho que tenha gritado, mas soou como uma ordem), ‘saiam daqui! Senão vocês também vão acabar deitados!’ É ele mesmo, pensei, e saí correndo para trazer um recipiente qualquer cheio d’água. Mas, quando tentei lhe dar a água para beber e quando o vi falando novamente, disse a mim mesmo: não é ele. E fiquei com medo. E disse à minha mulher: ‘Vamos obedecer!’ e puxei-a atrás de mim, e assim partimos, deixando-o deitado. No caminho, vimos várias outras pessoas deitadas e as deixamos assim. A cada vez, eu pensava: é o meu pai.”
“Amém”, pensei. O homem fez um gesto acompanhando cada uma dessas frases curtas, que parecia dizer: se vocês acham que conseguem, então me julguem. E, depois de ter encerrado, fez um segundo gesto que parou no ar e que dizia: agradeço-lhes, pois nenhum de vocês parece jogar uma pedra em mim. Mas não consigo ficar em paz com o que fiz ou deixei de fazer. Vocês também não ficariam. “Ele e a mulher teriam morrido também”, explica o intérprete, “caso ele tivesse tentado resgatar o pai”.
Mas essa explicação era supérflua. Certamente não havia ninguém entre nós que teria pensado em atirar uma pedra nesse homem; nenhum europeu, indiano, americano, australiano ou japonês ousaria fazê-lo. Todos nos comportávamos de maneira absolutamente igual: mantínhamos a cabeça baixa, não apenas porque nossa dor era grande demais para que tivéssemos coragem de mostrá-la mas também porque nossa vergonha era grande demais: vergonha de sermos seres humanos. Vergonha pelo fato de pessoas colocarem outras pessoas em situações nas quais é impossível agir humanamente.
O que a indiana ao meu lado sussurrava, provavelmente mais para si mesma do que para mim — “Do we know how we would have behaved?” —, deve ter sido o pensamento de cada um. Quando o homem se despediu com uma mesura, a fim de dar o lugar ao próximo a falar, não havia ninguém que não se curvasse diante dele: por respeito a alguém inocente vítima daquilo e por vergonha de que essa infelicidade tivesse se abatido sobre ele e não sobre nós. São simplesmente demasiadas as decisões esperadas dos seres humanos nessas situações. A famosa frase sem muitos rodeios “Não importa o que façamos, sempre agimos errado” assume grande veracidade aqui, onde o ser humano não tem mais permissão para agir corretamente. Se nosso homem tivesse decidido confiar nos ouvidos, e não nos olhos; se tivesse ficado ao lado do pai, em vez de tentar escapar daquele inferno, ou se tivesse tentado carregá-lo nas costas, como na antiguidade Eneias fez com o velho Anquises, ele teria sacrificado a mulher e a si mesmo.
O que também não lhe era possível. O postulado moral que resulta daí é muito particular. O que podia ser suposto sem mais nas morais anteriores, ou seja, que é possível agir moral ou imoralmente, perdeu a validade. A restauração dessa situação é, portanto, a principal exigência. Portanto, o postulado enuncia: impeça o surgimento dessas situações nas quais não é mais possível ser moral e que, por essa razão, escapam da competência dos julgamentos morais.
Se é possível falar de imoralidade aqui, então imoral não é esse ou aquele passo que as vítimas dão nesse tipo de situação, mas a ação de outros que (tanto faz o quão indiretamente e sem querer) produzem ou provocam essas situações, e, por meio de sua produção ou provocação, tiram das outras pessoas a possibilidade de um agir moral. E, independentemente de quão humanitárias sejam nossas ações, nosso comportamento também é imoral sempre que não consiste em impedir tais situações.