Por Raúl Zibechi
Publicado na Revista online do Instituto Humanitas Unisinos 

 

Nós que fomos formados no materialismo e no pensamento crítico eurocêntrico temos sérias dificuldades em compreender e assumir o papel da espiritualidade nos processos emancipatórios. Somos profundamente dependentes da célebre frase de Marx que se referia à religião como o ópio dos povos, e parece nos reconfortar a redução do espiritual às instituições eclesiais hegemônicas. No entanto, ignorar a espiritualidade dos povos leva à reprodução do capitalismo através do individualismo e do consumismo.

Graças ao apoio de um pequeno grupo de ativistas do Brasil, pude conhecer o território indígena Tenondé Porá, habitado por guaranis mbyas nas matas do sul do município de São Paulo. Nos últimos 10 anos, empreenderam intensas lutas através da retomada de terras ancestrais, processo em que recuperaram quase 16.000 hectares e fundaram 12 aldeias novas, onde antes havia apenas dois.

A experiência vivida na aldeia Kalipety, os diálogos com membros da comunidade, as partilhas com amigos e, sobretudo, a participação em rituais na casa de reza, mostraram-me as limitações do pensamento crítico em que fomos formados [1]. Uma dessas limitações, vinculada a um materialismo estreito, é a incompreensão da espiritualidade como argamassa das comunidades, de seu vínculo com a terra e o território, e como eixo de suas resistências passadas e atuais.

Espiritualidade que não é religião, nem ideologia. Envolve os corpos e não apenas as mentes, recria-se no cotidiano e sustenta a vida humana e não humana. Nas aldeias não existem monoculturas, nem a concentração dos meios de produção e tudo o que se consome é produzido trabalhando, boa parte disso por meio de trabalhos coletivos.

Diferentemente das místicas ou eventos culturais dos movimentos sociais, que por breves períodos acompanham mobilizações e formações, para os guaranis mbyas a espiritualidade é entendida em um tempo sem tempo, como escreveu Mario Benedetti. A casa de reza é o centro simbólico da vida comunitária. Todos os dias, ao entardecer, a comunidade dança e canta ao som de suas músicas, por algumas horas. Em certas ocasiões, a reza se estende até o amanhecer.

A espiritualidade não é praticada para obter um fim, para conseguir algo que se pede a alguém (deuses, sacerdotes ou políticos). Reza-se para ser, para continuar sendo o que se é, individual e coletivamente, para continuar sendo povos diferentes. O vídeo sobre Las Abejas de Acteal, Teciendo el territorio, aprofunda esse assunto sem mencioná-lo, pela naturalidade com que o povo tsotsil e os povos maias resistem e reproduzem suas vidas.

As espiritualidades dos povos, suas cosmovisões e valores estão intimamente ligados à luta pela autonomia. A reflexão de Francisco López Bárcenas, em Autonomías y derechos indígenas en México, ressalta formas de mobilização invisíveis para o exterior como as que “realizam dentro de si mesmos”. Nessas práticas, recorrem aos seus guias espirituais com o objetivo de restabelecer a harmonia entre os homens deste tempo e os do passado, bem como entre a sociedade e seus deuses.

Em seus lugares sagrados, fazem oferendas e se comprometem a recompor suas relações com seus antepassados, suas divindades e a natureza. A reflexão termina relacionando espiritualidade e autonomia. Como muitos não as veem ou as vendo não as entendem, pensam que os povos não se mobilizam, quando na verdade são as mobilizações mais significativas para os povos, porque a partir delas constroem sua autonomia.

Considerar a espiritualidade um suporte para a autonomia implica superar o materialismo estreito, para adotar uma visão mais ampla. No pensamento ocidental, a chave da comunidade é a terra coletiva, entendida como um meio de produção e não um espaço integral de vida. Pelo que pude sentir, e pelo que se constata onde os povos resistem (mais uma vez recordo as quatro famílias de Nuevo San Gregorio), a espiritualidade é um aspecto central que complementa e sustenta a posse coletiva das terras.

As resistências dos povos se organizam em torno de suas próprias cosmovisões e espiritualidades. Não parecem preocupados com ideologias ou programas, como acontece com o pensamento crítico eurocêntrico.

Falta ainda compreender a espiritualidade como núcleo de uma ética da vida que questiona nossos modos de viver, em particular o individualismo. Uma ética que sustente aqueles que resistem ao capitalismo, que não se vendem, não claudicam, nem se rendem.

 

Nota

[1] Minhas reflexões estão entrelaçadas com as de várias pessoas: Tato Iglesias, da Rede Trashumante, na Argentina; Silvia Beatriz Adoue, professora na Escola Florestan Fernandes, do MST, e os antropólogos Lucas Keese, Alana Moraes e Salvador Schavelzon.

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