Esquivar o poder

A esquiva do xondaro propõe o exercício de abrir os sentidos a criatividade política e, desse modo, quem sabe, expandir as nossas próprias compreensões do que esse conceito desgastado pode ser.

Por Breno Castro Alves
@trocavales
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Essa história começa pela dança, como se deve. Estamos no interior de uma opy, a casa de reza dos Guarani, com seu chão de terra, paredes de barro e brasas acesas. Preenchem o ar o som do mbaraka, um violão de cinco cordas, e do rave’i, um tipo de rabeca, instrumentos que se afinam com o ouvido dos deuses. São eles que marcam o ritmo para os jovens dançarem xondaro jeroky, em que os participantes percorrem circularmente o espaço, pulando, cantando e girando ao redor do sagrado e ao redor de si mesmos, quando, súbito, ataque!

O dançarino experiente que ocupa o papel de condutor, chamado de xondaro ruvixa, sabe o momento de surpreender seu cortejo. Ele carrega uma yvyraraimbe (espécie de tacape, borduna), mbaraka mirĩ (maracá) ou popygua (dois pequenos bastões unidos em um lado das extremidades por um curto fio). Ele guia as passadas ritmadas do grupo até que, sem aviso, se transforma em obstáculo.

Talvez corra na direção contrária, buscando trombar com seus dançarinos, ou quiçá utilize seus instrumentos como barreiras físicas, que o grupo precisa desviar como puder, entre muitas outras armadilhas. Alguns movimentos obrigam os jovens a se jogar ao solo, outros demandam que pulem sobre a yvyraraimbe para evitar a dolorida bordoada na canela que o xondaro ruvixa certamente desferirá.

Todo o processo é intenso, suado e alegre. O ritmo acelera até o limite da exaustão, abrindo espaço para o erro. Pois falamos de um jogo de engano, de finta, em que um participante se esforça para surpreender seus colegas e muitas vezes consegue, produzindo machucados superficiais e risadas profundas.

O ritual, absolutamente comum nos territórios guarani, oferece os fundamentos conceituais dos quais o antropólogo Lucas Keese dos Santos bebeu para escrever este A esquiva do xondaro: movimento e ação política guarani mbya, título que esta casa editorial traz à sua consideração.

 

Tujakueve ojeroky — os mais velhos dançam.

Xondaro ruvixa aplica cambalhota lateral.

 

Em tempos de evidente esgotamento dos modelos políticos da civilização dominante, o pesquisador teve a elementar iniciativa de buscar junto aos Guarani o que mais, além da lama que escorre desde Brasília, podemos conjugar como política.

Renato Sztutman, o antropólogo que orientou a dissertação da qual esse livro se originou, sintetiza no prefácio como em vez de buscar a política “nas disputas por uma posição estável de poder e soberania, mais valeria investigar mecanismos capazes de conjurar modos de coerção e subordinação. Uma chave para a política Guarani reside nos movimentos de uma dança, ou dança-luta. Os movimentos da esquiva, de fazer errar.”

Os Guarani, como centenas de outros povos originários, resistem à ocupação extrativista e amoral que nossa sociedade diuturnamente promove. Sua particularidade é a resistência próxima ao eixo maior do poder econômico no continente – há aldeias dentro do município de São Paulo e ao redor do Rio de Janeiro, seu território se espraia do Espírito Santo ao pé dos Andes, na Argentina. Ao longo do livro o autor demonstra como a prática de dançar a política é parte do que explica sua resiliência territorial.

Lucas também sugere que a dança guarani se encontra com a capoeira, outra dança-luta construída ao redor da esquiva, ambas forjadas por populações com longa história de subjugação, que precisaram aprender a se esquivar para seguir existindo. É uma forma de lidar com um agressor violento, incorporando de modo controlado o gesto destrutivo, restando o ataque neutralizado a seu favor. É nesse sentido que a esquiva age como modo de incorporação que se diferencia do outro, uma incorporação que reconfigura a relação.

Por este caminho o pesquisador desmonta uma ideia de desjaguarificação, segundo a qual os Guarani, guerreiros constantes no início da invasão, hoje teriam perdido suas garras e abdicado das guerras. Lucas demonstra como na verdade o que acontece é a predominância da arte do fazer errar. No lugar de investir no confronto direto contra a civilização que inventou a metralhadora e os cobertores carregados de varíola, os Guarani se especializaram na esquiva, o que se tornou a marca de sua resistência ao mundo dos juruá, termo que literalmente significa cara-peluda.

O percurso traçado pelo livro tenta entender os modos de existência e resistência que tornaram tal feito possível. Aprofundando em direção à cosmologia, temos que o ato de enganar, de fazer-se outro, é operação privilegiada em modos de vida de muitos povos originários. A captura de presas depende da capacidade do predador de enganar, de se fazer inofensivo. Eis o terreno da esquiva.

E então Lucas nos apresenta uma pérola na forma de Peru Rimã, o grande enganador, que, para alguns Guarani, seria irmão mais velho de Nhanderu, o grande criador. Avalia o antropólogo que apesar de ele praticamente inexistir na bibliografia sobre esse povo, com exceção de poucas e esparsas citações, “não encontrei um só Guarani adulto que o desconhecesse ou fosse indiferente à sua menção”.

É o deceptor, o trickster, aquele que confunde os caminhos e que separa o que o demiurgo, o criador, uniu. O deceptor é um arquétipo presente em diversas cosmologias e que, até o momento, pouco participara da produção em texto sobre os Guarani.

Estendemos este parágrafo sobre a deliciosa especialidade de Peru Rimã, sempre capaz de enganar os cara-peluda. Ele é particularmente eficiente em remover a posse de fazendeiros ou outros brancos ricos que se aproximam para desafiar o grande enganador. Seu combustível é a ambição das vítimas: quanto mais voraz for sua abordagem, mais facilmente Peru Rimã consegue transformar o ímpeto em situação que lhe beneficia, largando os ambiciosos pelados em algum desses meios de mundo. Além de fazendeiros, também é especialista em enganar reis, padres e outros brancos cheios de poder.

Sua permanência na terra é associada à presença dos não indígenas e, portanto, a uma época posterior à criação mítica do mundo guarani. Peru Rimã é uma divindade possivelmente enviada, ou adaptada, em resposta à ganância branca. É, portanto, uma esquiva, entidade sagrada que demonstra por meio de suas narrativas, por meio de seus mitos, uma forma de desarmar a voracidade que tantas vezes a civilização extrativista lhes dirige.

É assim que este livro amplia os caminhos trilhados por Pierre Clastres, antropólogo francês, que se pergunta em seu gigantesco A sociedade contra o Estado: de que riem os índios? Relata que o povo Chulupi, que habita o sul do chaco paraguaio, ri do jaguar e do xamã. Duas figuras imponentes, entidades com poder sobre a vida e a morte, é deles que se ri. Tal sociedade produz um humor que desmonta o medo, desmancha o poder, lhe nega ascendência sobre os comuns, lhe põe sentado ao redor da fogueira e diz: Você é como nós, ria, beba.

Não é necessário, portanto, destruir um adversário. A esquiva do xondaro apresenta um texto fluido, algo raro entre obras literárias que nascem da academia, demonstrando algumas formas por meio das quais o povo Guarani conjuga a dança em política e vice-versa. O livro propõe o exercício de abrir os sentidos a tal criatividade política e, desse modo, quem sabe, expandir as nossas próprias compreensões do que esse conceito desgastado pode ser.

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