‘Estamos em guerra contra a indiferença’: entrevista a Rafael Domingos de Oliveira
Por Beatriz Macruz
Quando Israel usou o ataque promovido pela resistência palestina em 7 de outubro de 2023 para acelerar a limpeza étnica que promove contra os palestinos há oito décadas, o historiador Rafael Domingos de Oliveira começou a usar suas redes sociais para denunciar o genocídio que todos passamos a testemunhar ao vivo na palma da mão. A indignação foi dando lugar à ação. E um dos resultados foi o livro Gaza no coração: história, resistência e solidariedade na Palestina, que organizou e publicou pela Elefante com a contribuição de 47 autores e autoras. São intelectuais, militantes e artistas que, assim como Rafael, resolveram entrar em guerra contra a indiferença diante de tão hediondo e irrefreável massacre.
Rafael Domingos Oliveira é historiador e educador. Bacharel e mestre em história pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde também faz doutorado. Especialista em estudos sobre escravidão e abolição nas Américas, foi coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil e pesquisador do Projeto Querino. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Afro-América (Nepafro) e coordenador do Núcleo de Acervo e Pesquisa do Theatro Municipal de São Paulo. Além de organizar Gaza no coração, editou Diários de Gaza, v. 1, A memória é uma casa indestrutível (Tabla, 2024) e escreveu Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade (Elefante, 2022).
Nesta entrevista, Rafael revela as motivações que o levaram a trabalhar diuturnamente durante meses para que Gaza no coração pudesse deixar o mundo das ideias e se materializar em um livro de intervenção, ou, em suas próprias palavras, “uma plataforma, um ponto de partida para muitas outras ações. Temos em mente a realização de cursos, seminários, oficinas, festivais, encontros e outras atividades que promovam espaços de reflexão e debate com as autoras e autores do livro, além de convidados”. Um livro que também é um ponto de partida para a ação, até que a Palestina seja livre, do rio ao mar — e ela será, assim como todos os povos do mundo.
O livro costura ensaios, relatos, poemas e um conto. Como você desenvolveu essa proposta de reunir textos de naturezas tão variadas?
A combinação de textos tão variados tem como objetivo contribuir para o debate público sobre a opressão vivida pelos palestinos ao longo de décadas, com ênfase no genocídio em curso em Gaza. Esse é um desafio significativo, já que esse debate (quando ocorre) frequentemente é distorcido pelos estigmas que desumanizam os palestinos, alimentados por preconceitos promovidos pela ideologia sionista. Ao explorar o tema através de diferentes gêneros — ensaios, relatos, poemas, artigos acadêmicos e textos exortativos —, a antologia oferece múltiplas formas de conexão com o público: alguns leitores podem se sentir mais atraídos pelas reflexões dos ensaios, enquanto outros preferem o lirismo da poesia ou a profundidade dos textos ficcionais. Há também aquelas pessoas que buscam análises mais aprofundadas para enfrentar a questão de maneira crítica e especializada. A diversidade dos textos reflete as várias formas de abordar esse tema tão urgente, e assegura que leitores de perfis diversos possam se engajar no debate de forma ética e responsável, independentemente do gênero textual com o qual mais se identifiquem.
E com relação à seleção de autores e temas para os textos? Como se deu?
Gaza no coração é um livro com múltiplas propostas. Uma das principais é afirmar que a solidariedade ao povo palestino possui uma longa tradição no Brasil, ou seja, não é uma novidade. Para muitas pessoas, esse pode parecer um tema “novo”, já que a opressão sofrida pelos palestinos raramente ocupa espaço no noticiário. No entanto, isso não reflete a realidade: a tragédia palestina tem décadas, é uma história de longa duração. Mesmo após outubro de 2023, quando o tema voltou a ter visibilidade nos meios de comunicação, a cobertura tem sido vergonhosa e, em certos aspectos, criminosa, especialmente ao promover a falsa ideia de um “estado de normalidade” anterior à ação do Hamas em 7 de outubro, como se tivesse sido um evento descontextualizado, sem história, movido apenas por um suposto ódio aos judeus e ao Estado israelense. Isso, além de ser uma inverdade, priva o público do direito de entender o que realmente ocorre no território palestino. É possível debater as estratégias da resistência palestina (embora eu acredite que são os palestinos que devem fazer isso, a partir do princípio da autodeterminação), mas não há como negar a violência da realidade colonial e do apartheid a que estão submetidos. Tudo isso tem o fito de retirar dos palestinos sua agência, tornando-os vidas matáveis e descartáveis.
A escolha das autoras e autores para o livro reflete o esforço de corrigir essa lacuna informacional e esse desvio ético/moral. Selecionamos especialistas no tema, pesquisadores dedicados há anos ao estudo do conflito, além de ativistas e militantes de movimentos sociais comprometidos com a emancipação palestina. Também contamos com intelectuais e figuras públicas de destaque no debate político contemporâneo, bem como escritores, artistas e poetas que, em suas linguagens, abordam o tema. Esse conjunto diverso e poderoso traz contribuições valiosas sobre a importância da solidariedade ao povo palestino e demonstra que este é um debate com lastro, além de ser incontornável.
Claro, muitas pessoas ficaram de fora; toda seleção tem suas limitações. No entanto, acredito que conseguimos formar um volume que expressa a seriedade e o compromisso com a causa palestina no Brasil. O livro conta ainda com contribuições internacionais de grande relevância, como Silvia Federici, Françoise Vergès, Benjamin Moser, Raúl Zibechi e Tithi Bhattacharya, além de três poetas de Gaza. Entre os autores e as autoras, há judeus antissionistas. Trata-se de uma obra que evidencia a força, a pluralidade e a importância de um pensamento comprometido com a liberdade, a justiça e a emancipação humana. Quem assina textos em Gaza no coração é uma referência em todas essas dimensões e aceitou o desafio de participar desse projeto com coragem, pois reconhece a justeza da causa. É gente que não se rende à censura e à perseguição promovidas pelo sionismo. E esse é um exemplo de coragem cada vez mais essencial de ser difundido e reiterado.
No lançamento em São Paulo, ouvimos muitos autores tecerem relações entre diversas lutas contra opressão aqui no Brasil e entre a resistência palestina. Você pode falar um pouco sobre isso também? Quais pontos de conexão você vê? Esses pontos, de alguma forma, nortearam a criação do livro?
Sim, esses pontos de conexão são cruciais e, sem dúvida, influenciaram a criação do livro. Há uma relação que deveria ser evidente entre a realidade vivida pelo povo palestino e a das populações negras, periféricas e indígenas no Brasil, por exemplo. Tanto lá quanto aqui, uma “política de inumanidade” parece reger a lógica do Estado e a maneira como ele administra a vida de certos grupos sociais. O filósofo camaronês Achille Mbembe chama isso de necropolítica. Não por acaso, há uma articulação histórica do chamado Sul Global com a causa palestina — e a Palestina é parte integrante desse Sul Global. Como já demonstraram Angela Davis e, mais recentemente, Antony Loewenstein, a Palestina funciona como um laboratório de tecnologias de encarceramento e extermínio, que são posteriormente exportadas para o resto do mundo. Os povos oprimidos ao redor do planeta são vítimas das mesmas armas que matam os palestinos. E se quisermos saber o que será do nosso futuro, basta olhar com atenção para Gaza neste momento.
Portanto, além dos paralelos históricos, mediados — que discutem o colonialismo e a opressão que moldam tantas nações do mundo moderno e marcam a história da Palestina —, existem paralelos imediatos, mais diretos e evidentes. Um exemplo disso é o genocídio da população negra no Brasil, perpetrado com armamentos e tecnologias israelenses. Não é coerente se opor ao racismo no Brasil sem também pautar o genocídio palestino. O mesmo vale para os povos indígenas no Brasil: basta observar a violência, expulsões, grilagem de terras e assassinatos nos territórios indígenas e compará-los com a situação dos assentamentos ilegais na Cisjordânia. Esses fenômenos se assemelham profundamente, pois ambos estão enraizados em práticas coloniais de expulsão, limpeza étnica, morte e violência.
Além disso, outros movimentos encontram paralelos com a luta palestina: o movimento LGBTQIA+, o movimento feminista e as lutas por terra e moradia compartilham uma história de solidariedade ao povo palestino, reconhecendo como o Estado de Israel instrumentaliza essas pautas para justificar suas atrocidades e como isso enseja que o mesmo seja feito aqui. Gaza no coração coloca todas essas conexões em perspectiva, abordando-as com cuidado e responsabilidade. Ao ler o livro, percebemos que a causa palestina vai além de uma questão localizada no Oriente Médio: ela diz respeito a todas as pessoas que enfrentam opressão e lutam pela verdadeira emancipação.
Também ouvimos sobre como o livro é um esforço de solidariedade, e lemos isso na bonita introdução que você escreveu. Você comentou no evento de lançamento que o livro terá desdobramentos em conversas, debates, seminários, outros tipos de ações. Pode falar um pouco mais destes desdobramentos? O que você acredita que esforços coletivos de solidariedade como este podem promover?
Eu não vejo Gaza no coração apenas como um livro, no sentido estrito. Para mim, ele é mais como uma plataforma, um ponto de partida para muitas outras ações. Temos em mente a realização de cursos, seminários, oficinas, festivais, encontros e outras atividades que promovam espaços de reflexão e debate com as autoras e autores do livro, além de convidados. Mas não um debate vazio, sobre uma “paz” abstrata, como temos visto por aí. Há muitas pessoas se empenhando em discutir o tema a partir de um viés que chamo de “doisladismo”, ou seja, criando uma falsa simetria entre a ação do colonizador e a resistência do colonizado. E essas pessoas o fazem porque sequer reconhecem que Israel é um Estado colonial-racial. São debates inócuos, embora muitas vezes pareçam bem-intencionados. São assim porque não enfrentam a realidade dos fatos — e, sem encarar a realidade, é difícil pensar em soluções verdadeiramente justas. Não há paz sem justiça e reparação. Essa é uma consciência que já conseguimos construir em relação a muitas pautas estruturantes do nosso país, como o racismo e a ditadura militar. Agora, se vamos realmente falar sobre a Palestina e o genocídio em Gaza, é preciso ter radicalidade — no sentido de ir à raiz dos problemas. Também é preciso ter coragem, pois sei que essa discussão mexe com sentimentos e afetos profundamente arraigados no mundo contemporâneo. Por isso acredito que Gaza no coração pode contribuir para enfrentar essa situação: é um arsenal crítico poderoso, construído coletivamente, a muitas mãos e com muitas vozes. Realmente acredito que podemos dar um salto civilizatório ao tratar a questão palestina com a responsabilidade ética que ela merece. Quero que este livro seja um combustível para isso, somando-se a tantas outras iniciativas nesse sentido.
Nesta semana vimos como Israel avança nos ataques contra o Líbano, utilizando a mesma retórica antiterrorismo, agora destinada ao Hezbollah. Pensando também que estamos completando um ano desde o início dessa onda de ataques a Gaza por Israel, você poderia comentar brevemente este momento atual?
Israel está testando o mundo. Um Estado forjado a partir de uma ideologia supremacista — e que nega qualquer possibilidade de abandonar essa ideologia — não pode oferecer nada além de seu ímpeto supremacista. Em seus discursos recentes, Netanyahu afirma que Israel defende os valores do Ocidente, como se Israel fosse testa-de-ferro do Ocidente no Oriente Médio. O que o primeiro-ministro pretende, a meu ver, é trazer os Estados Unidos para o conflito e, por isso, tenta a todo custo envolver o Irã. Assim, teríamos um cenário de guerra generalizada e permanente, o que é bom para Netanyahu, pois assim também consegue se manter no poder. Entretanto, essa dinâmica de guerra contínua dependerá do comportamento de Washington. Até lá, Israel continuará a expandir o genocídio em Gaza, enquanto repete essas estratégias em outros territórios, destruindo infraestruturas e assassinando civis, como está fazendo no Líbano. Quando digo que isso é um teste, refiro-me ao fato de que, a cada dia, Israel dobra sua aposta. Essa situação atende, de alguma forma, aos interesses das potências ocidentais, apesar de alguns “efeitos colaterais indesejados”. A desestabilização do Oriente Médio serve a essas potências, ao mesmo tempo que proporciona a Israel a oportunidade de continuar sua busca por expansão e dominação territorial.
É claro que muitos outros fatores estão em jogo nessa conjuntura, mas não tenho dúvida de que Israel está jogando suas cartas, tentando descobrir até onde o mundo permitirá que avance. No entanto, também há reveses a serem considerados. A economia israelense já apresenta sinais de profunda crise, mesmo com os aportes bilionários dos Estados Unidos e da Europa. O sionismo nunca enfrentou tantas críticas; Israel se tornou um pária internacional, e o discurso de Netanyahu na ONU deixou isso claro, evidenciado pela saída das delegações que se recusaram a ouvir suas palavras. Estamos diante de um momento crucial da história contemporânea, em que cada passo pode ser decisivo.
Agora, pensando de novo nas possibilidades de resistência e em esforços de solidariedade coletivos e internacionais, enquanto estamos próximos de completar um ano deste genocídio hipervisual: há algum comentário que você gostaria de fazer para marcar essa triste efeméride?
Há um ano, assistimos a cenas e imagens indescritíveis. Nunca pensei que testemunharia algo dessa natureza. Como um jovem historiador, conheço bem a capacidade humana de produzir e reproduzir a barbárie. No entanto, mesmo o conhecimento histórico e o estudo de tantas tragédias do passado não me prepararam para o que estamos presenciando em Gaza. É um sentimento de impotência, revolta e indignação sem fim. Nos últimos doze meses, minha vida parece ter ficado em suspenso, e sei que o mesmo acontece com milhões de pessoas ao redor do mundo, que têm uma conexão com o povo palestino e são capazes de reconhecer a humanidade vilipendiada diariamente em Gaza.
Se ainda existe algo que podemos comentar neste momento é a inacreditável capacidade dos palestinos de manter a esperança. Há algumas semanas, em um congresso da comunidade palestina no Brasil, um senhor palestino, refugiado no Brasil, me disse: “Nós, palestinos, sofremos de uma doença incurável: a esperança”. Essa frase me emocionou profundamente. É surpreendente como um povo que é vítima de tamanha violência, que está sendo exterminado diante dos olhos do mundo (que parece lhe virar as costas), consegue se manter de pé e confiante. Isso é a sumud palestina, uma condição de existência fundamentada na perseverança, resiliência, resistência e poesia.
E ainda há a generosidade. Apesar das mortes, da expulsão, do deslocamento, da fome e da dor interminável, as imagens de generosidade que chegam de Gaza são simplesmente extraordinárias. Recentemente, vi um garoto, em Gaza, que havia sobrevivido a bombardeios e estava em uma tenda no campo de refugiados, comemorando seu aniversário de 11 anos com um pequeno bolo que a mãe lhe havia feito. Pensei na imensa dificuldade que essa mãe enfrentou para encontrar os ingredientes. Pensei em quantos parentes o menino havia perdido e em quantas cenas de horror presenciou. Mas, no vídeo, ele sorria, e seus olhos brilhavam de felicidade ao exibir o bolo. Ele dizia, em alto e bom som: “Vocês estão convidados a provar o delicioso bolo que minha mãe fez! Venham comer um pedaço do meu bolo!”. Percebem?
É isso que os palestinos oferecem ao mundo: vida, generosidade e beleza. O martírio de cada palestina e cada palestino torna o mundo um lugar pior para se viver. Um lugar pior para todos nós. Por isso, acredito que devemos mobilizar todos os esforços para preservar a vida palestina, mas também devemos nos salvar a nós mesmos. Precisamos resgatar nossa humanidade, ao menos aquilo que ainda resta dela. Estamos em guerra contra a indiferença, e parece que estamos perdendo. Até quando?