Por Matheus Espíndola
UFMG Notícias
As plataformas digitais de transporte, das quais Uber, Cabify e 99 são os representantes mais conhecidos no Brasil, têm sido usadas como alternativas para amenizar a escassez de empregos e, supostamente, os problemas de trânsito nas grandes cidades. Mas a mesma fachada que ostenta um instrumento inovador, provedor de autonomia e geração de renda para os motoristas, esconde um tipo de precarização do trabalho que há anos parecia ter sido superada.
Essa é uma das conclusões da investigação empreendida desde 2016 pelo professor Fábio Tozi, do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências (IGC) da UFMG. “O cumprimento de jornadas excessivas de trabalho, a ausência de adicional noturno e a demasiada normatização por algoritmos estão entre as relações indesejáveis trazidas à tona pelo fenômeno dos aplicativos de transporte”, afirma o pesquisador.
Os resultados da pesquisa estão no artigo “As novas tecnologias da informação como suporte à ação territorial das empresas de transporte por aplicativo no Brasil”, que Fábio Tozi apresentou durante o 15º Colóquio Internacional de Geocrítica – Las ciencias sociales y la edificación de una sociedad post-capitalista, realizado em Barcelona no último mês de maio.
Falsa autonomia
Entre as estratégias usadas para atrair a adesão de motoristas para esses aplicativos está a promessa de se constituir em oportunidade de empreender e decidir quando trabalhar. Nesse contexto, inclui-se também a simbologia evocada ao se convencionar a alcunha de “motorista-parceiro” para o condutor cadastrado. No entanto, para Fábio Tozi, não existe autonomia nessa relação.
“O motorista, por exemplo, é penalizado se recusar certo número de corridas. Ele fica refém da empresa, que determina seu local de atuação”, afirma. Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o professor menciona desvantagens vivenciadas pelo condutor quando é encaminhado para o aeroporto de Confins, onde ele costuma “esperar durante horas, ao relento, sob o risco de ser multado por parar em local proibido. E perde dinheiro se decide voltar sem passageiro para áreas de maior demanda”.
O argumento de que os aplicativos foram criados para atenuar problemas de mobilidade urbana também é questionado por Fábio Tozi. “A princípio, eles se instalaram nas cidades brasileiras onde o transporte coletivo é relativamente eficiente”, alega. O caso de Belo Horizonte é, para o professor, bastante emblemático. Segundo ele, conforme a variação da tarifa dinâmica imposta pelo aplicativo, os motoristas são atraídos para a zona contida no perímetro da Avenida do Contorno, onde o valor da corrida chega a ser 80% mais caro. “Nesse local, há abundância de linhas de ônibus. Se os aplicativos desestimulam as pessoas a usar o ônibus, trata-se não mais de uma questão privada, mas da produção de um transtorno para a totalidade do tecido urbano”, pondera.
Entre os mecanismos que submetem os motoristas a um constante estado de pressão, o autor cita o monitoramento do estilo da direção pelo aplicativo, que contabiliza os índices de frenagem e aceleração do automóvel, e a avaliação individual dos usuários. “O condutor com nota média inferior a 4,7 (ou 94%) pode perder, por uma semana, o direito de atuar”, revela.
‘Vampirização’
A expansão dos aplicativos de transporte no Brasil acompanhou o aumento da taxa de desemprego, que hoje chega a 14%. Para Fábio Tozi, esse aspecto favoreceu a estratégia das empresas de potencializar a filiação dos motoristas. “Com enorme necessidade de gerar renda, as pessoas aceitam a precarização do trabalho”, observa.
Na avaliação do professor, esse tipo de relação de emprego ajuda os cidadãos a se manterem financeiramente, mas apenas por um prazo curto. “É fato que o dinheiro tem circulado, porém há uma série de custos de longo prazo, com os quais as empresas não arcam, como os decorrentes do desgaste dos automóveis. Se o motorista adoece e fica sem rodar, também não há amparo algum”, salienta.
Fábio Tozi cita ainda a necessidade de aquisição de um aparelho celular capaz de processar vários aplicativos simultaneamente e de um plano de internet que possibilite estar conectado durante todo o dia, fatores que geram despesas – e apenas o motorista arca com elas. “Além do mais, as tarifas praticadas pelo aplicativo não acompanham o aumento do preço dos combustíveis. Quem custeia tudo é o próprio trabalhador”, reforça.
Para o autor, a ascensão desse tipo de serviço implica “vampirização” do dinheiro que circularia localmente. “As empresas estão se beneficiando de um contexto baseado na pobreza e no desemprego. A adesão dos motoristas substitui a velha estratégia do ‘bico’, usada pelas camadas pobres para sobreviver”, compara.
Alternativas para reparar as contradições indicadas por Fábio Tozi emergiram recentemente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nessas capitais, as prefeituras lançaram seus próprios aplicativos de transporte. Por não visarem ao lucro, os mecanismos isentam os motoristas da taxa de administração, que nos dispositivos convencionais chega a 25%. “As tecnologias, em geral, não devem ser tachadas de ‘boas’ ou ‘ruins’. A forma como são usadas para melhorar a sociedade é o que deve ser levado em conta”, conclui.