Gaza e os ‘apertadores de botões’

Por Günther Anders

 

A seguir publicamos um trecho de Hiroshima está em toda parte, de Günther Anders, que está em pré-venda no site da Elefante. Mais especificamente, trata-se de um texto intitulado “Pensamentos noturnos”, parte de O homem sobre a ponte: diário de Hiroshima e Nagasaki (1958), primeiro livro de sua obra clássica contra o apocalipse nuclear. Algumas horas depois de Israel ter rompido o cessar-fogo assinado no começo de 2025 com a resistência palestina, bombardeando a Faixa de Gaza e matando mais de quatrocentas pessoas — a maioria mulheres e crianças, como sempre –, achamos oportuno adiantar as linhas que seguem. Envergonhados pela humanidade, assim como Anders, continuamos com Gaza no coração.

 

À semelhança dos termos “telefone” e “teletipo”, deveríamos cunhar a expressão “teleassassino” (e “teleassassinato”). É claro que os diversos tipos de “teleassassinato” descartam as virtudes do cavalheirismo. E aqui, em Nagasaki, o espírito do mundo acabou de selar, de uma vez por todas, essa eliminação. O assassinato à distância eliminou não apenas o cavalheirismo mas (apesar de todo o caráter paradoxal) também a guerra em si. Quem ainda chama de “guerra” ações como as que aconteceram aqui tem preguiça de pensar ou é um farsante malvado. Certamente essa “abolição da guerra” significa que estamos dando lugar não à paz, e sim a um tipo de ação incomparavelmente mais terrível que a guerra: a “eliminação”. E “eliminação” hoje não significa apenas (o que já bastaria) a aniquilação bélica do inimigo. Essa já aconteceu no passado e, na Antiguidade, compunha a regra da guerra. Mas mesmo essa ainda era humana, se comparada com o que acontece atualmente — a ação basicamente não conta mais com nenhum tipo de resistência e se desenrola de tal maneira que a chance de resistência é anulada já antes da ação de extermínio. O inimigo é derrotado não à medida que se combate, não por meio da batalha, mas ainda como combatente, antes do combate e antes da derrota em si; a possibilidade de batalha é anulada. Em outras palavras: como “eliminação”, a guerra se transforma de um processo estratégico em um processo puramente técnico, de modo que também ela é eliminada enquanto guerra. A pessoa que combate insetos, que extermina mosquitos, sem precisar contar com sua resistência, não está em guerra; executa uma tarefa técnica. O mesmo valeu para Hitler, que, quando “despejou” os internos dos campos nas instalações de morte, não estava “fazendo guerra” contra os judeus, os ciganos ou os seres humanos inferiores, mas os estava anulando. E esse princípio encontrou sua continuação. Aqui também não houve resistência. Nagasaki e as instalações de morte pertencem à mesma categoria de crimes.

Se ações contra grupos que não podem se defender não são mais “guerra”, então, evidentemente, esses grupos também não são “opositores” ou “inimigos” no sentido usual. Essa categoria também é suprimida e o conceito deve ser descartado. Mas não só o conceito “inimigo” é antiquado como também tudo aquilo que se relaciona psicologicamente com “inimizade”. Ao apertar um botão a milhares de quilômetros de distância dos seus alvos, alguém que consegue eliminar esses alvos não sentirá raiva, nem a raiva que cresce com a luta; ou seja, permanecerá sem raiva — apertando o botão, não se rangem os dentes. É evidente. Nada seria mais ingênuo, nada seria mais enganoso, nada atrapalharia mais nossos esforços do que a crença de que dois fronts que hoje existem sejam fronts de ódio e de falta de ódio. Não é tão simples assim. Ambos os fronts são fronts da falta de ódio. A guerra futura de “teleassassinatos” será a guerra mais desprovida de ódio que já aconteceu na história.

Mas essa afirmação, por mais encorajadora que seja, não deve nos permitir criar esperanças — ela só parece encorajadora para aqueles que pensam superficialmente. A simples expressão negativa “mais desprovida de ódio” não garante nada. Ao contrário: essa falta de ódio se tornará a falta de ódio mais desumana que já existiu; e falta de ódio e falta de escrúpulos acabarão se tornando uma coisa só. Quando aquele que extermina não enxerga mais quem tem de exterminar e não consegue mais imaginar essa gente, suas últimas inibições desaparecem. Quanto mais terrível a ação, mais fácil se torna. É comparativamente mais fácil se decidir a apertar o botão com o qual se matam centenas de milhares “bem além da Turquia” do que enfiar uma faca entre as costelas do vizinho. O senhor também não acha, sr. Truman? O senhor certamente nunca arrancou uma perninha de uma mosca. E confio cegamente que o senhor também nunca enfiou uma faca entre as costelas de nenhum vizinho e que também nunca enfiará. Para os outros atos, porém, o senhor reuniu coragem. Não crie ilusões. Não criemos ilusões.

Os motivos para a falta de ódio de ambos os lados são muito diferentes entre si, até opostos. Enquanto nossa falta de ódio se baseia no que há de mais simples, mas positivo, ou seja, que amamos os seres humanos e odiamos o ódio e não suportamos a ideia da não existência da humanidade, a falta de ódio dos tecnocratas é um puro “fenômeno de falta”, um efeito de impedimento: visto que eles, sem agir verdadeiramente, obedecem cegamente ao curso de seus inventos e às exigências de seus aparelhos e só apertam botões; e visto que é impossível enxergar ou imaginar as centenas de milhares que são assassinadas por esse ato de apertar um botão, qualquer possível sentimento lhes é sufocado — não apenas seu amor mas também seu ódio. Mesmo essa sua falta de ódio é um sinal de desumanização.

Apesar disso, não deveríamos tratar como quantité négligeable o fato do não ódio ser o atual denominador comum que liga todos os seres humanos (sabendo eles disso ou não). A “obsolescência da inimizade” é a única coisa que nos liga hoje em dia, apesar da terrível intensidade dos atuais confrontos ideológicos. É muito provável que os antagonismos (em larga medida produzidos artificialmente) sejam tão ousadamente superestimados porque o status das nossas ações distantes e técnicas não dá mais qualquer chance à concretização do ódio e da inimizade. Já que não podemos mais ter certeza, como antes, de que a ação de luta em si vai gerar ou amplificar ódio e inimizade, acreditamos ter de gerar esses sentimentos de antemão, por meio da imprensa, do rádio etc. — uma crença errônea e antiquada, pois a guerra no futuro não necessitará mais de odiadores, apenas de apertadores de botões que sejam de confiança. Tanto faz: o ponto que temos de focar hoje é a antiguidade da inimizade. Quer dizer: aqueles que não têm ódio por motivos falsos devem chegar a uma falta de ódio positiva; a uma falta de ódio que não se chame “apertar o botão”, mas amor.

 

Foto: Jehad Alshrafi/AP

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