Gaza, entre a razão e o coração

por Salem Nasser
Publicado em Pensata
Resenha de Gaza no coração, org. por Rafael Domingos Oliveira

Aprende-se muito lendo Gaza no coração: história, resistência e solidariedade na Palestina. Resenhar a obra logo após a leitura é tarefa difícil: são pouco mais de 400 páginas e algumas horas de ininterrupto e exaustivo contato com a lembrança da tragédia, da injustiça, da impotência, do silêncio, da covardia, da hipocrisia, do sangue e das lágrimas.

Uma resenha, suponho, deve refletir a minha relação com a obra. O leitor deve saber, então, que a minha reação automática à mera menção de Gaza é sentir furiosamente o caráter torto deste mundo. Tudo que não realize a urgência de interromper a fome, o morticínio, o sofrimento indizível das crianças, das mães e dos pais, estará aquém do esperado. Isso inclui o livro Gaza no coração e esta sua resenha.

Recomendo vivamente a leitura, no entanto, entre muitas outras razões, porque, como disse, aprende-se muito. Aprendi, primeiro, conhecendo e entrando em contato, por meio dos textos incluídos no livro, com muitos dos 47 autores, pensadores, ativistas, jornalistas, professores e escritores que contribuíram com a obra. Há, sim, uma nota de esperança nesta descoberta de vozes, e almas, que têm algo em comum: a coragem de enxergar através da “névoa retórica” (Moser) e sentir, e falar, e agir na contramão de um mundo absurdo. Há também um quê de ar fresco no contato com representantes de tantas causas justas que expressam sua solidariedade com os palestinos e a comunalidade entre as lutas.

O dever, ou a missão, de solidariedade com os palestinos e com sua causa é lembrado em vários dos textos de Gaza no coração e parece ser um ponto de partida e um objeto central do projeto como um todo. Mais de uma vez, mais de um dos autores lembra que a solidariedade deve ser ativa, que não pode ser “falsa caridade” (Charbel).

É verdade que grandes, quase insuperáveis, forças se colocam como obstáculos ao exercício da solidariedade devida. Não é surpresa, por isso, que já num dos primeiros textos do livro apareça a noção de “impotência” que pode acometer tantos de nós (Vergès). Essa impotência se estende para o universo do discurso e da narrativa, em que enormes “obstáculos retóricos” (Moser) nos confrontam.

Há muito tempo, ocorreu-me uma imagem que me toma de assalto repetida e frequentemente: a dos palestinos falando contra o vento, um vento que empurrava as palavras para trás de quem fala, fazendo-as inaudíveis para todos os demais. Os muitos muros que blindam Israel incluem as barreiras que fazem o possível para tornar invisíveis e desprovidos de voz os palestinos. Os muitos textos de Gaza no coração são uma tentativa de desestabilizar e, um dia, derrubar esses muros. E isto é bem-vindo.

A verdade de que a Questão Palestina é consequência e manifestação do exercício imperial do poder e da permanência da lógica de exploração e de diferenciação racial que marca o colonialismo Ocidental é referida por mais de um autor. É frequente também a referência ao capitalismo como sistema que permite e demanda a exclusão e a exploração do “outro”.

Esse conjunto de chaves explicativas — imperialismo, colonialismo, capitalismo e racismo — permite uma melhor compreensão do drama palestino, jogando luz sobre suas condicionantes fundamentais, sobre as bases de sua sustentação. Esse pano de fundo é bem complementado pelos textos que recuperam a história própria da Questão Palestina, especialmente da Nakba, uma história muitas vezes invisibilizada e enterrada sob inúmeros mitos sobre Israel e seu nascimento.

O conjunto de chaves a que me referi também permite a aproximação entre a tragédia palestina e as tragédias de outros povos e grupos humanos.

De fato, vários dos textos de Gaza no coração apontam para a igual natureza das lutas pela autodeterminação dos palestinos, pelos direitos dos povos originários, contra o racismo e a discriminação de gênero e, de modo geral, pela “emancipação humana” e não só “política”. Vejo nisso um esforço importante no sentido de, pela referência ao que nos é mais conhecido, possamos tornar mais visível a luta palestina que encontra entraves especialmente difíceis de superar.

Há, igualmente, por certo, o esforço de fazer ver e denunciar o genocídio em curso pela remissão à memória de outros genocídios, passados ou presentes.

Há entre os textos, no entanto, aqueles que, para além da semelhança e da comunalidade, tentam chamar nossa atenção para o que há de específico, de extraordinário, de inexplicável no caso palestino e, especificamente, em relação a Gaza nos dois últimos anos.

Coleto ao menos os seguintes signos do que eleva a atualidade de Gaza a um lugar especial. É claro que o fato de se tratar de um genocídio em andamento já é algo que carrega em si o senso de urgência, é algo que remete ao “desmesurado”, ao que é indizível, incompreensível. Mas há mais: o que faz dele um genocídio algo mais desesperado é o fato de que vem acompanhado de “dessensibilização”, de “des-historização” e de um discurso “adestrado”, cego, obsceno, vindo de intelectuais consagrados, para não dizer nada das elites políticas e econômicas e da grande imprensa. E para consumar o molho especial com que nos é servido o genocídio de Gaza, é preciso notar o seu funcionamento no plano da “microfísica”, notar a máquina do “colonialismo do detalhe”, notar o profissionalismo do genocídio que opera “gradualmente”, segundo uma “política” precisa.

De fato, o silêncio e a imobilidade de que somos capazes, enquanto humanidade, parecem nos dizer mais sobre o absurdo do que a própria ocorrência do genocídio e do que precedeu o genocídio, a limpeza étnica, o apartheid, a colonização, a ocupação. Pessoalmente, estou convencido de que essa excepcionalidade do caso palestino, dada pela (falta de) reação do Ocidente, está relacionada à identidade do criminoso.

Quero com isso dizer, primeiro, que Israel representa uma parte do Ocidente que continua autorizado a colonizar, explorar, expulsar e matar o não europeu, ainda visto como inferior, a despeito de todos os discursos de igualdade e direitos universais.

Quero, em seguida, dizer que Israel, enquanto Estado pensado, em parte, como compensação pelo genocídio dos judeus da Europa, um Estado cujos interesses passam a determinar as ações das elites políticas e econômicas do Ocidente, por força de um lobby de poder sem precedentes, recebe autorizações extraordinárias para o cometimento dos mais graves crimes, em nome de um pretenso direito à legítima defesa.

E é aqui que faço uma primeira crítica ao conjunto da obra da coletânea que é Gaza no coração. Muitos dos textos parecem não conseguir escapar da narrativa que nos diz serem os palestinos “as vítimas das vítimas” e que nota as razões que levam os que um dia foram vítimas a se tornarem opressores. Por mais que haja verdade nisso, questiono se muitos de nós não sentem a necessidade, inconsciente, de lembrar a tragédia que vitimou os judeus da Europa para se verem autorizados a denunciar aquela que vitima os palestinos.

Parece ser preciso, em alguma medida, pagar o pedágio de, primeiro, lembrar que os opressores de hoje foram ontem vítimas, e mais, que foram as vítimas exemplares, no sentido de que a tragédia que se abateu sobre elas deve ser tomada como padrão contra o qual todas as tragédias devem ser avaliadas. Isso, combinado com a explicação sobre como a vítima de ontem tenderia, naturalmente, a se tornar opressor, deixa a impressão de que, de algum modo, talvez haja de fato uma explicação para o que acontece na Palestina.

Alguns dos autores parecem terem sentido também a necessidade de pagar um outro pedágio que se impõe a quem tenta discutir a Palestina: o de criticar o Hamas ou, pelo menos, as suas ações do dia 7 de outubro de 2023. Também isso resulta, diante do cenário de obstáculos retóricos em que vivemos, na diluição da injustiça real que se quer denunciar.

….

O título, Gaza no coração, nos é dito, remete à inspiração tirada do livro Espanha no coração, que reúne poemas de Pablo Neruda reagindo à Guerra Civil espanhola. A escolha é muito apropriada e convida a um sentir com e por Gaza.

No entanto, ainda mantendo a recomendação de ler a obra e com ela aprender, quero arriscar dizer que, talvez, tenha faltado um pouco mais de Gaza e algo mais de coração.

O conjunto dos textos nos diz muito sobre a Questão Palestina de modo geral, sobre sua história, sobre seus dramas, sobre suas condicionantes, sobre as comunalidades que a aproximam de outras causas e de outras tragédias. Tudo isso é fundamentalmente necessário e útil. Contudo, enquanto flui o discurso racional, de explicação e de denúncia, a urgência de Gaza parece emergir apenas timidamente e pouco.

Mesmo os testemunhos que contam do contato pessoal, direto, com a Palestina, dos encontros que nos aquecem o coração, fazendo com que nossa fantasia viaje até o sorriso da criança palestina, até o sabor do chá e das comidas, até a generosidade dos que têm pouco… em geral, falam-nos da Cisjordânia. Até mesmo aqui, Gaza parece não conseguir romper o cerco a que está submetida há tanto e de modo tão definitivo.

Li sentindo a urgência de ver Gaza e sua tragédia ocupando o centro da cena, o ponto focal, sendo tudo o que interessa agora e já.

E quando digo que senti falta de um pouco mais de coração, quero com isso transmitir o sentimento de que o fluxo de discursos, como disse, racionais, de explicação e de denúncia, falha em dizer aquilo que é indizível e em nos mostrar que estamos de fato diante do indizível.

O conjunto fala mais à razão que ao coração. Como dito, isso é necessário e útil; o livro deve ser lido, e suas lições devem ser apreendidas. No entanto, não consigo deixar de pensar que são necessárias outras linguagens, outros códigos, para quebrarmos o encanto que permite a continuidade do absurdo, que permite o silêncio, que permite a inação.

Eu tinha fome, ainda que não se rompesse o encanto, de poder repetir, com explosão e fúria, sobre Gaza, a potência com que Neruda falava da Espanha:

Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra
devorando seres,
y desde entonces fuego pólvora desde entonces,
y desde entonces sangre.

Tinha fome de dizer às mães dos combatentes de Gaza, como dizia Neruda às mães da Espanha, sobre seus filhos mortos em combate:

¡Madres! ¡Ellos están de pie en el trigo
altos como el profundo mediodía
dominando las grandes llanuras!
Son una campanada de voz negra
que a través de los cuerpos de acero asesinado
repica la victoria.

E de convidar essas mães, como ele fazia:

Dejad
vuestros mantos de luto, juntad todas
vuestras lágrimas hasta hacerlas metales:
¡que allí golpeamos de día y de noche,
allí pateamos de día y de noche,
allí escupimos de día y de noche
hasta que caigan las puertas del odio!

Tinha fome, sobretudo, de poder gritar:

Venid a ver la sangre por las calles,
venid a ver
la sangre por las calles,
venid a ver la sangre
por las calles!

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