Gaza no coração, reencontro com a humanidade

 

Por Rafael Domingos Oliveira
Introdução de Gaza no coração

 

 

Fragmentos de três dias em Gaza:

 

(i) Janelas tremem violentamente, reverberando os mísseis dos caças que explodem no chão, lançando estilhaços e detritos por todos os lados. Bebês esperneiam, cachorros latem e o pandemônio se sucede. As ruas estão sem tráfego. Tudo o que se move torna-se alvo. Acima, os caças israelenses guincham cortando o ar, acompanhados pelo habitual zumbido dos drones que pairam sobre as nossas cabeças. […] O Ministério da Saúde de Gaza anunciou que os hospitais estão com falta de remédios e que 25% dos suprimentos médicos estão em falta. O porta-voz do ministério, Ashraf Al-Qidwa, implorou à comunidade internacional para que reaja frente às necessidades da população.

(ii) Em declaração oficial, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, negou as acusações de que Israel está alvejando civis palestinos. “Israel tem como alvo os terroristas do Hamas, não civis inocentes. Ao contrário, o Hamas alveja civis israe-lenses, e se esconde atrás de civis palestinos. O Hamas, portanto, carrega toda a responsabilidade por qualquer mal que os civis, tanto israelenses como palestinos, possam vir a sofrer.”

(iii) Com lágrimas nos olhos, o âncora do canal televisivo Al-Aqsa anunciou a morte do jornalista palestino Hamed Shehab no início da noite de quarta-feira, atingido por um ataque aéreo israelense enquanto dirigia para casa na Rua Omar Al-Mukhtar. Shehab, 27 anos, estava trabalhando para a emissora local Media 24. Dirigia um carro que tinha as letras “tv” em adesivos vermelhos grandes no teto quando foi atingido por um míssil israelense.

 

Ao ler esses relatos, seria natural que qualquer pessoa rapidamente associasse os eventos narrados a alguns dos episódios que se seguiram ao dia 7 de outubro de 2023. São descrições com um grau de detalhamento incomum aos canais da imprensa hegemônica, é verdade; no entanto, quem lê notícias internacionais certamente esbarrou em alguma do tipo. Os fatos acima, porém, foram escritos há dez anos — respectivamente, nos dias 9, 10 e 11 de julho de 2014 — pelo jornalista palestino Mohammed Omer, testemunha ocular daquela que ficou conhecida como operação Margem Protetora.[1] Após quase dois meses de ataques mortais, mais de duas mil pessoas foram assassinadas em Gaza pelas forças israelenses — 536 delas, crianças. Dias antes do início da ofensiva, em 2 de julho, o jovem palestino Muhammad Abu Khdair, de dezesseis anos, havia sido sequestrado, torturado e queimado vivo por colonos judeus. Quando foi capturado, Khdair estava à espera de amigos com os quais comeria antes do jejum diurno do Ramadã; depois, iriam para a mesquita. Um dia antes, o jovem tinha decorado as ruas de Shuafat, seu bairro em Al-Quds (Jerusalém), com lanternas típicas do mês sagrado dos muçulmanos. Seu corpo foi encontrado dias depois nas florestas de Dair Yassin.

Os relatos de Omer sobre os eventos de 2014 também caberiam perfeitamente nas descrições da ofensiva israelense em Gaza ocorrida entre 27 de dezembro de 2008 e 18 de janeiro de 2009, conhecida no mundo árabe como Massacre de Gaza e referida por Israel como operação Chumbo Fundido. Mais de 1,5 mil palestinos foram assassinados na ocasião, e outros cinco mil ficaram feridos. As descrições do jornalista palestino ainda seriam plausíveis se se referissem à ofensiva israelense de maio de 2021, batizada pelo Estado judeu como operação Guardião das Muralhas, que vitimou mais de trezentos palestinos e provocou o deslocamento forçado de 72 mil pessoas.

Mesmo nos intervalos entre os sucessivos morticínios perpetrados por Israel, a vida em Gaza não é fácil. O Movimento de Resistência Islâmica — mais conhecido pelo seu acrônimo, Hamas — venceu as eleições parlamentares na Palestina em 2006 e expulsou totalmente o Movimento de Libertação Nacional da Palestina (Fatah) em junho de 2007. Desde então, Israel e Egito impuseram um bloqueio total ao território, o que significa o controle de tudo o que entra e sai por terra, ar e mar. Em março de 2008, o relatório de uma coalizão de organizações de direitos humanos que contou com a participação de Anistia Internacional, Care International, Cafod, Christian Aid, Médecins du Monde, Oxfam, Save the Children e Trócaire advertiu que o bloqueio a Gaza constituía uma punição coletiva à população civil, e que a situação humanitária na estreita faixa territorial era a pior desde o início da ocupação israelense, em 1967, considerada ilegal pela Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Gaza possui uma das maiores densidades demográficas do mundo. O bloqueio impôs aos cerca de dois milhões de habitantes da região uma crise permanente, ampliada a cada onda de bombardeios intensivos de Israel — que ocorrem em intervalos de três a cinco anos. Dados oficiais revelam que mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza e que pelo menos 45% da força de trabalho está desempregada. Muitas das pessoas que moram em Gaza são refugiadas de ações militares anteriores promovidas por Israel. Há escassez crônica de água, energia, alimentos, combustíveis e medicamentos.

O bloqueio israelense é sustentado pelos Estados Unidos e pela União Europeia, que justificam seu apoio pelo fato de o Hamas não reconhecer o direito de existência do Estado de Israel. Como resultado, a maioria dos gazenses sobrevive com menos de dois dólares por dia. Em 1998, cerca de 21,6% da população amargava a pobreza absoluta, percentual que subiu para aproximadamente 35% em 2006, conforme dados do Banco Mundial. Sem assistência financeira e humanitária, em 2007 o índice de pobreza absoluta alcançou 67%. A situação se agrava a cada ano, e agora chegou a níveis extremos.

Segundo o relatório “Gender Alert: The Gendered Impact of the Crisis in Gaza” [Alerta de gênero: o impacto de gênero na crise em Gaza], divulgado em janeiro de 2024 pela onu Mulheres com informações sobre a atual ofensiva israelense, duas mães são mortas em Gaza a cada hora; 85% da população foi deslocada, incluindo mais de um milhão de mulheres e meninas; mais de dez mil crianças perderam a mãe. Segundo dados da Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para os Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (unrwa, na sigla em inglês), 63 mulheres são assassinadas por dia em Gaza. Mulheres e crianças são alvos preferenciais de Israel, que, como de costume, acusa o Hamas de utilizá-las como “escudo humano”.

A tragédia em Gaza, porém, não começa com o bloqueio de 2007; está profundamente conectada com a catástrofe palestina de 1948, a Nakba.

Abder Raouf Ibrahim Yusuf Misleh era uma criança quando seu povoado foi invadido por forças judaicas: primeiro, pelo Irgun Zvai Leumi; logo depois, pela Brigada Alexandroni, criada pela Haganá. Abder Raouf era uma das mais de duas mil pessoas, distribuídas em 434 casas, que habitavam a aldeia de Qaqun, seis quilômetros a noroeste do distrito de Tulkarm, no território da Palestina histórica. Em algum dia entre março e junho de 1948, Abder viveu um verdadeiro pesadelo:

 

Lembro exatamente de quando entraram na minha aldeia. Eu tinha mais ou menos doze anos, a minha aldeia tinha uma mesquita, tinha uma praça só. […] Naquele praça, sempre juntava muita gente no fim do dia, pra conversar, pra trocar ideia, toda aquele coisa de aldeão. Aquele dia, mais ou menos era cinco, seis horas da tarde, os judeus bombardearam aquele praça e mataram pessoas. Trinta e oito pessoas mortos na praça! Nós estávamos jantando, a comida ficou no prato.[2]

 

A Haganá foi uma organização paramilitar judaica que operou no território palestino entre 1920 e 1948, quando se transformou na célula central das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês). O Irgun, também uma organização paramilitar sionista, surgiu como uma dissidência radical da Haganá. Essa organização foi considerada de natureza terrorista e de inspiração nazifascista, conforme denunciaram intelectuais judeus — entre eles, Albert Einstein e Hannah Arendt — em uma carta aberta publicada no New York Times em 4 de dezembro de 1948. Um dos líderes do Irgun, Menachem Begin, tornou-se, em 1977, o sexto primeiro-ministro de Israel. Além disso, o grupo transformou-se, ainda em 1948, no partido de direita Herut, que em 1973 liderou a coalizão responsável pela criação do Likud, partido atualmente presidido por Benjamin Netanyahu.

 

Eu vi mulheres que a bomba explodiu, eu vi gente com barriga tudo aberta. Eu pessoalmente vi um amigo meu, a gente estudava junto. Eu vi, com minha idade. Eu passei a mão no rosto dele, na testa dele, pra reconhecer ele, tinha sangue pra tudo lado, a cabeça dele cortada, o rosto todo branco e eu passei a mão na testa dele pra reconhecer ele, eu nunca esqueço essa cena.[3]

 

A cena, rememorada por Abder Raouf em entrevista à pesquisadora Soraya Misleh, sua filha, é inacreditavelmente contemporânea: as imagens e vídeos de crianças palestinas assassinadas, decapitadas, amputadas ou em estado de choque após perderem os pais e a família em bombardeios israelenses em Gaza circulam o mundo em tempo real. Os relatos de Mohammed Omer e Abder Raouf, assim como as imagens de Gaza pós-outubro de 2023 que nos chegam graças ao corajoso trabalho de jornalistas e fotógrafos como Motaz Azaiza, Belal Khaled, Bisan Owda, Wael Al-Dahduh, entre tantos outros, criam a impressão de que Gaza, e os palestinos em geral, vivem um regime de historicidade particular, uma espécie de história fora do tempo, submetidos a uma eterna repetição da catástrofe.

Essa percepção, no entanto, é acrescida de uma vigorosa capacidade de resistência e reconstrução, reafirmada todos os dias pelos próprios palestinos que, há 76 anos, denunciam as agressões das quais são vítimas, impedindo a normalização do estado de exceção em que vivem. Essa situação é também sintoma de um confronto mais profundo: nas palavras de Edward Said, “o confronto entre uma afirmação e uma negação”. Como compreender e capturar esse regime de historicidade? Como descrevê-lo e narrá-lo? Para Said, “devemos compreender a luta entre palestinos e sionistas como uma luta entre uma presença e uma interpretação, em que a primeira parece ser constantemente subjugada pela segunda”.[4]

É esse embate existencial que explica por que, na manhã de 7 de outubro de 2023, quando surgiram as primeiras notícias do ataque do Hamas nas regiões fronteiriças de Gaza, ao sul de Israel, pelo menos dois tipos de sensações se espalharam pelo mundo. De um lado, houve um choque generalizado com o que foi noticiado como “o maior atentado contra judeus após o Holocausto”, mais um exemplo do profundo ódio de árabes e islâmicos, todos bárbaros terroristas, à “única democracia do Oriente Médio”; portanto, mais um capítulo do supostamente milenar e insolúvel “conflito religioso” entre “dois lados” em disputa pela “terra santa”, a luta entre “civilização e barbárie”. Para muitas outras pessoas, contudo, aquele momento se transformou em uma angustiante apreensão: sabíamos que uma escalada inimaginável na violência contra os palestinos estava por vir, ainda mais brutal que aquela dos relatos de Abder Raouf e Mohammed Omer.

O que explica a coexistência de percepções tão profundamente diferentes e de escala global em torno de um mesmo acontecimento? Trata-se do choque entre a interpretação, mencionada por Said, e a realidade dos fatos. A interpretação, nesse caso, pode ser definida como a narrativa ideológica que apresenta o Estado de Israel como a única, natural e indiscutível manifestação do direito de autodeterminação dos judeus — de todos os judeus. Essa interpretação estabelece um vínculo incontornável entre o judaísmo, a judeidade e o Estado de Israel. Assim, a mais sutil crítica a esse Estado ou mesmo a entidades sionistas seria uma expressão do antissemitismo que culminou no Holocausto — e, por isso, deve ser duramente reprimida. Enquanto isso, Israel está autorizado a cometer as maiores atrocidades, pois, pela narrativa que difunde ao mundo, estaria apenas exercendo seu “direito de defesa”. A realidade, por outro lado, revela aspectos que essa narrativa busca propositalmente esconder: entre eles, o fato de que a construção de Israel se deu a partir de sucessivos e bem documentados fenômenos de expulsão e limpeza étnica dos palestinos, e a manutenção do Estado judeu ocorre por meio de ocupações ilegais, apartheid e encarceramento em massa, constituindo-se em uma forma, ao mesmo tempo, típica e particular de colonialismo.

A repetição sistemática da narrativa ideológica sionista, à direita e à esquerda, desde fins do século xix, atualizada constantemente pelo lobby internacional israelense, é revestida por uma armadura quase intransponível, com o intuito de protegê-la de toda e qualquer crítica. Esse “domo de ferro” se caracteriza não apenas pelo apoio mas, sobretudo, pelo patrocínio da maior potência econômica e militar do planeta, os Estados Unidos, como outrora contou com a proteção de um dos maiores impérios coloniais de que se tem notícia, a Grã-Bretanha. É essa filiação de conotações colonialistas, imperialistas e neoliberais que permite a impunidade de Israel perante as organizações internacionais, apesar de todos os crimes de guerra, punição coletiva, ocupações ilegais e violações de direitos humanos que comete sistematicamente e que são de conhecimento público.

Mas nenhum projeto de dominação é total. Em entrevista a uma jornalista israelense no filme Nossa Música, de Jean-Luc Godard (2004), o poeta Mahmud Darwich afirma que, para os palestinos, foi um azar e ao mesmo tempo uma sorte ter Israel como inimigo: “Isso ofuscou nossa tragédia, mas também lhe deu visibilidade. Israel nos deu a derrota e o reconhecimento”. As contradições de uma história fora do tempo ou de um tempo de eterna repetição — do confronto entre uma presença e uma interpretação, ou entre a derrota e o reconhecimento — constituem um campo de experiências que expõe as vísceras de um dos fenômenos mais importantes da era moderna. Uma espécie de síntese de todas as crises: social, racial, religiosa, ambiental, econômica, cultural, geopolítica.

Gaza é, de alguma forma, o centro do mundo. E este livro se situa nesse campo, ao perseguir a realidade dos fatos e, ao mesmo tempo, oferecer subsídios para a desconstrução da interpretação hegemonicamente aceita que tem justificado o genocídio dos palestinos há 76 anos, ocasionando a pior de todas as crises: a crise de humanidade.

Inspirado no livro de poemas Espanha no coração, do chileno Pablo Neruda, publicado em 1937, este Gaza no coração nasce de um sentimento de profunda angústia, mas também de um desejo poderoso de esperança e justiça. Por essa razão, a solidariedade é o fio condutor dos 42 capítulos que compõem a coletânea — e foi o tema gerador das reflexões desenvolvidas pelas autoras e autores. O resultado é um livro que trata de aspectos centrais da história do povo palestino, ao mesmo tempo que revela os fundamentos de sua resistência histórica. Um livro que é, para todas as pessoas envolvidas, uma obrigação moral, um compromisso ético e uma declaração de esperança.

Para quem tem pouca proximidade com a Questão Palestina, uma abordagem introdutória, porém consistente, pode ser lida nos textos de Arlene Clemesha e Samira Osman, em que é possível também encontrar referências basilares sobre a Palestina histórica antes do Mandato Britânico e os eventos que culminaram na criação do Estado de Israel — momento também conhecido como Nakba. O capítulo de Francirosy Barbosa propõe a “pedagogia da Nakba”, um programa que visa tornar a catástrofe palestina não apenas conhecida, mas o ponto nodal do debate público sobre a questão. O enquadramento desse processo histórico no colonialismo, sua vinculação congênita com uma nova fase do capitalismo e a realidade dos palestinos sob dominação colonial é debatido com profundidade nos capítulos de Françoise Vergès, Silvia Federici, Tithi Bhattacharya, Deivison Faustino, Pedro Charbel, Ana Carolina Coppola e Heloisa Villela.

A reflexão sobre o sionismo enquanto ideologia política que não apenas sustentou a criação do Estado de Israel como busca justificar a limpeza étnica dos palestinos é desenvolvida nos capítulos de Jones Manoel, Benjamin Moser e Ualid Rabah, que também apresentam perspectivas para a sua superação. Nessa mesma chave interpretativa, é fundamental debater os impactos da tragédia palestina para a judeidade e a importante atuação de judeus antissionistas compromissados com a verdade e a justiça em solidariedade aos palestinos. Nesse sentido, destacam-se os capítulos de Bruno Huberman, do coletivo Vozes Judaicas por Libertação, de Dafne Melo, Tadeu Breda e Marcio Farias. Já o capítulo de Hyatt Omar versa sobre a censura aos conteúdos palestinos nas redes sociais, que muitas vezes operam como mais uma arma de guerra do sionismo.

Compreender e narrar o genocídio em curso são imperativos tanto para pressionar pelo cessar-fogo imediato quanto para imaginar um futuro possível não apenas para os palestinos, mas para toda a humanidade. Esse é o tema dos capítulos de Vladimir Safatle, Berenice Bento, Gabriel Rocha Gaspar e Geraldo Godoy de Campos. O impacto particular da violência sionista para as mulheres e a população lgbtqia+ é tema dos textos de Soraya Misleh, Kais Husein e Gabriel Semerene. Já o protagonismo palestino na criação de estratégias de resistência e sua história de resiliência — expressas no conceito de sumud — oferecem referências importantes para a luta internacional e impõem desafios que são discutidos por Maynara Nafe, Rita von Hunty, Rima Awada Zahra e Thiago Ávila.

O que temos que ver com os palestinos? Quais as relações históricas entre a tragédia palestina e os problemas profundos que afligem os povos oprimidos do mundo? Como a solidariedade pode ser uma tecnologia de emancipação humana, ao conectar povos explorados em diferentes regiões do planeta? São perguntas debatidas nos capítulos de Geni Núñez, Casé Angatu, Gizele Martins, Douglas Belchior, Pedro Borges e Simone Nascimento, Gerson de Souza Oliveira e Selma de Fatima Santos, Gal Souza e Raúl Zibechi.

Há ainda o futuro. O que restará sob os escombros de Gaza? Duas perspectivas são apresentadas por Jamil Chade e Sharif Shabazz. Na mesma entrevista de Darwich anteriormente citada, o poeta palestino diz: “Há muito mais inspiração e riqueza humana na derrota do que na vitória”. E acrescenta: “Ai de nós, porém, se também formos derrotados no domínio da poesia”. Para que não sejamos derrotados, abrimos o livro com os versos de Farah Chamma e o fechamos com obras de três poetas de Gaza, selecionadas e traduzidas por Felipe Benjamin Francisco, um conto de Milton Hatoum e um desenho de Carlos Latuff.

Organizar e editar este livro foi um verdadeiro tour de force: 47 autoras e autores responderam ao chamado para escrever em um momento de urgência, no calor dos acontecimentos, tomados por sentimentos de profunda tristeza, aflição, revolta e indignação. Todos estavam cientes de que, a milhares de quilômetros de distância de Gaza, restava-nos muito pouco a fazer. Por isso, fizemos aquilo que sabemos e podemos: escrever. Agradecemos a todos que ouviram e aceitaram o chamado, tornando possível este documento de resistência e solidariedade. Pela interlocução diária e fundamental apoio, agradeço especialmente a Anita Lazarim e Felipe Costa.

Todas as pessoas devem viver em segurança, paz e dignidade. Todos os povos possuem o direito de reivindicar melhores condições de existência. Mas em hipótese alguma é aceitável, ou sequer justificável, que o direito de um povo signifique a expulsão, o extermínio, a violência contra outro povo. Esperamos, com este volume, oferecer um arsenal crítico que alcance cada vez mais pessoas, que una e difunda as vozes palestinas e de não palestinos no exercício da solidariedade internacional, exigindo o cessar-fogo, o fim da ocupação, o respeito ao direito internacional e a emancipação dos palestinos. Gaza no coração é também uma declaração aos palestinos: de que não estão sozinhos, de que existem vozes que se erguem pela justiça e que não têm nada a temer, a não ser tornarem-se indiferentes. Por isso, este livro é também um gesto de reencontro da humanidade consigo mesma.

 

Notas

[1] Mohammed Omer, Em estado de choque: sobrevivendo em Gaza sob ataque israelense. Trad. Vinicius Gomes Melo. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

[2] Soraya Misleh, Al Nakba: um estudo sobre a catástrofe palestina. São Paulo: Sundermann, 2017, p. 80-81.

[3]Ibidem.

[4] Edward Said, A questão da Palestina. Trad. Sonia Midori. São Paulo: Editora Unesp, 2012, p. 10.

 

Rafael Domingos Oliveira é historiador e educador, bacharel e mestre em história pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutorando em história social pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em estudos sobre escravidão e abolição nas Américas, foi coordenador do Núcleo de Educação do Museu Afro Brasil e pesquisador do Projeto Querino. É membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Afro-América (Nepafro) e coordenador do Núcleo de Acervo e Pesquisa do Theatro Municipal de São Paulo. É autor de Vozes afro­-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade (Elefante, 2022).

 

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