Gaza, São Paulo, a normalização do massacre

Por Tadeu Breda
editor

 

Um dos motivos que levaram a Elefante a voltar todos os olhos para a Palestina a partir de outubro de 2023 foi a certeza de que, após a violenta ação do Hamas em Israel, com o assassinato e o sequestro de civis, o governo de Benjamin Netanyahu desencadearia uma operação militar sem limites nem precedentes contra Gaza. As declarações (sobretudo a já tristemente célebre “Estamos lutando contra animais humanos e agindo de acordo com isso”, proferida pelo ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant) e as ações que se seguiram apenas reforçaram a constatação de que estávamos diante do início de uma campanha genocida — o que pôde ser rapidamente confirmado com a escalada diária e com o alvo dos bombardeios: edifícios inteiros, que desmoronavam principalmente sobre mulheres e crianças.

Após cinco meses de ofensivas aéreas e terrestres contra a população de Gaza, interrompidos apenas por alguns dias para troca de reféns de lado a lado (porque boa parte dos palestinos presos em Israel também pode ser considerada refém, uma vez que sequer foi julgada), a cifra de mortos palestinos já ultrapassou trinta mil. Não se sabe ao certo quantas pessoas jazem sob os escombros. A fome e a sede grassam. A desnutrição se alastra, assim como as doenças infecciosas. Não consigo sequer imaginar o desespero reinante entre os cidadãos de Gaza neste momento, entre pais e mães que perderam ou que temem perder os filhos, entre filhos que perderam ou temem perder os pais, entre mulheres prestes a parir em meio ao morticínio, com acesso precário aos poucos hospitais que restaram no território. E tampouco alcanço compreender a impressionante capacidade de resistência desse povo.

Ao olhar para o que está ocorrendo na Palestina nos últimos meses, porém, é possível vislumbrar respostas para uma das perguntas que mais me inquietam — e não só a mim: como a humanidade permitiu que o Holocausto acontecesse? A resposta parece estar em nossa incapacidade de reagir coletiva e rapidamente ao monstruoso, uma vez que nos entregamos a interesses políticos mais imediatos e nos perdemos em conjecturas supérfluas diante da realidade que se escancara bem diante de nossos olhos. Enquanto vacilamos, os perpetradores da carnificina avançam resolutos, intensificando o massacre.

Um exemplo é a discussão inócua iniciada pelas reações do governo israelense e de seus defensores na imprensa mundial e brasileira depois de Lula ter dito e repetido a obviedade de que Netanyahu está promovendo um genocídio em Gaza que tem paralelo com o que Hitler fez com os judeus (e com comunistas, homossexuais, ciganos) no século XX. Em meio a tuítes indignados e a notas de repúdio — e a um pedido de impeachment protocolado na Câmara dos Deputados —, o governo de Israel avançou em seu plano de atacar Rafah, ao sul de Gaza, para onde ordenara que os civis fugissem caso não quisessem morrer nos bombardeios mais ao norte, e apropriou-se de novas áreas da Cisjordânia, onde também decidiu construir mais assentamentos. E israelenses de extrema direita aproveitaram a terra-arrasada que restou no norte da faixa territorial palestina para tentar construir um novo assentamento judeu.

O projeto, aqui, claramente, é ir esticando as fronteiras do aceitável, normalizando a barbárie, até que os atos mais impensáveis possam ser executados sem que causem escândalo ou, menos ainda, acarretem maiores consequências. Assim, em 29 de fevereiro, um raro comboio de ajuda humanitária entra na Faixa de Gaza e é imediatamente cercado por palestinos famélicos — nada mais natural para quem precisa urgentemente de um pouco de farinha para não ver a família morrer de inanição. Soldados israelenses se envolvem, disparam contra pessoas que só querem comida. Um drone filma tudo lá do alto. Como resultado, mais de cem civis perdem a vida. A guerra de versões começa imediatamente, seguindo o roteiro tradicional, em que as Forças Armadas de Israel se eximem de responsabilidade ou oferecem justificativas irrelevantes para os crimes que cometem, assim como ocorrera nos ataques que fizeram aos hospitais de Gaza “em busca de terroristas”. E antes, e sempre.

Contudo, não há dúvidas. Se essas pessoas todas morreram atingidas por projéteis (os militares israelenses admitem ter assassinado no episódio “não mais que dez” palestinos na fila do pão — e confessar um crime horrendo como esse perde importância diante do pequeno número de “animais humanos” confessadamente abatidos, tornando-se quase uma absolvição) ou pisoteadas, ou de ambas as formas, o culpado é o mesmo. Afinal, os palestinos em Gaza apenas se amontoaram em volta dos caminhões de ajuda humanitária porque estão sendo castigados pela fome e pela sede, consequências óbvias de quase cinco meses de ataques brutais. E, se efetivamente houve gente pisoteada, isso se deve ao fato de que soldados israelenses começaram a disparar contra a multidão — alguém ficaria parado ao ouvir os estampidos vindos da arma de um agressor que está matando seus vizinhos aos milhares? Basta retirar Israel da cena e nada disso teria acontecido. E é assim desde 1948.

O que estamos assistindo em Gaza é cada vez mais preocupante porque, com o irrefreável genocídio em curso, Israel, apoiado pelos Estados Unidos e pela Europa — por bilhões de dólares em dinheiro e armas enviados pelo Ocidente —, está definitiva e talvez permanentemente destruindo qualquer noção de direitos humanos e qualquer possibilidade de que sejam colocados em prática no presente e no futuro. Graças a essa matança, os limites da civilidade, que já eram estreitos, estão desaparecendo a uma velocidade vertiginosa.

Claro que muitas outras desgraças aconteceram e acontecem em vários lugares do mundo. Mas esse conflito (que a imprensa tradicional insiste em classificar como uma guerra entre Israel e Hamas, quando é claramente de uma campanha de extermínio e expulsão de todo um povo de seu território) tem uma peculiaridade indelével: trata-se de um genocídio cometido por um povo que há menos de cem anos foi vítima de um genocídio, e que usa o fato de ter sido vítima de um genocídio como justificativa para cometer um genocídio, respaldado pelas mesmas nações que nesse último período construíram e implementaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção de Genebra e a Organização das Nações Unidas na tentativa, ainda que apenas retórica, de valorizar a vida humana sobre todas as coisas e construir uma paz mundial duradoura. Agora, nem a retórica temos mais.

Trata-se, pois, de uma falência moral inédita desde a Segunda Guerra Mundial, em escala planetária. O mundo não será mais o mesmo depois do que está ocorrendo na Palestina. Já não é. E isso deveria preocupar a todos, em todos os lugares, porque a ação de Israel, patrocinada pelos governos e pelos senhores da guerra estadunidenses e europeus, dará carta branca para que episódios do gênero se repitam globalmente, sem que exista qualquer respaldo diplomático para sua condenação e interrupção. Afinal, se um Estado pode exterminar impunemente um povo que escolheu como inimigo, e com amplo respaldo internacional (financeiro, político e militar), outros Estados também se sentirão no direito de fazê-lo — e farão, ainda mais em um contexto de ascensão da extrema direita.

Voltemos, pois, ao Brasil. Enquanto um protesto em solidariedade ao povo palestino reuniu duzentos gatos pingados no vão do Masp, em São Paulo, em 24 de fevereiro — pessoas que deviam se manifestar contra o genocídio em Gaza mas que deixaram esse assunto de lado para brigar entre si porque uns queriam falar ao microfone e outros não deixaram —, no dia seguinte a extrema direita deu mais uma vez mostras de grande capacidade de mobilização popular, com uma concentração multitudinária na Avenida Paulista — onde, por sinal, flamularam bandeiras israelenses em apoio ao extermínio em Gaza. Estavam lá o ex-presidente da República, pastores evangélicos, parlamentares conservadores, o prefeito da capital e o governador do estado. Sobre este último, cria do bolsonarismo, a newsletter da Agência Pública enviada em 1º de março diz o seguinte:

 

Em São Paulo, a Polícia Militar do governo Tarcísio de Freitas matou 38 pessoas em menos de um mês na Operação Verão — continuação da malfadada Operação Escudo, que já havia tirado a vida de 28 pessoas na Baixada Santista no ano passado. Para além da letalidade fora de controle, ambas as operações tiveram como mote a vingança pela morte de um policial. Não se trata de uma guerra de policiais contra “bandidos”, aplaudida por boa parte da sociedade, apesar dos alertas dos especialistas sobre o equívoco dessa política. Em ambos os casos, as comunidades foram invadidas e civis foram assassinados indiscriminadamente para “dar o troco”, sem poupar nem as crianças. Ao todo, somando ambas as operações, são 66 pessoas mortas. Nas palavras do relatório da Ouvidoria das Polícias, que visitou os lugares-alvo da operação no dia 11 de fevereiro, este já é “o maior massacre do estado paulista desde a chacina do Carandiru”. […] na gestão Tarcísio, com o capitão Derrite à frente da Segurança Pública, o número de crianças e adolescentes mortos em decorrência de operações policiais subiu 58% em um ano. O número saltou de 24 mortos em 2022 para 38 em 2023. A maior parte das vítimas é negra e diversos crimes têm características de execução.

 

Nunca é demais frisar: nada disso é novidade, infelizmente, mas a escalada é visível. Basta querer olhar. E os paralelos entre o que acontece nas periferias brasileiras e em Gaza são evidentes. Cada vez mais será assim.

Também no dia 1º de março, o Itamaraty — que demorou, mas finalmente resolveu começar a se posicionar com mais firmeza contra o genocídio na Palestina — soltou uma nota à imprensa dizendo que “a ação militar em Gaza não tem qualquer limite ético ou legal”, que é preciso agir para interromper esse massacre, que, “a cada dia de hesitação, mais inocentes morrerão”, que “a humanidade está falhando com os civis de Gaza”, que o massacre de palestinos em busca de ajuda humanitária, seguido de “declarações cínicas e ofensivas às vítimas do incidente”, feitas horas depois pelo governo israelense, “devem ser a gota d’água para qualquer um que realmente acredite no valor da vida humana”. Eu assino embaixo.

A grande questão é que essas afirmações também servem para se referir ao que as forças de segurança fizeram, fazem e continuarão fazendo em todo o Brasil. Até porque a Justiça falha miseravelmente em colocar qualquer limite aos seus agentes — ou melhor, faz questão de conferir-lhes impunidade.

Em 29 de fevereiro, ministros do Superior Tribunal Militar votaram por absolver os oito militares responsáveis pelo fuzilamento do músico Evaldo Rosa, além de determinarem a redução, a pouco mais de três anos em regime aberto, da pena a eles imposta pela morte do catador de recicláveis Luciano Macedo. Quem se lembra desse caso? Nós não poderíamos esquecê-lo. Em 2019, homens do Exército cumprindo funções de segurança pública no Rio de Janeiro dispararam dezenas de tiros (naquele dia, falou-se em 80, mas depois contou-se 257) contra o carro em que Evaldo trafegava com sua família. Ele morreu, esposa e filho sobreviveram. Um catador de recicláveis que assistiu à cena, Luciano, tentou socorrê-lo, e também foi assassinado. Todos eram negros. Em reação a esse absurdo, a Elefante abriu uma chamada pública que deu origem ao livro De bala em prosa: vozes da resistência ao genocídio negro, com textos de novos escritores e escritoras negras, finalista do Prêmio Jabuti em 2021.

A maior derrota que podemos sofrer como sociedade, como espécie, é permitir a normalização e a justificação de tamanha matança, onde quer que ela aconteça, bem diante de nossos olhos. Ignorar um genocídio alhures é criar condições para que ele aconteça em absolutamente qualquer lugar, inclusive na porta da nossa casa. Episódios como os que se repetem em Gaza ou nas periferias brasileiras precisam ser chamados pelo que são — massacres, genocídios, carnificinas — e freados o quanto antes, sem tergiversações, enquanto ainda nos resta algum resquício da humanidade que se esvai pouco a pouco com tantas e tantas mortes.

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Em tempo I: em 8 de março — três dias após a publicação deste texto —, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, ao ser confrontado com o fato de que entidades de direitos humanos brasileiras farão denúncias ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o elevado número de mortes provocadas pela PM durante seu mandato (iniciado em 1º janeiro de 2023), deu a seguinte declaração: “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”. Depois de tudo que escrevi acima, deixo a pergunta: por que estaria?

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Em tempo II: em 19 de março — catorze dias após a publicação deste texto —, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, tomou um avião e foi a Jerusalém encontrar-se com Benjamin Netanyahu, apertou a mão do premiê israelense e fez-se fotografar ao lado do notório genocida e pária internacional, junto com o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, ladeado pelas bandeiras do Brasil e de Israel, as mesmas que flamularam nas manifestações da extrema direita em São Paulo.

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