
Hiroshima, 80: Uma bomba é uma bomba, é uma bomba
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Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala
Hiroshima está em toda parte, de Günther Anders, está sendo lançado aqui pela Elefante neste 2025 e foi o tema desta segunda temporada do nosso podcast, um Especial Hiroshima, em cinco episódios. Este quinto e último programa, exatamente em 6 de agosto, quando o ataque completa 80 anos, traz a leitura da primeira parte do posfácio do livro, um texto escrito por Paulo Arantes, chamado Uma bomba é uma bomba, é uma bomba.
Paulo Arantes é professor sênior da FFLCH-USP, onde se aposentou da docência, mas segue orientando alunos na pós-graduação. Entre seus livros publicados destacam-se Formação e desconstrução: uma visita ao Museu da Ideologia Francesa, pela Editora 34, O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência e Extinção, esses dois pela Boitempo. Reproduzimos aqui a primeira parte do texto, a mesma da leitura do podcast, lembrando que a edição do livro contém notas de rodapé detalhadas e explicativas.
Uma bomba é uma bomba, é uma bomba
Paulo Arantes
Günther Anders gostava de se apresentar e descrever a si mesmo como um “filósofo ocasional”, e sua filosofia, como “um híbrido de metafísica e jornalismo”. Nisto teve um precursor ilustre — para não dizer um exato contemporâneo, em mais de um sentido, ao longo dos anos 1930 —, Sartre, que também pretendeu, com a Nausée, por exemplo, fazer “descendre la metaphysique dans les cafés”. E, como se há de recordar, não apenas Sartre mas toda uma geração francesa do imediato pós-guerra, todos metodicamente empenhados em desentranhar metafísica de uma notícia de jornal, sendo que a categoria “notícia de jornal”, ela mesma um resumo do Tempo Presente — por sua vez o tema único e exclusivo de uma revista como Les Temps Modernes —, era surpreendentemente ampla para dar notícia, precisamente, de toda uma gama de acontecimentos novos, da publicação de um romance a uma revolução, da exibição de um filme a um fait divers etc.
Não havia nada de “concreto” que não estivesse impregnado de metafísica e não pudesse vir embrulhado em jornal — por sinal aquele mesmo cuja leitura diária, mais de um século antes, Hegel elevara à condição de “oração realista da manhã”, embora custe um pouco imaginar uma leitura em feitio de oração da notícia da batalha de Jena e do correspondente colapso da Prússia. Eis o corte de época que separa o nosso filósofo da obsolescência do mundo de seus contemporâneos franceses, por assim dizer ainda contemporâneos da esquerda hegeliana, para não mencionar o famigerado discurso filosófico da modernidade. Como veremos mais adiante, uma ruptura de época, sim, mas na qual a própria noção de “época” está em jogo, prestes a se tornar ela mesma obsoleta, numa acepção inédita do termo, aliás. Uma filosofia da ocasião, como a concebe Günther Anders ao voltar da imigração, não é tão generosamente abrangente como a dos primeiros fenomenólogos franceses; não é qualquer reunião de ocasiões que forma um fenômeno de época, que por sua vez determina e define toda uma época: nos híbridos metafísicos que povoam as notícias de jornal, é preciso saber desentranhar apenas aqueles objetos que se destacam por seu “caráter opaco e inquietante”, e que por isso mesmo despertam esse bizarro “ocasionalismo” filosófico, a rigor uma cadeia infindável de “digressões” (Anders, 2002, p. 22-3).
Logo nos depararemos com essas ocasiões-limite e suas respectivas respostas filosóficas, que por sinal sempre giram em torno do inegociável. Assinalo apenas de relance alinha de continuidade do que foi rompido pelo corte de época mencionado há pouco — também dispomos de uma oração da manhã, só que preventivamente apocalíptica: “que o seu primeiro pensamento após despertar se chame átomo”, podemos ler na primeira linha dos Mandamentos para a era atômica, que Anders publicou não por acaso num jornal, em julho de 1957.
Antes de passar adiante e nos depararmos com a última onda de choque — na verdade, o first strike de toda uma cadeia sem fim de golpes superpostos — que por um tempo lhe roubou as palavras, é preciso observar que Günther Anders não despertou, pronto e acabado da cabeça da Minerva filosófica alemã do seu tempo, para o ativismo filosófico que o celebrizou nas inúmeras campanhas de desarmamento nuclear ainda à sua frente. Longe disso. Pelo contrário. Nosso personagem, áspero e intratável como um cacto de Manuel Bandeira, descobriu mais de quinze anos antes a mesmíssima ideia fundamental de Husserl que fará a cabeça de Sartre em meados dos anos 1930, a janela que abriu a esquálida filosofia francesa para o mundo dos homens lá fora no meio da multidão, nas cidades e estradas poeirentas, o mundo dos artistas e profetas, mundo assustador, mortal, perigoso, povoado de coisas nas quais, conforme se lê no artigo fundador de 1939, a fenomenologia, na sua aparente inocência filosófico-discursiva, instalar ao horror que, por exemplo, irradiava da irredutível “essência” terrível de uma simples máscara japonesa etc. (Sartre, 1973).
Por essa época, no entanto, Günther Anders já se tornara um imigrante antifascista vivendo da mão para a boca nos Estados Unidos, e a fenomenologia, bem como a antropologia filosófica que a sucedera e corrigira ainda nos anos 1920, e que a reabilitara com o nome de antropologia negativa, ficaram para trás, não a ponto de se extinguirem mas brilhando como uma estrela no céu das ideias canceladas — tanto é que até hoje alimentam os estudiosos dos seus anos de formação com a hipótese da persistência daquele antigo regime filosófico.
Para retomar nosso ponto de partida, falemos das “ocasiões”, quer dizer, dos traumas de época que o converteram no ser híbrido que dizia ser, curiosamente à revelia, pois, como disse certa vez, teria preferido de longe ter ficado em casa escrevendo sobre literatura, música e pintura, ao invés de correr o mundo para retardar sua destruição. Não é preciso recorrer à nova erudição em curso a seu respeito para saber — aliás, por suas próprias palavras, pois nunca cessou de comentar a si mesmo, o regime variado dos escritos do “moralista” no qual as circunstâncias o converteram — que desde o início se preparou para redigir uma antropologia filosófica sistemática, animado não só por Max Scheler (do qual chegara a ser assistente por um breve momento) mas sobretudo por sentir-se “dotado de disposições naturais extraordinariamente sistemáticas”, sem as quais não seria possível encarar aquele gênero filosófico tão idiossincraticamente alemão e inapelavelmente datado pelo contravapor da Primeira Guerra Mundial. Trata-se de uma ciranda de teorias duras, mesclando, por exemplo, biologia e filosofia (basta lembrar do longo prestígio das obras de Jakob von Uexküll sobre o comportamento animal e a noção de Umwelt), sem falar nas ciências do comportamento, a começar pelo psíquico e assemelhados, um carrossel de reflexões com roupa nova girando em torno de uma indagação perene acercada posição do ser humano no cosmos.
Em suma, no resumo de um dos comentadores atuais, trata-se de pensar o homem enquanto vivente na sua diferença com os outros seres vivos. Publicado em 1928, o livro introdutório de Max Scheler, A posição do homem no cosmos, tornou-se um manifesto dessa renovação que alinhara também Plessner, Gehlen e outros tantos mandarins, incluindo Ernst Cassirer, o liberal ontraditor de Heidegger em Davos. Por seu turno, valeria bem uma outra missa a entrada do jovem Günther neste cenáculo e a torção que ele aplicou no repertório, a estreia de uma antropologia filosófica que passou a qualificar de negativa, entre tantas outras razões por revirar pelo avesso o famigerado ser-no-mundo heideggeriano, quando mais não seja porque o homem andersiano, cuja essência não se deixa “fixar”, é um homem-sem-mundo, e como aos poucos irá se dando conta, na virada radical dos anos 1920 para os 1930, que a expressão “homem sem mundo” designa obrigatoriamente uma situação de classe. Nesta chave, lerá Berlin Alexanderplatz recém-saído do forno e também nela escreverá seu primeiro texto no exílio parisiense, em março de 1933, uma Anthropologie des chômeurs. Inaugurada por uma conferência lida em Frankfurt em 1929, Die Welt-fremdheit des Menschen— cujos originais se perderam, em parte recuperados em dois artigos publicados em francês poucos anos depois, Une interpretation de l’a posteriori e Pathologie de la liberté, mal traduzidos, mas não a ponto de não impressionar Sartre, segundo se diz, que os teve sob os olhos mas teria deixado por isso mesmo —, trata-se de uma trilha a ser percorrida sobretudo quando se pensa no que ele foi deixando pelo caminho, aliás bem longo, pois atravessou nazismo, guerra, restauração capitalista.
Incluem-se aí também o ensaio sobre Döblin, elaborado a prestações; o magistral estudo sobre Kafka e sobre o Godot de Beckett, e por aí vai, até alcançar, já em 1979, as Histórias do Sr. Keuner etc. Enfim, o próprio e original conceito de obsolescência deita suas raízes nessa antropologia negativa, cuja elaboração sistemática foi interrompida — interrompeu-se o sistema, mas não a ideia. E não faltou quem enxergasse na bomba atômica ela mesma, quer dizer, no autoextermínio deliberado e violento do gênero humano, a derradeira encarnação do novum antropológico cuja semente nosso filósofo plantara naquela remota conferência na Sociedade Kant de Frankfurt, acrescido, é claro, da observação subsequente de que o homem sem mundo, por assim dizer matricial, é o trabalhador estruturalmente desempregado numa sociedade do trabalho.
Por aqui, não vamos especular sobre um programa que não aconteceu — salvo nas obras-primas avulsas enumeradas há pouco —, não só pelo desvio que representa como também justamente porque tal programa de antropologia negativa foi interrompido de um só golpe (ou confirmado em sua intuição original) pela chegada de Hitler ao poder; não tanto a chegada propriamente dita, mas os anos de agonia de sua irresistível ascensão. Foi esse o primeiro choque de época, ao qual Anders reagiu, ato contínuo, por palavras e obras. (Como logo veremos, não foi assim ao receber a notícia do ocorrido em Hiroshima, embora a estupefação fosse da mesma ordem.) Da noite para o dia, por assim dizer, depois de anos vagando pelos mais diversos domínios e guiado por uma curiosidade filosófica sem dúvida original, ele teria engavetado de uma vez seu projeto de sistema. Não foi bem assim, pelo menos noque concerne aos estilhaços daquele antigo programa de pesquisa e intervenção: quando reuniu numa redação final suas conferências e artigos fragmentados sobre Kafka, não é difícil perceber que o poder exercido pelo terror fascista é o fio condutor de sua interpretação, assim como a “antropologia” do trabalho sem trabalho marca as horas de espera de Godot.
Todavia, o fato divisor de águas é que ele abandona, de certo modo, as formas fixas da filosofia, substituindo-as por uma variedade de gêneros literários, fábulas, romance, poesia, sátiras à maneira de Swift etc. E foi justo nessa hora extrema de fascismo e guerra — mais precisamente nos três primeiros anos da imigração e já na condição de outsider acadêmico — que foi assentando a mão de escritor e polemista como crítico titular da rubrica de cultura e derivados no Berliner Börsen-Courier, quando deixou deser Günther Stern e tornou-se definitivamente um “outro”, Anders: Günther Autrement, na paráfrase de seus novos leitores franceses. Por fim, foi este mesmo escândalo do inumano impensável o responsável por sua conversão, que chamou de socrática, querendo com isso designar sua persona de moralista, sem dúvida na acepção mais enfática do termo, tendo em vista o patrono escolhido: nada mais nada menos do que o nome que costuma ser associado à identificação do pensamento como algo distinto do mero (por assim dizer) conhecimento, sem o qual a vida deixa de ter valor, pois tende a zero; e no limite torna-se supérflua, uma vez transcorrida na ausência ou no vazio de pensamento.
Tendo em mente o mesmo fenômeno — que alguém já descreveu como uma autorregulação silenciosa da “alma” consigo mesma, de modo a evitar contradizer-se na hora de prestar contas ao seu duplo, que costumamos chamar também de consciência (Lebrun, 1983, p. 62) —, em lugar da muito intelectualizada e asséptica expressão “pensamento”, Günther Anders falará da mais ativa e politizada “imaginação”, no fundo para dizer algo semelhante: o vazio de imaginação, devidamente explicado pelo processo material de sua produção social, foi afinal preenchido pela bomba e pelo campo. Variante, portanto, da mesma matriz: “filosofia moral”, ou ainda mais comprometedor, “moralista”, é o outro nome para “filosofia de ocasião”. Numa ou noutra chave se reage ao choque do inominável em sua forma de acontecimento histórico extremo (na falta de melhor vocábulo, à vista da banalização contemporânea dos eventos ditos extremos, no limite um arremate pífio dos terremotos originais). Ninguém nasce moralista, nem mesmo os personagens de Molière, mas se torna moralista ao sabor dos desastres alinhados pelo curso inaceitável do mundo; a boa pergunta seria, portanto: “Como é possível não ser moralista?”. Não há filosofia, em suma, que não seja em primeira instância reação moral a uma abominável provocação externa. O resto é pedir chope, como diria Gottfried Benn.
Concebida nestes termos drásticos, e a seu modo inapelável, a filosofia, desde então, desde que a história do mundo foi partida ao meio, a filosofia é isso ou não é nada; ou elabora um choque externo moralmente monstruoso, ou é desconversa dissertativa, tanto faz se sistemática ou meditativa. Assim sendo, sua primeira e única tarefa reside na capacidade de formulação: simplesmente não compreendemos nem mesmo conseguimos tomar consciência daquilo que não dominamos linguisticamente, como podemos ler logo nas primeiras páginas da introdução (datada de 1982; as datas são tudo numa obra tão diversa e ziguezagueante como a de Günther Anders) de Hiroshima está em toda parte. Por isso, a escola “jornalística” do fait divers metafísico — o garimpo metódico dos objetos “opacos e inquietantes” — foi tão decisiva na calibragem do seu sismógrafo.
Quando a ocasião das ocasiões finalmente chegou e desabou como uma tempestade sobre sua cabeça, e ainda por cima na forma de uma notícia de rádio, anunciando que a cidade de Hiroshima acabara de ser praticamente varrida do mapa pela explosão de uma bomba atômica, aquela decisiva capacidade de formular falhou miseravelmente, e mais, emudeceu por mais de cinco anos. “Durante muitos anos não consegui superar, ou abrandar por meio da fala, o estupor que me veio pelo rádio, com a famosa notícia de rádio de 6 de agosto de 1945.” Podemos presumir sem muito erro que Günther Anders deve ter relatado um punhado de vezes esse episódio de malogro filosófico, e seu renascimento das cinzas, graças a uma real “visão de essência” da era nuclear. Conheço apenas duas: esta que acabei de citar e outra na entrevista com Mathias Greffrath, a qual poderia, quando muito, acrescentar uma breve menção logo na introdução (sem data) de Mensch ohne Welt — reunião de vários escritos sobre arte e literatura —, a saber, uma menção à “ideia fixa” apocalíptica “que tomou conta de mim naquela manhã de agosto, porém sem que eu conseguisse minimamente transformá-la em texto” (Anders, 2015). Pois, no mais completo desses relatos, na referida entrevista com personalidades que precisaram abandonar a Alemanha em 1933, ficamos sabendo mais ou menos do seguinte, que importa por ser não só um resumo em poucas palavras de seu argumento de fundo como também sugere uma data aproximada para a redação do seu estudo seminal, Überdie Bombe und die Wurzeln unserer Apokalypse-Blindheit [Sobre a bomba e as causas de nossa cegueira diante do apocalipse]: que durante anos ele não conseguiu reagir como escritor ao impacto de Hiroshima. Se num primeiro tempo ficou mudo, não foi por falta de reconhecimento imediato do caráter monstruoso do acontecimento, mas porque tudo na inteireza do seu ser — pensamento, imaginação, corpo etc. — se recusava a trabalhar na elaboração do significado daquela monstruosidade.
Além do mais, morando e se virando nos Estados Unidos durante todos aqueles anos de guerra, sabia muito bem da escalada tecnológica das bombas incendiárias que estavam carbonizando as cidades japonesas, de modo que a produção daquele monstro apocalíptico era mais do que previsível; e mesmo convencido instantaneamente, naquela manhã de agosto, de que a humanidade se tornara capaz de autoextermínio e que uma tal viragem era irreversível pelos séculos vindouros, mesmo assim precisou de alguns anos para enfim encarar uma folha de papel e se desincumbir da tarefa de tornar concebível aquela capacidade de produzira extinção da espécie por meios técnicos, testada, aliás, em duas explosões por assim dizer conclusivas. Seguem então as datas prováveis desses anos de gestação de uma ideia que não vinha. Uma primeira tentativa ainda na América apresenta nosso autor travado, incapaz de escrever uma só palavra. Na segunda tentativa, de volta à Europa, encontramos nosso filósofo em crise de inspiração, para empregar uma expressão demasiado frívola para o que estava em jogo. As datas do estalo variam conforme a fantasia retrospectiva do autor, qualquer coisa entre 1950 e 1953, e se referem sempre a duas ou três páginas de um texto lamentável, no qual teria simplesmente passado o atestado da sua, e nossa, incapacidade de ao menos imaginar aquilo que fazemos ou produzimos. Um fracasso sob medida. Tão perfeito o encaixe neste pequeno romance de formação que não seria descabida a hipótese de relativa estilização dos fatos e percalços do pensador. Confessando o vazio de pensamento que me afligiu durante anos — afinal, a parte de barbárie que me cabe nessa hecatombe —, dei afinal com a chave do enigma. Nem uma miserável ideia em face do descomunal que me cabia pensar? Pois não seja por isso, um branco de mais de cinco anos da parte de um “profissional” era a contraprova do que era preciso demonstrar, sem tirar nem pôr, ou melhor, mudando tudo o que há para mudar no caso — assim deveriam nascer as ideias na experiência da consciência hegeliana em formação, que acerta quando confessa que não está entendendo nada do drama que está vivendo.
De volta à charada da falsa esterilidade decifrada, nosso autor foi apenas mais uma vítima, temporária enquanto não nascia a nova ideia, da discrepância que define nosso século e todos os demais que por ventura ainda derem o ar de sua graça, a decalagem entre o que produzimos e nossa capacidade de ao menos “entender” o que acabamos de perpetrar. Estando a nova condição humana (antropologia filosófica não deixa por menos) ancorada na normalização desse gap envenenado entre produzir e imaginar o que produzimos, estamos condenados, mais dia menos dia, amanhã ou daqui a cem anos, à repetição de Hiroshima e Nagasaki. Dois exemplos arrematam essa brevíssima narrativa sobre seus anos de silêncio e impotência mental, exemplos da cegueira perceptiva quando a imaginação falha, seca e por fim some.
Primeiro, o ar inofensivo com que se apresentam os galões de Ziklon B entrevistos numa visita a Auschwitz e o formidável esforço de imaginação — embora um clichê, nele reside toda a sabedoria socrática dos Mandamentos para a era atômica, do tipo amplie ao máximo tua imaginação para não te tornares parceiro de um funcionamento macabro — para perceber, naqueles recipientes industriais anódinos, a destruição dos judeus da Europa. Do mesmo modo, só a imaginação bem treinada por exercícios de alongamento estará em condições de apanhar em sua rede mais verdade do que a mais equipada das percepções, ultrapassando, por exemplo, o convite à capitulação que se expressa no bom desenho de um reator nuclear e sua cúpula de igreja renascentista. Não será preciso evocar o preenchimento desse ato de intencionalidade imaginária — se for possível falar assim — por visões de Chernobyl ou Fukushima; bastaria lembrar do correlato princípio de Paul Virilio, segundo o qual cada tecnologia carrega consigo seu acidente específico, devidamente corrigido para o caso do artefato nuclear, cujo acidente cataclísmico é a própria substância (Virilio & Lotringer, 1989, p. 40). Pensando melhor, quem sabe exemplos de desfamiliarização como estes ainda carreguem consigo alguma reminiscência dos antigos exercícios de descrição fenomenológica, destinados a despertar algo como o verdadeiro “choque filosófico” produzido pelas coisas individuais quando arrancadas de seu contexto funcional, como acontece com o mundo desconcertante e assustador apresentado pela pintura e a literatura modernas, ou num cenário de guerra depois de uma batalha de materiais.
Lembremos, enfim, que Günther Anders não padeceu sozinho à agonia filosófica de não conseguir elevar ao plano do conceito —cumprir, em suma, o mandato do pensamento moderno — o núcleo catastrófico e explosivo da época que se abrira com a multiplicação virtual do acontecimento Hiroshima. Fazia-lhe companhia na mesma aflição, quem diria, Adorno. É sabido que os dois não se bicavam. Nem por isso (era só o que faltava) a municipalidade de Frankfurt deixou de conceder-lhe o Prêmio Adorno em 1983: na ocasião, ressaltando sem nenhum artifício os laços de família, declarou que ambos acabaram armando uma verdadeira “enciclopédia apocalíptica do mundo” (David, 2007, p. 173). Faltou acrescentar, embora não fosse o caso, que nos capítulos que correspondiam ao seu parceiro estava ausente um verbete capital, justamente a bomba atômica. Em carta ao próprio Anders, Adorno procurou dessa vez se justificar: “Eu sempre evitei escrever sobre a bomba atômica, por um motivo que não é muito simples de compreender, talvez por causa da desproporção entre o punho cerrado de um intelectual e aquele dispositivo (Einrichtung), certamente não por covardia”. Não tão simples assim. Descartemos de saída o dente de ouro que vem a ser a alusão despropositada à covardia. É quase certo que mais uma vez Günther Anders tenha cobrado do filósofo, com a falta de jeito dos ativistas, sua participação nalguma marcha pelo desarmamento nuclear e tenha recebido novamente um sonoro “não”. Tampouco vou especular agora sobre as relações entre teoria e prática num e noutro. Salvo relembrar que, numa das raras vezes em que a bomba dá o ar da graça nos escritos de Adorno, é na condição de limite político absoluto. Eis o decreto, enunciado no rescaldo do Maio europeu: “contra os que administram a bomba, são ridículas as barricadas; por isso brinca-se de barricadas, e os donos do poder toleram temporariamente os que estão brincando” (Adorno, 1995, p. 217). Daí o senso do ridículo que o paralisa diante do intelectual que se dá ao desfrute de cerrar os punhos levantados contra um dispositivo propriamente pós-humano, aliás o gesto mesmo dos militantes maoístas ao escarnecer, no caso, do que chamavam de “fetichismo nuclear” corporificado pela bomba, um outro tigre de papel de cuja posse, entretanto, a República Popular da China mesmo assim nem pensava em abrir mão.
É bom insistir que estávamos no imediato pós-1968 e Adorno se desentendera de vez com os rumos desses levantes. Posando ou não de revolucionários, batemos todos num teto absolutamente desproporcional: parece mas não é o mesmo conceito de “discrepância”, nosso conhecido, afinal dois “ridículos” somados, a gesticulação revolucionária de um filósofo e o teatro estudantil das barricadas, no máximo seriam sintomas regressivos e só com muita licença hermenêutica incluídos entre as molas propulsoras da defasagem entre forças produtivas descontroladas (na falta de melhor termo para a húbris que as tornou destrutivas) e a atrofia da nossa faculdade de julgar e imaginar. Seja como for, aí tem coisa, nessa dissidência de Adorno diante da enormidade monstruosa da bomba; no fim das contas, capacidade de formular era com ele mesmo. E quanto ao fundo da questão, ambos concordavam que a recaída na barbárie — tão temida por Marx — já se produzira: “esperá-la para o futuro”, como dizia Adorno no mesmo texto sobre teoria e prática, justamente depois de tal recaída, “depois de Auschwitz e Hiroshima, faz parte do pobre consolo de que ainda é possível esperar algo pior”. E mais: pode até surpreender, mas Günther Anders também tinha um pé atrás com a contestação dos anos 1960, embora tenha participado ativamente, pois rebaixava aqueles movimentos à condição de meros “substitutos”, por deixarem de fora, ou na sombra, no melhor dos casos, a ameaça de morte nuclear que pairava acima da época a que não só dava o nome mas anunciava como derradeira: “a necessária revolta principal foi escondida por revoltas secundárias, a luta contra um futuro sem mundo ou mundo sem futuro foi substituída de maneira quase exclusiva pela luta contra males contemporâneos ou contra males de um futuro inconteste. E isto lhes bastou durante anos”, como se pode ler na introdução de Hiroshima está em toda parte.
Arrematando a surpresa, o argumento fecha com um (mau) juízo que Adorno sem dúvida não pensaria duas vezes em endossar: “e talvez seja justificada a suspeita de que essas rebeliões substitutas nem foram assim tão mal recebidas pelas potências dominantes como elas nos fizeram crer. Durante o transcurso dessas rebeliões, as potências mundiais puderam prosseguir tranquilamente com seu alucinante armamento nuclear”.
Por outro lado, como era notória a alergia da velha guarda frankfurtiana às campanhas pelo desarmamento nuclear, como ficamos? Uma desconcertante querela entre apocalípticos, de costas para os integrados? Tampouco a implicância de Adorno com o ativismo de amplo espectro de Günther Anders — dos testes nucleares ao Tribunal Russell — oferece uma pista segura, pois se trata de um combate mais do que singular: o paradoxo de uma prática política quando, a rigor, não há tempo para mais nada. E, afinal, o que há de político na política não é justamente ganhar tempo? O tempo necessário para as respostas humanas, possíveis somente quando dispomos de uma reserva de tempo, como pensavam Oskar Negt e Alexander Kluge lá pelos idos de 1980 e 1990, bem no limiar que estava sendo transposto com a agonia da Guerra Fria, uma implosão geopolítica com um inaudito potencial de catástrofe (Negt & Kluge, 1999). Talvez seja isso. Adorno renunciou ou não se animou (tanto faz) a pensar a bomba porque já não havia mais tempo político para respostas humanas, por motivo sim de desproporção incomensurável entre os humanos e a bomba por eles mesmos produzida sob o famigerado véu tecnológico, aquela tendência de encarar a técnica como a própria coisa, um fim em si mesmo.
Em certo sentido, Negt e Kluge poderiam responder que é disso mesmo que se trata. Como não há nenhuma relação de medida possível e imaginável entre uma explosão nuclear (para não falar ainda no oximoro “guerra nuclear”) e o “minúsculo e frágil corpo humano”, desabrigado no centro de uma poderosa tempestade, desta vez não de aço, mas de matéria desintegrada, não há respostas humanas — quer dizer, políticas — para essa incongruência descomunal. Por isso evocam, não por acaso, o desastre de Chernobyl: o que se pode opor de político a uma chuva radioativa? Assim como uma “reviravolta das relações de medida em nosso corpo ou em nossa cabeça é capaz de provocar a morte” (Negt & Kluge, 1999, p. 25), uma reviravolta na escala de um inverno nuclear — se os autores citados estiverem na direção correta — desnudaria a nossa humana condição (na formulação preferida de Montaigne e que Günther Anders emprega sem maiores inibições), revelando nossa outra condição encoberta pela rotina da política de poder: o fato de sermos “intrinsecamente apolíticos, ou para usarmos uma expressão de Hegel e Hölderlin, somos pessoas sem resposta” (Negt& Kluge, 1999, p. 25). No fundo, cada um no seu tempo próprio, foi o que deram a entender nossa dupla Anders/Adorno.
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