Identidades, corpo e território: o caso das 56+1 meninas incendiadas no lar seguro Virgen de La Asunción

Por Walda Barrios-Klee e Dina Mazariegos García
Tradução Joana Salém Vasconcelos
Trecho de capítulo de Corpos, territórios e feminismos

 

A impossibilidade de dominar os corpos juvenis provoca o autoritarismo manifesto no confinamento e no extermínio desses corpos como fator de eugenia ou “limpeza social”. A isso somam-se os discursos sobre a vigilância e o controle panóptico das práticas da juventude, palavrório que deixa de conceber os jovens como “rebeldes” para qualificá-los como perigosos — ou seja, faz-se necessário controlar seus corpos como prova da impossibilidade de dominar seu pensamento (Heffes, 2013).

INTRODUÇÃO

Não é possível compreender a sociedade guatemalteca sem considerar que as feridas provocadas pelo mal chamado “conflito armado interno”² não terminaram de cicatrizar. Estamos diante de uma democracia doente. Embora os Acordos de Paz assinados em 1996 tenham constituído um divisor de águas que possibilitou a recomposição do movimento social e a emergência de novos sujeitos sociais antes totalmente excluídos, a exemplo dos povos originários e das mulheres, não houve vontade política suficiente para se levar adiante políticas públicas orientadas ao fortalecimento das instituições criadas como efeito dos Acordos (Méndez Gutiérrez & Barrios-Klee, 2010).

A Guatemala vive um contínuo estado de emergência que passa de uma crise a outra. O Estado se converteu em butim nas mãos da oligarquia que há mais de cinco séculos se apropriou do país, acompanhada por setores do Exército encarregados de estabelecer a repressão durante o período de contrainsurgência.

O juvenicídio e o feminicídio constituem uma fusão de violência extrema contra as mulheres jovens, que nas últimas décadas se agravou em diferentes nações latino-americanas. A Guatemala é considerada o terceiro país com maior incidência de violência extrema contra mulheres jovens. Tomando essas informações como ponto de partida, procuramos as origens e a sucessão de eventos que desencadearam esses fatos violentos, isto é, as bases que levaram a determinados momentos políticos e, em sua presente recomposição, à violação, à exclusão e à morte de incontáveis mulheres jovens guatemaltecas.

 

SER MENINA OU ADOLESCENTE: UMA CONDICIONANTE DA EXCLUSÃO NA GUATEMALA

O presente artigo é uma denúncia/reflexão sobre a terrível situação que meninas e adolescentes vivenciam na Guatemala como consequência do enfraquecimento das instituições do Estado. Os Acordos de Paz de 1996 trouxeram muita esperança e otimismo com relação às mudanças no país; no entanto, o caráter autoritário e pouco inclusivo dos sucessivos governos posteriores à sua assinatura dificultou a transição para uma democracia participativa, assim como a possibilidade do desenvolvimento humano.

Uma das conquistas dos acordos foi a visibilização de mulheres e povos indígenas como sujeitos de direitos. Todavia, faltaram políticas públicas e dotações orçamentárias correspondentes para torná-la efetiva, de forma que os direitos não puderam ser cumpridos.

Nesse contexto, em 8 de março de 2017, ocorreu o trágico incidente do incêndio no Lar Seguro Virgen de la Asunción (HSVA)³, no qual faleceram 41 garotas entre 13 e 17 anos. Não foi um acontecimento isolado: constituiu uma “crônica de mortes anunciadas”, pois as carências do sistema haviam sido denunciadas várias vezes.

As estatísticas sobre a situação da infância e adolescência na Guatemala são assustadoras: uma em cada duas crianças menores de cinco anos padece de desnutrição crônica. Em 2015, 83.483 crianças e adolescentes, entre 10 e 17 anos, engravidaram como resultado de estupros, segundo o Observatorio en Salud Sexual y Reproductiva (Osar). Em 2016, segundo o Ministério Público, ocorreram 7.338 denúncias de violência sexual contra pessoas menores de idade e 14.698 por maus-tratos físicos. No mesmo período, houve 809 mortes violentas de crianças e adolescentes, 90% delas ocasionadas por armas de fogo.

Em 2012, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) elaborou o relatório Guatemala: un país de oportunidades para la juventud?, no qual sinalizava quatro direitos básicos para que crianças, adolescentes e jovens vivenciem plenamente o desenvolvimento humano: (i) o direito à vida, o que implica segurança, saúde e iniciar a vida sexual de forma saudável e responsável; (ii) o direito ao saber, que envolve educação escolarizada e acesso aos bens culturais; (iii) o direito de participar, de forma progressiva, da vida social no âmbito político, econômico, social e cultural; e (iv) o direito de desfrutar de tempo livre. Podemos acrescentar a alegria como direito, apontado também na pesquisa que realizamos, com a colaboração da Flacso e do Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa), sobre o drama das meninas que se tornam mães (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, 2015).

O Ministério da Educação reconheceu que 800 mil adolescentes guatemaltecas entre 13 e 18 anos não estão no sistema educacional, aos quais se somam 800 mil ou 900 mil que também deveriam ter passado pela escola e não o fizeram. Temos 1,6 milhão de adolescentes fora do sistema educacional. Esses números mostram que a cobertura em educação formal não alcança grande parte da população. A Guatemala está desperdiçando seu bônus demográfico favorável ao ter uma população jovem sem oportunidades de desenvolvimento. Para as crianças rurais, a situação se agrava.

CRIANÇAS E ADOLESCENTES: TERRITÓRIOS NEGOCIÁVEIS NA GUATEMALA E EM OUTRAS PARTES DO MUNDO

O corpo das mulheres é considerado território em disputa e butim de guerra desde tempos imemoriais. Na Guatemala, a repressão da política de terra arrasada nas áreas rurais violou e matou mulheres com o objetivo de humilhar as comunidades. Nas antigas Grécia e Roma, o corpo das mulheres era considerado como apropriável e, por consequência, espólio de guerra. ⁴

Friedrich Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1864), apontou que a propriedade privada foi garantida por meio da expropriação do corpo das mulheres, uma vez que os homens precisavam se assegurar da paternidade de seus filhos e filhas para que pudessem transferir-lhes seus respectivos bens.

O corpo das mulheres sempre esteve relacionado aos desmandos do poder patriarcal e destinado a “ter todos os filhos que Deus mandasse”, sem que elas pudessem regular livremente sua sexualidade ou seus intervalos gestacionais. Há inclusive legislação que comanda esse corpo; é o caso da criminalização do aborto, por exemplo. A morte materna é um indicador de desigualdade e da falta de atenção à saúde e ao corpo das mulheres: não é possível que, em pleno século XXI, gestantes continuem morrendo no parto nas áreas rurais da Guatemala.

Somos constantemente confrontadas com a violação dos direitos sexuais e reprodutivos, ligados diretamente ao corpo de adolescentes e mulheres. Nenhum direito pode ser vivido fora do corpo, que se torna então um território em que os significados culturais das diferenças sexuais e dos desmandos patriarcais se materializam; consequentemente, sempre sofrerá tentativas de controle. Monique Wittig já escrevia: “mulher, vil e preciosa mercadoria”. Na Guatemala, existem muitos exemplos de crianças e jovens sendo entregues a homens mais velhos em troca de gado ou dinheiro (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, 2015).

Barrios-Klee e Pons (1995) utilizam-se do conceito de masculinidades hegemônicas proposto por Connell para explicar a expropriação dos corpos que vitimiza crianças e adolescentes. Essa masculinidade apresenta as seguintes características: (i) naturalização da violência e discri-minação contra meninas e adolescentes; (ii) entendimento do corpo e da vida de mulheres, crianças e adolescentes como propriedade e posse: o corpo como território passível de apropriação de outrem; e (iii) controle da sexualidade de mulheres, crianças e adolescentes, tentando limitar os comportamentos que saem da norma e favorecem a autonomia.

A segunda onda do movimento feminista reivindicou o anticon-cepcional como meio que permite às mulheres exercer o controle sobre o próprio corpo e regular a fecundidade como um direito. Isso levou à transição “da planificação familiar à saúde reprodutiva” (Barrios-Klee & Pons, 1995) e, posteriormente, aos direitos sexuais e reprodutivos.

A pesquisa intitulada Me cambió la vida! Uniones, embarazos y valorización de derechos en adolescentes (2015) [Mudou a minha vida! Casamento, gravidez e valorização de direitos de adolescentes], realizada pela Flacso em parceria com o Unfpa e orientada por Walda Barrios-Klee, chegou aos seguintes resultados: o casamento em idade precoce influencia na gravidez precoce; meninas adolescentes não têm conhecimento sobre métodos anticoncepcionais e sobre o funcionamento do próprio corpo, o que torna quase impossível regular a fertilidade; as adolescentes e mulheres possuem baixa escolaridade, o que impede que conheçam seus direitos e que os exerçam. Essas condições contribuem para que a expropriação dos corpos e o exercício da subordinação se constituam como imperativo do poder patriarcal sobre o corpo femininos. 

CORPOS INCENDIADOS: TESTEMUNHAS DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA GUATEMALA

Presumimos que as 56+1 crianças e adolescentes imoladas em 8 de março de 2017 no Lar Seguro Virgen de la Asunción encontram-se temporariamente confinadas nessa instituição estatal fundada paradoxalmente para conferir proteção a meninas cujos direitos foram violados.

Depois de contextualizar a situação, a condição e a posição da infância e das juventudes na Guatemala, apresentamos o perfil da institucionalidade guatemalteca que tem sob sua responsabilidade os cuidados integrais da infância e da adolescência ameaçadas em seus direitos. Obviamente, a referida entidade não foi eficiente, responsável e comprometida em suas funções, em especial no que se refere à restituição de direitos violados ou negados. A consequência foi um efeito devastador para esse grupo populacional, especificamente no caso das 56+1 crianças queimadas até a morte nesse fatídico dia.

De acordo com Castoriadis (2005), cada sociedade constrói suas instituições e seus significados, elabora suas ferramentas, procedimentos e métodos que ajudam a enfrentar os problemas cotidianos. Na Guatemala existe um marco jurídico que promove a criação de instituições de proteção integral da infância e adolescência, e, desde 26 de janeiro de 1990, o Estado guatemalteco é signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança, um tratado internacional da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas que reconhece os direitos humanos básicos de crianças e adolescentes. Nesse sentido, foram criadas instâncias responsáveis para assegurar os objetivos da lei de proteção integral da infância e adolescência: a Comissão Nacional para a Infância e a Adolescência, além das Comissões Municipais para a Infância e a Adolescência.

A Comissão Nacional para a Infância e Adolescência é responsável pela formulação de políticas públicas de proteção integral para garantir o pleno gozo dos direitos e liberdades, sendo integrada por instâncias de Estado e da sociedade civil enfocadas em seu desenvolvimento. As Comissões Municipais para a Infância e Adolescência abarcam corporações municipais, instituições governamentais e organizações sociais que trabalham no município e têm a responsabilidade de formular políticas de proteção integral da infância e da adolescência em âmbito municipal.

No momento em que ocorreu a tragédia, a responsável pela Secretaria de Bem-Estar Social da Presidência, uma das instituições públicas “especializadas” em formulação de políticas públicas e implementação da proteção integral da infância e adolescência, era a reitora do HSVA. Essa secretaria foi criada em 29 de abril de 1963, e seu Regulamento Orgânico foi aprovado em 2006.

Trata-se da autoridade “competente e responsável” por realizar ações relativas ao cumprimento de sanções impostas aos adolescentes em conflito com a lei penal, assim como implementar medidas protetivas a crianças e adolescentes com direitos violados, por meio de programas e serviços de prevenção, proteção e reinserção integral, além de ressocialização em nível nacional com equidade e igualdade.

Para se ter uma ideia mais precisa das razões que conduziram ao martírio dessas 56+1 crianças e adolescentes, é necessária uma abordagem crítica ao complexo problema da institucionalização de menores na Guatemala. De acordo com os especialistas, esse tipo de institucionalização tem duas modalidades: para aqueles que estão em conflito com a lei e para os que estão em condição de vulnerabilidade. Consideram-se vulneráveis as crianças e adolescentes vítimas de violência física, psicológica e sexual em espaços familiares e contextos cotidianos, além de menores com alguma deficiência, em situações de abandono ou de rua, adotados irregularmente, com problemas de vícios, vítimas de tráfico e exploração sexual comercial, laboral e econômica, conforme o Estatuto da Secretaria de Bem-Estar Social. Isso faz com que essas pessoas vivam cotidianamente em situação de risco.A Guatemala é reconhecida como um dos países latino-americanos com maior quantidade de instituições que abrigam crianças e adolescentes. No entanto, elas carecem de padrões de qualidade, como “a temporalidade da estadia da criança, o cumprimento de uma infraestrutura adequada, acesso à educação e atenção psicológica, entre outras” (Luna, Luna & Brizuela, 2011, p. 12). Além disso, em agosto de 2010, autoridades do Conselho Nacional de Adoções assinalaram que somente 7 das 110 entidades privadas registradas contavam com a autorização oficial de funcionamento.

Esses lares deveriam ser temporários e, em princípio, oferecer cuidados profissionais e segurança. Considerando que um menor institucionalizado está sob custódia estatal, pois sua família atravessa uma crise, é o Estado o responsável por sua saúde, educação, alimentação, segurança e pelos elementos básicos para seu desenvolvimento integral.De acordo com Valeria Brahim (2018), especialista brasileira em direitos da criança, a institucionalização deveria ser o último recurso para menores em condições de vulnerabilidade, já que remover a criança da família é mais violento que a própria violência. Além disso, os relatórios mundiais da Organização das Nações Unidas (onu)sobre violência contra crianças estabelecem que a violência institucional é seis vezes maior que os programas familiares alternativos.

Sobre o HSVA em particular, Naveda e Arrazola (2017) comentam que esse abrigo havia sido refundado em 2010 e se converteu, em seguida, no principal centro de acolhimento de menores dirigido pela Secretaria de Bem-Estar Social. A secretaria deveria ter dotado a instituição de protocolos referentes aos “cuidados diferenciados” desde o começo, já que o HSVA sempre acolheu crianças e adolescentes com problemas distintos, vítimas de abandono familiar e/ou violência doméstica e do tráfico, jovens em conflito com a lei e menores com deficiência.

É evidente que a institucionalização dos menores tem caráter punitivo na Guatemala, pois seus impactos nada têm a ver com prevenção, proteção, recuperação, reinserção ou ressocialização de condutas. As metodologias usadas no HSVA descritas pelas menores sobreviventes indicam repressão, no sentido de se considerar que o castigo tem função social e é uma ferramenta de procedimento de poder pela qual o corpo é submetido à força por uma instituição social. Além disso, o aparato administrativo institucional em que as menores se encontram reclusas converte tal castigo em suplício e, como comenta De Mably (1789 apud Foucault, 2002 [1999]), este afeta mais a alma que o próprio corpo. Ao mencionar a categoria suplício, Foucault o identifica como parte do ritual do castigo:o suplício, mesmo se tem como função “purgar” o crime, não reconcilia; traça em torno, ou melhor, sobre o próprio corpo do condenado sinais que não devem se apagar; […] E pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo (Foucault, 2002, p. 33 [1999, p. 30-1]).De modo geral, é possível afirmar que, desde suas raízes coloniais, patriarcais, racistas, classistas e outras, a sociedade guatemalteca é discriminatória, excludente, punitiva e violenta, além de utilizar o castigo corporal e psicológico como forma de controle. Construiu-se então o horror cotidiano do açoite, que assola a grande maioria das crianças e adolescentes em sua rotina. “Os jovens foram transformados em inimigos perigosos da sociedade. Juventude e periculosidade ou juventude e delinquência se converteram em sinônimos, em palavras intercambiáveis, cujo efeito é naturalizar a violência institucionalizada exercida contra jovens” (Reguillo, 2003, p. 11).

As vítimas do HSVA eram, de modo geral, meninas e adolescentes que vinham de lugares nos quais a punição também era constante. Já haviam vivido, portanto, outras experiências de suplício; injustamente e em plena violação de seus direitos elementares, já haviam sofrido violência física, psicológica e até mesmo sexual nos espaços em que transitavam diariamente. No entanto, o suplício vivido no HSVA as levou a uma morte agônica jamais imaginada, que encurtou os sonhos dessas adolescentes e marcou a vida de seus familiares e da sociedade guatemalteca como um todo. 

Como mencionamos, o HSVA fazia parte do sistema de proteção da infância e adolescência, isto é, uma instituição que deveria oferecer segurança. Contudo, e de acordo com diferentes relatórios da pesquisa realizada por promotores do Ministério Público e informações que foram publicadas em vários meios de comunicação, ficou compro-vado que o HSVA, desde sua fundação, foi palco de um sem-número de histórias de abusos e violências: espancamentos, tráfico, estupros e até um assassinato. Entre os especialistas em cuidado de menores, se consolidava a ideia de que o centro de proteção havia se convertido em um lugar de maus-tratos e tortura.

Aparentemente, por meio de seus funcionários, a instituição empregava um sistema de controle e disciplina orientado a modificar pensamentos e se apropriar do corpo e dos territórios das adolescentes, transformadas em sujeitas passíveis de punição. A entidade se apossou do corpo delas, submetendo-as aos suplícios da violência extrema mediante a dueñidad dessas crianças e adolescentes. A categoria dueñidad foi proposta pela antropóloga Rita Segato no livro La guerra contra las mujeres e tem como objetivo identificar os diferentes fatos que atentam contra o corpo-território e a soberania das mulheres. Desse modo, a dueñidad se apropria não apenas do corpo físico mas também da vida e da morte dessas sujeitas. “Desde 2013 dezenas de denúncias foram apresentadas ao Ministério Público e à Procuradoria dos Direitos Humanos por abusos sexuais e humilhações cometidos contra crianças no lar em que ocorreu a tragédia” (Naveda & Arrazola, 2017).

Todo esse suplício vivenciado cotidianamente por crianças e adolescentes é uma demonstração do abuso de relações de poder e controle do sistema desumanizado, patriarcal e adultocêntrico exercido pelos funcionários do HSVA. É uma evidência de que, por trás da institucionalização de menores e adolescentes, estão escondidos os verdadeiros sistemas de torturas e abusos.

O sistema punitivo é uma ferramenta usada pelos funcionários para submeter não apenas o corpo como também a maneira de ser das adolescentes. De acordo com o testemunho de várias crianças sobreviventes e de muitas que agora estão caladas para sempre, seus corpos-territórios eram utilizados para comércio sexual em troca de segurança ou de menos castigos. Falando sobre a submissão do corpo das mulheres, María Luisa Femenías e Paula Soza Rossi ressaltam que:

Sua efetividade radica justamente em ações públicas e suas consequências se exibem ao público nos “corpos exemplificadores”, isto é, corpos disciplinados, soterrados, submissos, passivos, mortos. O objetivo da mensagem é evidente. Por ação ou por omissão, escrevem com sangue uma mensagem pública cifrada para a sociedade […]. A gama é ampla: vai desde o insulto ou a descrença de uma mulher (ou das mulheres em geral) até a crueldade mais extrema. “Voltaremos a ser quem manda, ainda que para isso devamos incrementar a crueldade nos apropriando do corpo das mulheres e inscrevendo sobre eles nossas mensagens de poder e domínio.” (Femenías & Soza, 2009, p. 64)

Nega-se o direito de existência a crianças e adolescentes detidos nessas instituições que, embora se encontrem em um marco legal, não cumprem com suas responsabilidades nem com as políticas públicas das quais emanam. Não correspondem à realidade da maioria da população guatemalteca: os e as mais jovens.

[…] Continua em Corpos, territórios e feminismos: compilação latino-americana de teorias, metodologias e práticas políticas.

1. A expressão “56+1” foi preservada do título original. Foram 56 crianças e adolescentes vitimadas no incêndio do Lar Seguro Virgen de la Asunción, em San José Pinula, Guatemala. Uma das vítimas estava grávida de oito meses. [n.t.]

2. Não se tratou de um conflito armado, porque isso implicaria paridade entre as partes combatentes. Na Guatemala, o aparato estatal reprimiu a população civil desarmada e aplicou uma política de terra arrasada.

3. Em castelhano, Hogar Seguro Virgen de la Asunción (HSVA), centro estatal de proteção para crianças e adolescentes vítimas de violência, abandono e maus-tratos. [n.t.]

4. Foi o caso de Helena de Troia e do rapto das Sabinas na Roma Antiga.



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