Laboratório Gaza
Por Antony Loewenstein
Trecho do Prefácio à edição brasileira
Laboratório Palestina
O ataque do Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, chocou pela brutalidade. Seu nível de sofisticação, incapacitando tanto as forças armadas de Israel quanto sua ampla arquitetura de vigilância ao redor de Gaza, pegou Tel Aviv de calças curtas. Cerca de 1,2 mil israelenses, entre soldados e civis, foram mortos ou sequestrados, o que levou o Estado judeu a uma situação de paralisia, medo e raiva sem precedentes nos últimos cinquenta anos.
O Oriente Médio nunca havia testemunhado coisa parecida: um grupo militante sediado em Gaza cegou e subjugou temporariamente a nação mais poderosa da região. Foi um golpe contra uma crença, há muito consolidada em Israel, de que os 2,3 milhões de palestinos aprisionados em Gaza poderiam ser estocados para sempre na maior prisão a céu aberto do mundo, sem que houvesse consequências.
Nada justifica os massacres cometidos pelo Hamas. Eles foram atrozes, ilegais e contraproducentes para a causa palestina — provocaram um sofrimento indescritível a milhões de palestinos, sem produzir qualquer ganho político aparente. No máximo, precarizaram ainda mais a situação dos palestinos em sua terra ancestral.
Como era de esperar, Israel respondeu imediatamente ao 7 de outubro com uma campanha acachapante de choque e pavor, matando pelo menos quarenta mil palestinos em Gaza, dos quais muitos eram civis e crianças. Dizimou amplas parcelas do território sitiado, deixando-as inabitáveis. E esse era exatamente o objetivo: forçar os palestinos a saírem ou viverem permanentemente em cidades de barracas.
É difícil colocar em palavras a escala dos horrores em Gaza. Valas comuns para palestinos. Cadáveres com sinais de tortura. Hospitais bombardeados, invadidos e inutilizados. Soldados israelenses filmando a si próprios enquanto humilham palestinos para exposição pública no TikTok, usando roupas íntimas roubadas de mulheres palestinas, exibindo como troféu a devastação de escolas e mesquitas. A tortura de prisioneiros palestinos não foi uma coisa marginal, conduzida por umas poucas “laranjas podres” do exército; foram ações populares, reflexos da sede de sangue de todo um público israelense que não enxerga os palestinos como merecedores de igualdade, muito menos de direito à segurança.
“A direita quer mais, mais e mais”, escreveu o jornalista Gideon Levy no Haaretz, em abril, “assim como muitos israelenses que não se consideram de direita. Não basta que todos os cidadãos de Gaza sejam mortos, desabrigados ou aleijados. Eles querem mais.”
As imagens de Gaza eram apocalípticas. Lembravam o bombardeio aliado contra a cidade alemã de Dresden, nos estertores da Segunda Guerra, ou a destruição da cidade iraquiana de Mossul, conduzida pelos Estados Unidos em 2017 sob o pretexto de destronar o Estado Islâmico. Junto com a maior parte do Ocidente, o presidente Joe Biden cerrou fileiras com Israel depois do 7 de outubro e não deixou a carnificina abalar seu apoio às ações de Tel Aviv.
O apoio ocidental foi praticamente incondicional. Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Austrália e Reino Unido despacharam armamento às pressas para auxiliar na luta israelense. Ficou óbvio que, para eles, vidas palestinas não importam. Famílias inteiras foram extintas, bairros deixaram de existir. Amigos palestinos em Gaza, com quem eu convivi desde que fiz minha primeira cobertura local, em 2009, perderam suas casas, seu sustento. Tornaram-se refugiados na própria terra. Uns poucos tiveram a sorte de escapar para o Egito e alhures, mas seu futuro é incerto.
Nunca havia ficado tão patente o desprezo da classe política e de grande parte da mídia ocidentais à existência dos palestinos. A Nakba de 1948 foi um período catastrófico, que ecoa até hoje. Mas esse evento infame empalidece diante do massacre e do deslocamento forçado de palestinos que sucederam o 7 de outubro. Só podemos imaginar as consequências deste último desastre. É certo que não produzirá nada de bom.
Como nos reconciliaremos com esse nível de matança e humilhação deliberadas? Não é difícil perceber que Israel vê nesse momento uma oportunidade de terminar o trabalho iniciado em 1948: produzir uma Nakba de proporções bíblicas, capaz de dispersar para sempre a identidade palestina pelos quatro cantos do mundo. O ex-primeiro-ministro israelense Naftali Bennett descreveu assim sua visão para o futuro: “A partir de agora, Israel precisa viver um Vale do Silício em Esparta. […] Fomos cruelmente rememorados [no 7 de outubro] de que a existência de Israel depende que estejamos constantemente vigilantes, em alerta. E de que sejamos fortes e muito, muito duros”.
Esse sonho é desafiado por uma inédita campanha popular de boicote e embargo de armas. Com ela, surge a probabilidade de julgamentos de soldados israelenses — inclusive com a emissão de mandados de prisão para o premiê Benjamin Netanyahu e seu ministro da Defesa, Yoav Gallant (junto com três líderes do Hamas), pelo Tribunal Penal Internacional. Esses são todos resultados plausíveis da carnificina em Gaza. A crueldade de Israel, que exibe de forma tão ostensiva seu desprezo pelo sofrimento palestino, resultou em protestos globais numa escala que não se via desde os protestos maciços contra a invasão estadunidense do Iraque em 2003. Pesquisas de opinião pública nos Estados Unidos, principalmente entre pessoas de 18 a 35 anos, mostram uma insatisfação completa, tanto com a maneira como a administração Biden conduz a guerra quanto com a falta de vontade da Casa Branca em frear as ações israelenses.
Em direção diametralmente oposta, o clima político em Israel é repleto de clamores pela aniquilação completa de Gaza, uma demanda cotidiana de políticos, jornalistas, do público em geral. O Kan, um grande veículo de mídia local, publicou um vídeo em que crianças israelenses cantam: “Dizimaremos todo mundo” em Gaza. Enquanto isso, Netanyahu, já assolado internamente por protestos contra a tentativa de seu governo de neutralizar por completo uma Suprema Corte já fraca e muitas vezes relapsa, repetiu sua praxe de não assumir qualquer responsabilidade pelos profundos fracassos militar e de inteligência escancarados no 7 de outubro. Não se sabe quanto tempo mais ele durará a frente do país. […]