Publicado em Tinta Limón
A sensação de colapso econômico, ecológico e político provocado pela pandemia que atingiu o mundo no início de 2020 foi declinando na gestão de uma crise que se espalha e é consumida em um incessante ruído midiático, na proliferação semiótica autocentrada e complacente das redes sociais, em uma agenda político-econômica subordinada a uma correlação global de forças que resulta, no melhor dos casos, em um jogo de soma zero. Ao mesmo tempo, a crise é irrefutável e exige levar a sério as discussões que apontam para o centro da reprodução social, para as formas de organização da produção e do consumo, para as formas de “crescimento” e desenvolvimento econômico e social. Quais são as discussões substantivas que contribuem para uma análise crítica das causas da atual crise socioecológica global que podem alimentar um novo imaginário e dar consistência a uma prática política transformadora?
Os ativistas políticos e pesquisadores Markus Wissen e Ulrich Brand escrevem com os pés no coração do capitalismo europeu, a partir de onde disponibilizam uma estrutura conceitual que nos permite localizar tendências que a pandemia acelerou e revelou. Em Modo de vida imperial: sobre a exploração de seres humanos e da natureza no capitalismo global, eles investigam as maneiras pelas quais as normas de produção e consumo forjadas no Norte global – mas estendidas, a partir de meados do século 20, para o resto do mundo – são sustentadas à custa de violência, destruição ecológica e sofrimento humano, especialmente – embora não exclusivamente – no Sul global. Ou, mais especificamente, analisam como o modo de vida imperial do Norte global oculta sistematicamente as condições de produção – da extração de recursos naturais às condições de trabalho – que lhe permitem externalizar os impactos negativos das operações do capital para regiões periféricas do mundo. Por sua vez, esse modo de vida imperial no Norte global não é apenas causa e fator de crise no Sul global, mas também um mecanismo de estabilização econômica e subjetiva do próprio Norte, camuflando assim sua própria crise.
Dito isso, estamos interessados em colocar essas ideias para funcionar e discuti-las. Para isso, convidamos Gabriela Massuh [1], Bruno Fornillo [2] e Camila Moreno [3] para conversar com Ulrich Brand sobre o livro. Gerhard Dilger, diretor para o Cone Sul da Fundação Rosa Luxemburgo, e Florencia Puente, coordenadora do projeto da mesma instituição, também participaram da organização e coordenação desta conversa.
O texto a seguir é o registro desse bate-papo que, entre outros temas, vai da crise ecossocial ao surgimento do “capitalismo verde” como oportunidade de negócios; do declínio da Europa e da perda da soberania dos Estados-nação à disputa por recursos estratégicos e ao surgimento de potências asiáticas como a China. Que tensões e novas contradições estão passando pelos territórios, tanto no Sul global quanto no Norte? O que podem hoje os movimentos sociais que no início do século apresentavam uma alternativa clara às forças mercantis e destrutivas do neoliberalismo?
[Dividimos a conversa em quatro partes, publicadas separadamente no Blog da Elefante: Modo de vida imperial: as ressonâncias de um conceito | Os projetos das elites globais: capitalismo verde e ecoimperialismo | Alcances e limites da vontade individual: quando a solidariedade não é suficiente | Movimento social e emancipação: tensões dentro do império. Você também pode ouvir a conversa na íntegra.]
Gabriela Massuh: Devo dizer que o título Modo de vida imperial, à primeira vista, me pareceu estranho. Pensei: “Outro livro sobre imperialismo”. Mas, em seguida, a forma como o livro propõe pensar esses modos de vida imperiais a partir da insistência nas “externalidades” me pareceu absolutamente necessária e interessante. O Sul global surge, em relação ao Norte global, como depósito de lixo, como local de extração de recursos. Ao mesmo tempo, é inevitável pensar, também, naquele Sul global que chega à Europa em forma de migração; e como os governos europeus estão fechando e colocando cada vez mais barreiras a ele. Um exemplo recente que chamou minha atenção: a Dinamarca lutou, sem sucesso e por cinquenta anos, contra a existência de seus guetos de migrantes. A cada ano, cerca de trinta bairros, principalmente nas grandes cidades, são incluídos em uma espécie de lista negra. Há poucos dias, seu governo social-democrata decidiu reduzir a 30% a entrada de “não ocidentais” nesses bairros. Esta é a primeira vez que tal distinção é feita e é altamente problemática. Por exemplo, o que significa “não ocidentais”? Como diria Rita Segato, algo “cheira mal” nessa Europa cada vez mais fechada. O “outro”, para a Europa, está nos museus ou nos guetos. Nesse sentido, e seguindo a própria Segato, poderia ser proposto um paralelo entre esse conceito de modo de vida imperial e o conceito de colonialidade do poder. Ou seja, a cumplicidade das colônias com o poder hegemônico. Nesse sentido, parece-me que tanto o livro como este conceito de modo de vida imperial tornam muito claras as atuais condições de domínio colonial, patriarcal, racista e de classe.
Bruno Fornillo: De minha parte, o que eu resgataria como um fato singular do livro não é tanto o que tem a ver com a ideia de império, mas sim o que tem a ver com a ideia de um modo de vida. A ênfase que o livro dá às dimensões ideológicas é muito importante para mim. Acredito que a tríade poder, prestígio e dinheiro remete a uma dimensão ideológica fundamental que sustenta o tipo de acumulação capitalista. E o que o texto está marcando muito bem é a responsabilidade generalizada – não só dos setores da elite, mas também de grande parte das classes médias europeias e agora, também, dos novos poderes, especialmente os asiáticos – com essa tríade e esse modo de acumulação. Ou seja, parece-me fundamental apontar a extensão deste modo de vida imperial a grande parte da população e, consequentemente, o alargamento da responsabilidade primária e o compromisso generalizado destes modos de vida hiperprodutivistas e hiperconsumistas em relação à atual catástrofe ambiental global e à distribuição desigual de recursos.
Há outro ponto que o livro sublinha, e ao qual devemos prestar atenção absoluta, é que a Europa e o mundo atlântico em geral, está sofrendo uma espécie de declínio, a tal ponto que é provável que, mais cedo ou mais tarde, se torne novamente uma península asiática. Em contrapartida, o que vemos é o ressurgimento de megapotências asiáticas, que também sustentam um modo de vida imperial. Porque a China é efetivamente um novo império cujo desenvolvimento capitalista, com seu modo generalizado de extração de recursos que impacta o Sul global, contradiz a sustentabilidade do planeta. Em suma, acho essa dimensão cultural ou ideológica que aparece com muita força no texto muito estimulante.
Ulrich Brand: Como diz Bruno, no livro estamos interessados em mostrar como o modo de vida imperial vence mesmo na sua própria morte, mesmo na sua própria extinção, dada a sua capacidade de superexplorar o mundo tanto ecológica como socialmente. Esse caráter hegemônico do modo de vida imperial, a ampla aceitação de um cotidiano insustentável, evidencia-se não tanto em seu caráter imperial quanto na extensão ilimitada de um modo de vida que, no entanto, exige o fora, o não presente; especialmente do Sul global, mas também de regiões da Alemanha ou Áustria, onde inúmeros migrantes vivem e trabalham na colheita ou nas fábricas de carne. Essa é a contradição que nos interessa.
Conforme desenvolvemos no livro, a hegemonia desse modo de vida imperial se consolida na Europa, mas também na Argentina, no pós-guerra, na segunda metade do século XX. Um modo de vida que hoje, com a pandemia, se revela como causa ou fator de uma crise múltipla. Ao mesmo tempo, e não menos importante, este modo de vida é também um fator de estabilização das relações sociais. A Europa já conhece a crise, mas o acesso a commodities, a produtos baratos no mercado mundial, permite que uma parte significativa de sua população mantenha um certo padrão de vida, ou seja, uma vida “normal”. Esta situação, porém, não atinge uma estabilização duradoura, e com base neste diagnóstico, no livro dizemos que cada vez mais tensões são esperadas; tensões que chamamos de eco-imperiais e que ocorrem nos países emergentes do sul da América Latina e da África toda vez que esses modos de vida baseados na extração voraz dos recursos globais não são aceitos e postos em discussão.
Há uma última questão que acho importante destacar sobre este livro e que, sem intenção, interveio em um intenso debate que ocorreu na Alemanha e dentro da esquerda europeia a partir do movimento de refugiados de 2015 – e em setor particular dessa esquerda, que pode ser chamado de social-nacional. Uma esquerda, em alguns casos, impulsionada por sindicatos que costumam dizer: “Temos que defender o modo de vida imperial, porque se não os trabalhadores votarão na extrema direita. Temos que manter um certo Estado social, certos padrões para as massas, porque, se não, a direita será ainda mais forte”. Interferimos nesse debate enfatizando essa posição, colocando as múltiplas crises e modos de vida no centro da discussão e incitando um novo internacionalismo. Parece-nos fundamental colocar tudo em discussão e reconhecer os problemas, mas a resposta da esquerda não pode ser social-nacional, não pode partir da defesa do modo de vida imperial.
Camila Moreno: Quando escrevi o prefácio da versão em português do livro para a Editora Elefante, fiz alguns comentários sobre o que estávamos nos referindo quando falamos de “imperial”. [4] Porque existe um risco na interpretação deste conceito, sobretudo pela forma como a esquerda atual se configura, tendendo a absorver slogans em vez de processar as ideias. Portanto, é preciso ir um pouco mais longe do que a forma como a esquerda – depois de Marx, com Lênin e toda a tradição do século 20 – pensou o imperialismo. Especialmente se entrarmos em uma conversa com a China.
Faço uma breve divagação: um pouco na brincadeira, contei no prefácio do livro que eu estava na China, falando e falando sobre imperialismo, e a pessoa com quem eu estava conversando me olhou, interrompeu e disse: “Mas a China é um império, um bom império”. Então, “o que essa garota maluca está criticando?”, ele queria dizer. E me lembro de outro momento, naquela mesma viagem à China que fiz com Ulrich Brand em 2015, que para explicar um pouco da história da América Latina fiz uma linha do tempo, como costumo fazer nesses casos, e apontei nela os ciclos (açúcar, ouro, café), desenvolvimentismo, neoliberalismo, ajuste estrutural etc., diferentes etapas de nossa história nacional. Em um determinado momento, percebo que meu público me olha como quem diz “coitadinha”. Mais tarde, alguém se refere à Rota da Seda, Genghis Khan e ao império mongol. Suas chaves temporárias são completamente diferentes; e, obviamente, é muito estranho contar essa história para pessoas que pensam sobre si e sobre nós de maneira tão diferente.
E aqui volto à ideia de que o império precede a ideia do imperialismo – conforme se discute na esquerda – e a do Estado-nação. E nesse ponto não é por acaso que as discussões que Ulrich e Markus propõem no livro tiveram tanta ressonância. Há uma grande fantasmagoria como pano de fundo: vivemos um momento em que a forma do Estado-nação, que é uma forma muito recente, está se desgastando muito rapidamente. O sistema de Estados nacionais começa com o Tratado de Westfália, em 1648, e sua difusão e consolidação na Europa e na periferia é um processo complexo e conflituoso. E se pensarmos no processo de constituição do multilateralismo das Nações Unidas, a descolonização na África, por exemplo, ocorre na segunda metade do século XX. São processos lentos, que talvez pareçam rápidos na forma, mas cujas mudanças ocorrem muito lentamente em termos de estruturas sociais profundas. Portanto, tanto a forma do Estado-nação como, sobretudo, a ideia mais recente do Estado de bem-estar social são – na história da humanidade – experiências muito curtas no tempo. Somos obcecados por sua imagem, por seu simbolismo, mas de outros pontos de vista – por exemplo, da Ásia, da China, da Índia – são formas de organização muito recentes e, talvez, insuficientes para enfrentar os desafios atuais.
Ao mesmo tempo, o Estado nacional se metamorfoseou e é cada vez mais um Estado corporativo, um parceiro das corporações. Na realidade, muito poucos Estados-nação terão soberania real para projetar políticas ambientais ou políticas relacionadas à agricultura. Porque os Estados estão cada vez mais codependentes das parcerias público-privadas e aprofundam a lógica da dívida com a da emissão de títulos (títulos sociais, títulos verdes). Ou seja, uma financeirização absurda dos Estados-nação, com a consequente renúncia à soberania e a hipoteca do futuro.
Em suma, o que parece acontecer é uma reorganização do mundo em uma base neo-imperial. Um novo colonialismo. E é neste quadro que assistimos ao crescimento dos programas ligados ao Green Deal [acordo verde], que nada mais são do que pactos que normalizam os pressupostos do capitalismo verde – seja através de programas promovidos pela União Europeia, seja através de programas promovidos pelo Estados Unidos, seja, também, por meio de ideias e projetos formulados a partir dos movimentos sociais. E me detenho neste último, porque me parece que há um déficit na maneira como os movimentos sociais tendem a entender o capitalismo verde, como ele desabou com o processo de transformação digital e como é a exportação de contradições do centro para as periferias hoje em dia.
Uma última questão que me parece muito importante levantar, alinhada com o que disse Gabriela e Ulrich retomou a respeito da colonialidade do poder: acredito que um modo de vida imperial corresponde a um modo de pensar imperial. Ou seja, a colonialidade do conhecimento. Há toda uma ciência social que importamos que nos impõe lentes e modos de ler nossa realidade que são profundamente coloniais, mesmo quando vêm com o rótulo de crítica. E é assim que os movimentos foram incorporando todo um pacote de conceitos e imagens que promovem um novo universalismo: bioeconomia, circularidade, Net Zero, carbono neutro etc. No Brasil isso é muito complexo, na medida em que importamos esquemas teóricos para ler questões raciais, ou importamos esquemas para ler questões relacionadas às mulheres. E isso, na minha opinião, está causando um curto-circuito total em nossas formas de pensar. É como se abrissem franquias, movimentos que são cada vez mais marcas (brands) de luta social e não reflexos reais sobre as diferenças constitutivas de nossos países. E me parece um sério problema não podermos pensar a partir de nós mesmos e de nossas próprias realidades, tradições intelectuais e intérpretes.
No Brasil temos uma expressão clássica: o “complexo de vira-lata”, traço muito profundo da nossa identidade. Voltando a José Carlos Mariátegui e tantos outros autores, parece fundamental, justamente, a chave da miscigenação para compreender a América Latina e a formação de seus povos. No Brasil, esse debate foi completamente esmagado pela intenção de replicar a leitura de uma sociedade e tensões raciais que existem – eu jamais diria que não existe racismo no Brasil! –, mas que são impossíveis de entender se nosso ponto de partida é: como não tivemos um Martin Luther King? Parece-me que é a maneira errada de ler nossas histórias, nossas lutas, nossa resistência; mas também os acordos e fusões que foram alcançados no Brasil e que nunca, jamais, existiram nos Estados Unidos. Nessa chave, para mim é preciso também trazer para o debate como o fenômeno da guerra híbrida, que atua no campo de batalha dos imaginários, subjugando os esquemas de pensamento e de interpretação da realidade, está dificultando muito a construção de frentes de unidade na luta política.
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