Por Silvane Silva
Publicado no Outras Palavras
Escrever este prefácio em meio à pandemia de covid-19, vivendo em isolamento social meses, foi um exercício ao mesmo tempo doloroso e libertador. Em certa altura de Tudo sobre o amor, bell hooks diz que, se não pudéssemos fazer mais nada, se por algum motivo a leitura fosse a única atividade possível, isso seria suficiente para fazer a vida valer a pena, porque os livros podem ter uma função terapêutica e transformadora. Particularmente, não tenho dúvidas a respeito disso, pois a leitura sempre teve esse importante papel em minha vida. Alguns textos nos fazem reviver memórias impressas em nosso corpo e espírito e, dessa maneira, têm o poder de nos transformar e curar.
Em uma sociedade que considera falar de amor algo naïf, a proposta apresentada por bell hooks ao escrever sobre o tema é corajosa e desafiadora. E o desafio é colocarmos o amor na centralidade da vida. Ao afirmar que começou a pensar e a escrever sobre o amor quando encontrou “cinismo em lugar de esperança nas vozes de jovens e velhos”, e que o cinismo é a maior barreira que pode existir diante do amor, porque ele intensifica nossas dúvidas e nos paralisa, bell hooks faz a defesa da prática transformadora do amor, que manda embora o medo e liberta nossa alma. Ela nos convoca a regressar ao amor. Se o desamor é a ordem do dia no mundo contemporâneo, falar de amor pode ser revolucionário. Para compreendermos a proposta da autora e a profundidade de suas reflexões, o primeiro passo deve ser abandonar a ideia de que o amor é apenas um sentimento e passar a entendê-lo como ética de vida. É sabido que bell hooks evidencia em toda a sua obra que o pessoal é político. Este também será o caminho trilhado por ela neste livro, pontuando o quanto nossas ações pessoais relacionadas ao amor implicam uma postura perante o mundo e uma forma de inserção na sociedade. Ou seja: o amor não tem nada a ver com fraqueza ou irracionalidade, como se costuma pensar. Ao contrário, significa potência: anuncia a possibilidade de rompermos o ciclo de perpetuação de dores e violências para caminharmos rumo a uma “sociedade amorosa”.
Tudo sobre o amor: novas perspectivas, publicado nos Estados Unidos no ano 2000, é o primeiro livro da chamada Trilogia do Amor, seguido de Salvação: pessoas negras e amor, de 2001, e Comunhão: a busca feminina pelo amor, de 2002. bell hooks é o tipo de pensadora que, quando atraída por um assunto, tende a esmiuçá-lo, observá-lo por todos os ângulos e explorá-lo por completo. Se ao longo de toda a sua obra o tema do amor aparece, em diversos momentos, como algo que tem um lugar significativo para nossa vida e cultura, é na Trilogia do Amor que a autora nos apresenta suas teses sobre o tema e, mais do que isso, nos oferece lições práticas de como agir.
Ao descrever as maneiras pelas quais homens e mulheres em geral, e pessoas negras em particular, desenvolvem sua capacidade de amar dentro de uma cultura patriarcal, racista e niilista, bell hooks relaciona sua teoria do amor com os principais problemas da sociedade. Apesar de falar a partir da sociedade estadunidense, suas reflexões servem para nós brasileiros, já que também sofremos dos males que a autora tanto procura ver superados: racismo, sexismo, homofobia, imperialismo e exploração.
Seguindo os passos de pessoas que ofereceram o amor como arma poderosa de luta e de transformação da sociedade, como Martin Luther King Jr., por exemplo, bell hooks reposiciona o amor como uma força capaz de transformar todas as esferas da vida: a política, a religião, o local de trabalho, o ambiente doméstico e as relações íntimas. Aprofundando as ideias trazidas por Cornel West referentes às “políticas de conversão” para tratar o niilismo presente na sociedade, hooks coloca a ética do amor no centro dessas políticas. E, nessa perspectiva, compreende que o pessoal sobrevive por meio da ligação com o coletivo: é o poder de se autoagenciar (self-agency) em meio ao caos e determinar o autoagenciamento coletivo.
Tudo sobre o amor: novas perspectivas procura mostrar como somos ensinados desde a infância a ter suposições equivocadas e falsas em relação ao amor e ressalta o quanto nossa sociedade não considera a importância e a necessidade de aprendermos a amar. Tendemos a acreditar que já nascemos com esse conhecimento, mas bell hooks demonstra que o amor não está dado: ele é construção cotidiana, que só assumirá sentido na ação — o que significa dizer que precisamos encontrar a definição de amor e aprender a praticá-lo.
Em “Clareza: pôr o amor em palavras”, primeiro capítulo deste livro, bell hooks afirma que em nossa sociedade o amor costuma servir para nomear tudo, pulverizando seu significado. Nessa confusão em relação ao que queremos dizer quando usamos a palavra “amor” está a origem da nossa dificuldade de amar. Por isso, saber nomear o que é o amor é a condição para que ele exista. Se os dicionários tendem a enfatizar a definição dada ao amor romântico, bell hooks nos mostra que o amor é muito mais que uma “afeição profunda por uma pessoa”. A melhor definição de amor é aquela que nos faz pensar o amor como ação — conforme diz o psiquiatra M. Scoot Peck, trata-se da “vontade de se empenhar ao máximo para promover o próprio crescimento espiritual ou o de outra pessoa”. Nota-se que o espiritual aqui não está vinculado à religião, mas a uma força vital presente em cada indivíduo. Nesse sentido, a afeição seria apenas um dos componentes do amor. Para amar verdadeiramente devemos aprender a misturar vários ingredientes: carinho, afeição, reconhecimento, respeito, compromisso e confiança, assim como honestidade e comunicação aberta. Uma das contribuições fundamentais trazidas por bell hooks é nos fazer pensar que são as ações que constroem os sentimentos. Dessa maneira, ao pensar o amor como ação, nos vemos obrigados a assumir a responsabilidade e o comprometimento com esse aprendizado.
O segundo capítulo, “Justiça: lições de amor na infância”, demonstra que o impacto do patriarcado e a forma da dominação masculina sobre mulheres e crianças são barreiras para o amor, algo pouco presente na bibliografia sobre o tema. Nós aprendemos sobre o amor na infância, e quer nossa família seja chamada funcional ou disfuncional, sejam nossos lares felizes ou não, são eles as nossas primeiras escolas de amor. Neste capítulo, bell hooks levanta a importante discussão sobre a necessidade de valorizar, respeitar e assegurar os direitos civis básicos das crianças. Caso contrário, a maioria delas não conhecerá o amor, tendo em vista que não existe amor sem justiça. Nesse ponto, a autora demonstra o quanto o lar da família nuclear é uma esfera institucionalizada de poder que pode ser facilmente autocrática e fascista. Dessa maneira, continua ela, se queremos uma sociedade eticamente amorosa, precisamos desmascarar o mito de que abuso e negligência podem coexistir com amor. Onde há abuso, a prática amorosa fracassou. Não se pode concordar que a punição severa seja uma forma aceitável de se relacionar com as crianças. “O amor é o que o amor faz”, e é nossa responsabilidade dar amor às crianças, reconhecendo que elas não são propriedades e têm direitos que nós precisamos garantir.
No terceiro capítulo, “Honestidade: seja verdadeira com o amor”, bell hooks afirma que a verdade é o coração da justiça. Somos ensinados desde a infância que não devemos mentir, que devemos jogar limpo. Entretanto, na prática, quem diz a verdade normalmente é punido, reforçando a ideia de que mentir é melhor. Homens mentem para agradar às mães e depois às mulheres. Mentir e se dar bem é um traço da masculinidade patriarcal. Meninos e homens são encorajados a todo momento a fazer o que for preciso para manter sua posição de controle. Por sua vez, as mulheres também mentem para os homens como forma de agradar e manipular. Vivemos em uma sociedade em que a cultura do consumo também encoraja a mentira. A publicidade é um dos maiores exemplos disso. As mentiras impulsionam o mundo da publicidade predatória e o desamor é bênção para o consumismo. Além disso, manter as pessoas em um estado constante de escassez fortalece a economia de mercado. Dessa maneira, hooks enfatiza que a tarefa de sermos amorosos e construirmos uma sociedade amorosa implica reafirmar o valor de dizer a verdade e, portanto, estarmos dispostos a ouvir as verdades uns dos outros. A confiança é o fundamento da intimidade.
Partindo do pressuposto de que não é fácil amar a si mesmo, no quarto capítulo, “Compromisso: que o amor seja amor-próprio”, bell hooks nos ensina que, quando somos positivos, não só aceitamos e afirmamos quem somos mas também somos capazes de afirmar e aceitar os outros. E o movimento feminista ajudou as mulheres a compreender o poder pessoal que se adquire com uma autoafirmação positiva. Quando temos de fazer um trabalho que odiamos, por exemplo, isso ataca a nossa autoestima e autoconfiança. O trabalho, quando percebido como um fardo, por se realizar em empregos ruins em vez de aprimorar a autoestima, deprime o espírito. Como lidar com essa questão se a maioria de nós não pode fazer o trabalho que ama? Um dos modos de experimentar satisfação seria nos comprometermos totalmente com o trabalho a ser realizado, seja ele qual for. Trazer o amor para o ambiente laboral pode criar a transformação necessária para tornar qualquer trabalho que façamos um meio de expressarmos o nosso melhor. Quando trabalhamos com amor, renovamos nosso espírito, e essa renovação é um ato de amor-próprio que alimenta nosso crescimento. E não devemos confundir amor-próprio com egoísmo ou egocentrismo. O amor-próprio é a base de nossa prática amorosa, pois, ao dar amor a nós mesmos, concedemos ao nosso ser interior a oportunidade de ter amor incondicional. É o amor-próprio que garante que nossos esforços amorosos com as outras pessoas não falhem.
No quinto capítulo, “Espiritualidade: o amor divino”, hooks chama a atenção para o fato de que a crise na vida estadunidense não poderia ser causada por falta de interesse na espiritualidade, tendo em vista que a imensa maioria das pessoas diz seguir alguma religião. Isso indicaria que a vida espiritual é algo importante nessa sociedade. No entanto, esse interesse é cooptado pelas forças do materialismo e do consumismo hedonista, traduzido na lógica do “compro, logo sou”. A religião “organizada” falhou em satisfazer a “fome espiritual”, e as pessoas procuram preencher esse vazio com o consumismo. A autora questiona: “Imagine como nossa vida seria diferente se todos os indivíduos que se dizem cristãos, ou que alegam serem religiosos, servissem de exemplo para todos, sendo amorosos”. A atualidade desse questionamento para o Brasil de hoje é desconcertante, tendo em vista os milhões de ditos “cristãos” que, ao invés de amar o próximo como a si mesmos, destilam ódio e preconceito.
“Valores: viver segundo uma ética amorosa” é o título do capítulo 6, no qual bell hooks reforça que o despertar para o amor só pode acontecer se nos desapegarmos da obsessão por poder e domínio. Para nos tornarmos pessoas mais alegres e mais realizadas, precisamos adotar uma ética amorosa, pois nossa alma sente quando agimos de maneira antiética, rebaixando o nosso espírito e desumanizando os outros. Viver dentro de uma ética amorosa é uma escolha de se conectar com o outro. Isso significa, por exemplo, se solidarizar com pessoas que vivem sob o jugo de governos fascistas, mesmo estando em um país democrático. Neste ponto, hooks retoma a afirmação de Cornel West de que uma “política de conversão” restaura a sensação de esperança. E reafirma que abraçar a ética amorosa significa inserir todas as dimensões do amor — “cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento” — em nossa vida cotidiana.
“Ganância: simplesmente ame”, o sétimo capítulo do livro, demonstra que o isolamento e a solidão são as causas centrais da depressão e do desespero. O materialismo cria um mundo de narcisismo no qual consumir é a coisa mais importante. Nessa reflexão, a autora analisa como a participação ativa dos Estados Unidos em guerras globais colocou em questão o compromisso desse país com a democracia, sacrificando a visão de liberdade, amor e justiça em nome do materialismo e do dinheiro. Ela aborda também o desespero que tomou conta das pessoas quando líderes que lutavam pela paz e pela justiça foram assassinados, no final da década de 1960. Nesse momento, as pessoas perderam a conexão com a comunidade, e a atenção voltou-se para a ideia de ganhar dinheiro, o máximo possível. Os líderes passaram a ser os ricos e os famosos, as estrelas do cinema e da música. As igrejas e os templos, que antes eram espaços de reunião da comunidade, com o advento da teologia da prosperidade, tornaram-se lugares onde a ética materialista é respaldada e racionalizada. O que vale a partir de então é a cultura do consumo desenfreado. Pessoas também são tratadas como objetos e são esses os valores que passam a orientar as atitudes em relação ao amor. Isso se reflete também nas políticas públicas, como no fato de os Estados Unidos serem um dos países mais ricos do mundo e não possuírem um sistema universal de saúde que possa oferecer serviços aos menos favorecidos. Dessa maneira, bell hooks convida as pessoas à escolha de viver com simplicidade. Isso necessariamente intensifica a nossa capacidade de amar, nos ensina a praticar a compaixão e afirma nossa conexão com a comunidade.
O oitavo capítulo, “Comunidade: uma comunhão amorosa”, afirma, conforme as palavras de M. Scott Peck, que “nas comunidades e por meio delas reside a salvação do mundo”. Para desenvolver suas reflexões sobre essa questão, bell hooks lembra que o capitalismo e o patriarcado, juntos, como estrutura de dominação, produziram o afastamento das famílias nucleares de suas respectivas famílias estendidas. Por essa razão, aumentaram os abusos de poder no ambiente familiar, pois a família estendida é um lugar onde podemos aprender o poder da comunidade. Outra possibilidade importante dessa experiência de comunidade é a amizade, que para muitos é o primeiro contato com uma “comunidade carinhosa”. hooks reforça que amar em amizades nos fortalece de tal maneira que nos permite levar esse amor para as interações familiares e românticas. E, embora seja comum afrouxarmos os laços de amizade quando criamos laços românticos, quanto mais verdadeiros forem nossos amores românticos, menos teremos de nos afastar das nossas amizades, pois “a confiança é a pulsação do verdadeiro amor”. Ao nos engajarmos em uma prática amorosa, podemos estabelecer as bases para a construção de uma comunidade com desconhecidos. Esse amor que criamos em comunidade permanece conosco aonde quer que vamos, diz hooks.
“Reciprocidade: o coração do amor”, o nono capítulo, se inicia com os dizeres: “O amor nos permite adentrar o paraíso”. Para falar da construção amorosa entre casais, a autora parte dos equívocos ocorridos nos seus dois relacionamentos afetivos mais intensos, de um lado devido à falta de definição do que seria o amor e, de outro, pela confusão de esperar receber do companheiro o amor que não recebeu da família. Aponta que, mesmo em relacionamentos não heterossexuais, a tendência é o casal assumir uma lógica de que um dos parceiros deve sustentar o amor e o outro, apenas o seguir. Acrescenta ainda o fato de que as mulheres são encorajadas pelo pensamento patriarcal a acreditar que deveriam ser sempre amorosas, porém, isso não significa dizer que estão mais capacitadas do que os homens para fazer isso. Por essa razão, é comum que mulheres procurem livros de autoajuda para aprender a amar e manter o relacionamento. No entanto, grande parte desses livros normalizam o machismo e ensinam a manipular, a jogar um jogo de poder que nada tem a ver com o amor.
No décimo capítulo, “Romance: o doce amor”, bell hooks afirma categoricamente que poucas pessoas entram num relacionamento romântico possuindo a capacidade de realmente receber amor. Isso porque criamos envolvimentos amorosos que estão condenados a repetir os nossos dramas familiares. Comentando sobre o romance O olho mais azul, de Toni Morrison, ela diz que “a ideia de amor romântico é uma das ideias mais destrutivas na história do pensamento humano”. Esse amor que se dá num “estalo”, num “clique”, que não necessita de construção e depende apenas de “química” atrapalha o nosso caminho para o amor. O amor é tanto uma intenção como uma ação. Nossa cultura valoriza demais o amor como fantasia ou mito, mas não faz o mesmo em relação à arte de amar. Ao não atingirem esse mito, as pessoas se decepcionam. No entanto, é preciso entender que essa decepção é pelo amor romântico não alcançado. O amor verdadeiro, quando buscado, nem sempre nos levará ao “felizes para sempre” e, mesmo se o fizer, é preciso que saibamos: amar dá trabalho, não é essa história perfeita e pronta dos contos de fadas.
Em “Perda: amar na vida e na morte”, o décimo primeiro capítulo, a autora trata do medo coletivo da morte, apresentando-o como uma doença do coração para a qual a única cura é o amor. Da mesma maneira, somos incapazes de falar sobre a nossa necessidade de amar e sermos amados. Por medo de que nos vejam como fracos, raramente compartilhamos nossos pensamentos sobre a mortalidade e a perda. É isso que bell hooks nos convida a fazer
O capítulo 12, “Cura: o amor redentor”, nos leva a refletir sobre nossas dores, pois, ainda que tenham nos ensinado o contrário, sofrimentos desnecessários nos ferem. A escolha que temos é não permitir que tais sofrimentos nos deixem cicatrizes por toda a vida. O que faremos dessas marcas está em nossas mãos. O poder curativo da mente e do coração está sempre presente, e nós temos a capacidade de renovar nosso espírito e nossa alma. No entanto, é bastante difícil conseguirmos nos curar em isolamento: a cura é um ato de comunhão. bell hooks diz que precisamos conhecer a compaixão e nos envolver num processo de perdão para nos livrarmos de toda bagagem que carregamos e que impede a nossa cura. O perdão intensifica nossa capacidade de apoiarmos uns aos outros. Fazer as pazes com nós mesmos e com os outros é o presente que a compaixão e o perdão nos oferecem. A autora nos ensina que ser positivo e viver em um estado permanente de esperança renova o espírito e que, quando reavivamos nossa fé na promessa do amor, a esperança se torna nossa cúmplice.
O capítulo 13, “Destino: quando os anjos falam de amor”, fecha o livro apresentando a relação de bell hooks com os anjos. Anjos são aqueles que trazem as notícias que darão alívio ao nosso coração. São os guardiães do bem-estar da alma. Revelam nosso desejo coletivo de regressar ao amor. A autora relata que as primeiras histórias de anjos lhe foram contadas ainda na infância, quando frequentava a igreja, onde aprendeu que os anjos eram consoladores sábios nos momentos de solidão. E, conforme foi crescendo, hooks passou a descobrir muitos anjos em seus autores preferidos, cujos livros permitem entender a vida com mais complexidade. Ela finaliza dizendo que, depois de tanto ficar sozinha, no escuro do quarto, agarrada à metafísica do amor, tentando entender seu mistério, pôde finalmente alcançar uma nova visão do amor. E a essa prática espiritual disciplinada ela chama de “prática de abrir o coração”. Foi isso que desde então a levou a seguir o caminho do amor e a “falar cara a cara com os anjos”.
Na teoria sobre o amor de bell hooks é possível perceber inspirações das igrejas cristãs negras do sul dos Estados Unidos e também da filosofia budista, especialmente com base no mestre zen vietnamita Thich Nhat Hanh, cuja atuação disseminou o conceito de “budismo engajado”, que diz respeito a somar a observação dos preceitos básicos do budismo com uma prática cotidiana socialmente comprometida. Ao lermos Tudo sobre o amor, podemos encontrar também diversos pontos de contato com as ideias trazidas pela filósofa burquinense Sobonfu Somé, em seu livro O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar, sobretudo no que se refere ao conceito de comunidade. Nesse sentido, ao propor que as transformações desejadas para a sociedade ocorram por meio da prática do amor, bell hooks nos afasta dos paradigmas eurocêntricos e coloniais que construíram a sociedade ocidental, baseada em exploração, injustiça, racismo e sexismo, e (re)direciona o nosso pensamento e a nossa prática rumo à ancestralidade.
A tradução deste livro, trazendo a ideia do amor como transformação política, chega num momento muito oportuno e necessário. Por aqui, essa semente já brotou. Existem pessoas pensando o amor para além do “amor romântico”, como o pastor Henrique Vieira, que destaca a força poderosa do amor para a destruição de preconceitos e a construção de uma sociedade mais justa em seu livro O amor como revolução, ou como o professor Renato Noguera, especialista em estudos africanos, que se dedica a produzir reflexões sobre o amor e é autor do livro Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor. Nesse caminho segue também a pensadora Carla Akotirene que, ancorada nos estudos do feminismo negro e na ancestralidade, discute o papel político das afetividades, inserindo no debate a urgência do combate à violência doméstica. Pesquisadores voltados para a filosofia africana têm (re)construído conhecimentos que dialogam diretamente com o pensamento de bell hooks em sua Trilogia do Amor. Exemplos disso são os trabalhos de Katiúscia Ribeiro e Wanderson Nascimento. Este último tem um artigo escrito em parceria com Vinícius da Silva, com o título “Políticas do amor e sociedades do amanhã”. Sendo assim, acredito que as lições de bell hooks sobre o amor, apresentadas em português pela Editora Elefante, servirão para difundir e fortalecer ainda mais essa construção. O futuro é ancestral.
Silvane Silva é doutora em história social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp) com a tese O protagonismo das mulheres quilombolas na luta por direitos em comunidades do Estado de São Paulo (1988-2018). Em 2018, participou do Programa de Incentivo Acadêmico Abdias do Nascimento como pesquisadora visitante no Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos. É co-organizadora do livro Narrativas quilombolas: dialogar, conhecer, comunicar (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2017). Atua como professora e pesquisadora nas temáticas história e cultura afro-brasileira, educação para relações étnico-raciais e educação escolar quilombola. É pesquisadora do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora (Cecafro) da puc-sp e integrante do Grupo de Estudos em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (usp).