O desejo feminista quer transformar tudo
Foram as greves feministas ao redor do mundo ali em março de 2017 que motivaram Verónica Gago a escrever seu mais recente clamor contra o sórdido avanço conservador e neoliberal. Atravessada pelo calor das manifestações e pela mobilização das mulheres latino-americanas, essa intelectual militante argentina, membro do coletivo NiUnaMenos, reflete sobre o feminismo que brota no “Sul do mundo”, ganha força no continente e, à medida que rompe os limites entre os nossos países, forja um internacionalismo outro, não aquele das fronteiras do mapa geopolítico, mas sim o mediado pela força nossa, delas, juntas.
Então parecia propício que o livro pudesse se chamar A potência feminista, mas o título insistia em ter uma vírgula. A efervescência das palavras de ordem, as imagens da marea verde rodando o planeta, as meninas, mulheres e senhoras tomando Buenos Aires, Santiago, o Rio de Janeiro… Verónica Gago também quer saber quem matou Marielle Franco. Quer combater o que chama de tripla contraofensiva — militar, financeira e religiosa — contra o feminismo. Quer relacionar o cotidiano com a conjuntura política, o debate sobre a pobreza com o sistema bancário, a educação pública com a violência sexual.
Então, cabia uma vírgula: A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo.
Corta para os dias atuais, março de 2020. Um novo parlamento foi eleito na Argentina em outubro último, e agora há uma imensa expectativa pela discussão — mais uma — de um projeto de lei pela legalização do aborto enviado pelo governo do presidente Alberto Fernández. Em 2018, uma matéria semelhante passou pelo Congresso, foi aprovada pelos deputados, mas parou no Senado. “Sabemos que será lei, a questão é quando”, afirma a escritora Dolores Reyes, autora de Cometierra, um romance cuja protagonista convive com a sombra dos feminicídios na Argentina.
Se “estar na rua é uma aposta política”, como escreveu a jornalista Estefania Pozzo, o 8 de março mais uma vez sintetizou as fichas na mesa. Sob o coro de “a América Latina será toda feminista”, as principais cidades do continente fizeram do simbólico Dia Internacional da Mulher um grande grito local não só pelos já conhecidos direitos ligados à igualdade de gênero, mas também contra o crescente número de feminicídios, contra os incessantes casos de assédio e abuso, e contra o autoritarismo machista que inspira os líderes locais.
Em Santiago do Chile, em tempos de grandes atos contra o presidente Sebastián Piñera, centenas de milhares de mulheres marcharam para denunciar a violência sexual que aponta que, sim, há Um estuprador em seu caminho, como diz a música (aqui, um relato sobre a jornada de protestos chilena no Brasil de Fato); no México, não só o final de semana foi de atos nas ruas como a segunda-feira, 9 de março, foi de greve feminina — o #UnDíaSinNosotras é uma resposta aos tantos e tão escandalosos casos de feminicídio ocorridos no país que faz fronteira com os Estados Unidos.
No Brasil, as manifestações populares alcançaram pelo menos setenta cidades e atacaram o presidente Jair Bolsonaro, que acaba de ser processado por uma jornalista após tê-la dirigido ofensas de cunho sexual. “Marielle presente! O assassino dela é amigo do presidente” foi outra consigna de protesto ouvida nas ruas, revelando a associação entre violência machista e violência de Estado. Na segunda, dia 9, mulheres do MST ocuparam o Ministério da Agricultura, em Brasília. Aqui um resumo dos protestos no Brasil, pela Folha; e aqui uma abordagem latino-americana, pelo El País.
Foi um grande domingo, tal qual o 8 de março de três anos atrás, aquele que motivou Verónica Gago a escrever o seu mais novo livro — uma obra que amarra conceitualmente tudo isso que está acontecendo agora em nossos países, diante de nossos olhos, ou devido às nossas lutas e resistências diárias. É a potência feminista em erupção. Parafraseando um grafite das paredes da Universidade Católica do Chile, que serve de epígrafe ao capítulo final: “Os Chicago boys tremem, o movimento feminista resiste”. Avante! É preciso transformar tudo, absolutamente tudo.