O efêmero boneco de neve de Michelangelo derrete na dantesca crise climática

Talvez no futuro não exista arte, até mesmo de criações efêmeras, porque não haverá mais matéria prima a se usar

Por Mario Sergio Conti
Publicado em Folha de S. Paulo

 

O inverno de 1494 foi severo em Florença. Uma tremenda nevasca caiu na manhã de 20 de janeiro e só foi parar no dia seguinte, na hora da Ave Maria. A neve funda e fofa cobriu toda a cidade.

Piero de Medici, o mandatário de Florença, quis comemorar a rara brancura geral e chamou um rapaz metido a fazer esculturas. Mandou que esculpisse um boneco de neve no seu jardim. A obra ficou tão incrível que o príncipe contratou o jovem e o levou para morar no palácio.

Cada qual seguiu seu rumo. Primogênito de Lorenzo, o Magnífico, irmão e primo de papas, Piero tinha a glória como destino certo. Mas, por ter malbaratado a fortuna e o poder dos Medici, ficou conhecido como o Desafortunado.

Morreu no exílio, afogado, depois de perder uma batalha. Nem morto os florentinos o quiseram de volta —está enterrado em Monte Cassino. Já o aprendiz de artista alcançou a glória como escultor, pintor e arquiteto, como mestre do Renascimento: Michelangelo.

Esculpiu Davi e Moisés, pintou os afrescos no teto da Capela Sistina e projetou a cúpula da Basílica de São Pedro. Morreu com 88 anos e suas obras continuam vivas. Exceto o boneco de neve, que derreteu dias depois de Michelangelo fazê-lo. Como era ele?

Giorgio Vasari, primeiro historiador da arte renascentista, além de pintor e arquiteto, disse em “Vidas dos Artistas” que o boneco era lindo. Seu livro monumental se encerra com a biografia de Michelangelo, escrita quando ele ainda estava vivo.

Vasari, porém, não viu a fugaz estátua no jardim do Palácio Medici; pelo bom motivo que nasceu 17 anos depois da nevasca em Florença. Alguém lhe contou a historieta da obra encomendada pelo Desafortunado. Quiçá o próprio Michelangelo, de quem era amigo.

Baseado no disse-que-disse de Vasari, o escritor inglês Anthony Powell (1905-2000) é taxativo: “Não há dúvida de que o mais bonito boneco de neve já registrado tomou forma ali”.

Para Powell, a vida curta da escultura não anula sua pertinência e força. Porque, conforme escreveu, “a duração no tempo não deve ser necessariamente o critério de produção de uma obra de arte”. Ao contrário do aforismo latino “vita brevis, ars longa”, a arte breve pode ter vida longa.

Michelangelo e Vasari disseram algo sobre a vida e morte de artistas e obras. O historiador conta que, quando alguém falou de morte, Michelangelo disse que “se gostamos da vida, e se a morte é de autoria do mesmo mestre, não deveríamos desgostar da morte”.

Na última linha de “Vidas”, Vasari prevê: “Embora Michelangelo venha a abandonar o corpo, como todos os homens, suas obras imortais nunca encontrarão a morte: enquanto o mundo existir, a fama delas viverá, gloriosíssima, nas palavras dos homens e nas plumas dos escritores”.

Não há no Brasil matéria prima para bonecos de neve. Já Florença atravessa um verão dantesco. No hemisfério norte inteiro, os termômetros batem recordes. Incêndios grassam da Grécia ao Canadá. Milhões sentem no corpo o fragor infernal da crise climática. Ela chegou com tudo.

Luiz Marques estudou arte em Florença e Paris e foi curador-chefe do Masp. Publicou vários livros sobre a estética do Renascimento, alguns em italiano e francês. Professor na Unicamp, fez a tradução e os comentários, ambos excelentes, da “Vida de Michelangelo Buonarroti”, de Vasari.

Ele alargou seu campo de estudo nos últimos anos. Escreveu “Capitalismo e Colapso Ambiental” e publicou há pouco, pela editora Elefante, “O Decênio Decisivo – Propostas para uma Política de Sobrevivência“. Está, pode-se dizer, na confluência do aquecimento global com a Renascença.

“No mundo de Michelangelo e Vasari”, disse, “as formas visuais, retóricas, musicais, literárias, aquilo que chamamos hoje de arte, eram constitutivas das relações da vida social. Eram, em suma, relevantes. Hoje, isso é arqueologia”.

Para Marques, não pesava sobre o biógrafo e o biografado a “percepção do fim iminente”; não de artistas e obras, mas da vida como a conhecemos. “Era um mundo de fronteiras a ultrapassar, no qual a natureza podia ser apropriada e destruída porque sempre haveria mais, pois ela era incomparavelmente maior que o homem”, disse.

Hoje, segundo o professor, a destruição da biosfera e a debilitação do sistema climático não são possibilidades, riscos: “Elas já ocorreram, ou estão em vias de, num ritmo alucinante e cada vez mais na escala do irreversível”.

Talvez no futuro não exista arte, até mesmo a de bonecos efêmeros. Porque não haverá neve.

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