Por que as ondas de calor estão mais intensas e mais frequentes?

Por Luiz Marques
Trecho de O decênio decisivo 

 

Boa parte do Brasil está vivendo nos últimos dias uma nova onda de calor sufocante, com recordes de temperaturas em várias regiões, sobretudo na periferia. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, a sensação térmica bateu recordes seguidos no último final de semana: em um dia (16 de março) 60,1°C , no outro (17 de março) 62,3°C. A aceleração do aquecimento é inegável e atinge — como a maioria das tragédias ambientais — as populações mais vulneráveis. E são justamente esses extremos meteorológicos os mais perigosos para os organismos vivos, não só para os humanos, como aponta o pesquisador Luiz Marques no livro O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. Ondas de calor e de frio são as consequências primeiras e mais concretas do aquecimento global, e elas estão ficando mais frequentes e intensas. Leia abaixo um trecho de O decênio decisivo em que Luiz Marques aborda os recordes frequentes de temperatura e os riscos para a vida humana. A obra reúne um volume robusto de dados e informações, com grande rigor científico, acerca do colapso socioambiental em curso, que demonstram como é urgente colocar em prática políticas de sobrevivência — também apontadas no livro.

 

 

Ondas de calor mais frequentes e mais intensas na atmosfera

 

De 1900 a 1980, um novo recorde de temperatura foi batido em média a cada 13,5 anos. Mas, de 1981 a 2018, ele foi batido a cada três anos.
— Rebecca Lindsey & LuAnn Dahlman

No que se refere a ondas de calor, nossas opções estão entre o ruim e o terrível. Muitos no mundo já estão pagando o preço último das ondas de calor.
— Camilo Mora

 

Embora o desequilíbrio energético da Terra e o consequente aquecimento médio global do planeta sejam as métricas fundamentais para avaliar o nível de desregulação do sistema climático, esses parâmetros funcionam apenas como referência abstrata e de médio prazo, pois são quantificados como tendências na escala de anos ou de décadas. O que fustiga os organismos e os mata é a consequência primeira e mais concreta dessas métricas: os extremos meteorológicos, entre os quais as ondas de frio e de calor, definidas, tal como visto para as ondas de calor marinho, como temperaturas que excedem o 90º percentil das observações climatológicas durante um período de trinta anos.

Ondas de frio extremo no hemisfério norte decorrem de vários fatores, como mudanças nos regimes de ventos e de correntes marinhas. Destacam-se, entre eles, fases fracas mais persistentes e, consequentemente, maior sinuosidade dos jatos polares estratosféricos, que deixam o frio polar invadir temporariamente latitudes temperadas e permitem, inversamente, que temperaturas mais amenas nas predominem acima do paralelo 66°N. Esse fenômeno é causado pela diminuição do contraste entre temperaturas de baixas e altas latitudes, devido ao aquecimento do Ártico a uma taxa quatro vezes mais rápida que o aquecimento médio global. Isso posto, a desproporção entre recordes de calor e de frio é gritante. Em 2018, ano sem El Niño, para quarenta recordes de frio, as estações meteorológicas registraram 430 recordes absolutos de calor. Essas ondas e picos de calor se mostram sempre mais intensas, duradouras e frequentes, e se estendem sobre regiões maiores. Elas exacerbam incêndios florestais e secas, alternadas com inundações por trombas-d’água e furacões mais devastadores. Registram-se, em suma, variações meteorológicas que se distanciam dos valores típicos do sistema climático do século XX, com maior probabilidade doravante de anomalias jamais registradas no estado anterior desse sistema.

No século XXI, as probabilidades de que essas ondas e picos de calor sejam causados pela variabilidade natural do sistema climático tendem rapidamente a zero. Em 2013, um trabalho de autoria de Dim Coumou, Alexander Robinson e Stefan Rahmstorf indicava que, globalmente, o número de recordes locais de temperaturas extremas nas médias mensais era então “em média cinco vezes maior do que seria de esperar num clima sem uma tendência de aquecimento de longo prazo”. Como afirma um trabalho publicado na Nature Climate Change em 2014, “verões extremamente quentes, que ocorreriam duas vezes no século no início dos anos 2000, são agora esperados duas vezes por década”. Passaram a ser, portanto, dez vezes mais prováveis. Referindo-se à onda de calor europeia no verão de 2018, Peter Stott, do Met Office, declarou, na 24ª Conferência das Partes (COP24), em dezembro de 2018:

Nosso estudo provisório comparou modelos baseados no clima de hoje com os do clima natural que teríamos sem emissões antropogênicas [de GEE]. Descobrimos que a intensidade da onda de calor deste verão é cerca de trinta vezes mais provável do que teria sido sem mudanças climáticas.

Nas palavras de Nikolaos Christidis, coautor desse estudo, há agora 12% de chances de as próximas temperaturas médias estivais no Reino Unido repetirem as do verão de 2018 (máxima de 35,6°C) contra menos de 0,5% numa situação em que não houvesse mudanças climáticas. No que se refere a novos recordes de temperatura no Reino Unido, em 2019, o termômetro marcou 38,7°C e, em 2022, 40,8°C. Mais de um terço da população dos Estados Unidos (124,6 milhões de pessoas) sofre agora taxas de aquecimento superiores à média global, com 499 dos 3.006 condados mostrando aquecimentos médios superiores a 1,5°C. Na Califórnia, 83% da população sofre esse nível de aquecimento, e o condado de Ventura, a noroeste de Los Angeles, já sofreu um aquecimento de 2,62°C em relação a 1895, data do início dos registros instrumentais naquele estado. No verão de 2021, quase um a cada três habitantes dos Estados Unidos (32%) vive em um condado que sofreu eventos meteorológicos extremos. Além disso, quase duas de três pessoas (64%) nesse país sofreram uma onda de calor de vários dias, fenômeno que tem se tornado a mais perigosa forma de evento meteorológico extremo, com forte aumento de mortes por excesso de calor em escala global entre 2000 e 2019. Nos Estados Unidos, “mais pessoas morrem a cada ano por excesso de calor do que pela soma de tempestades, inundações e incêndios florestais”. Em 2019, em Phoenix, capital do estado do Arizona, e em seu condado de Maricopa, houve 103 dias com temperaturas acima de 37,7°C (100°F), o que ocasionou a morte de 197 pessoas por causas relacionadas a excesso de calor. Trata-se do quarto ano seguido de recordes de mortes por calor nessa região.

Ainda há pouco, esses picos e ondas de calor extremo eram chamados silent killers, matadores silenciosos, pois, como afirmam Camilo Mora e colegas, “a doença por calor (ou seja, a ultrapassagem grave da ótima temperatura interna do corpo) é frequentemente mal diagnosticada, porque a exposição ao calor extremo tende a resultar em disfunção de vários órgãos, o que pode levar a erro de diagnóstico”. Mas isso está mudando. No trabalho citado, Camilo Mora e dezessete coautores procuram mostrar justamente o impacto populacional direto do calor quando este ultrapassa o limiar de mortalidade dos humanos:

Atualmente, cerca de 30% da população mundial está exposta a condições climáticas que excedem o limiar de mortalidade por ao menos vinte dias por ano […] Uma ameaça crescente à vida humana por excesso de calor parece agora inevitável, mas será muito agravada se os gases de efeito estufa não forem consideravelmente reduzidos.

Repercutindo esse trabalho, um editorial da revista Nature relembra esse fato, a que se começa a dar mais e mais atenção:

De chuvas extremas à elevação do nível do mar, o aquecimento global deve causar caos na vida humana. Por vezes, o impacto mais direto — o próprio aquecimento — é esquecido. E, no entanto, o calor mata. Afinal, o corpo evoluiu para funcionar numa faixa muito estreita de temperaturas. Nosso mecanismo de resfriamento baseado em transpiração é rudimentar; ultrapassada certa combinação de alta temperatura e umidade, ele falha. Estar ao sol e exposto a tal ambiente por qualquer período de tempo se torna rapidamente uma sentença de morte. E esse ambiente está se expandindo. Uma zona de morte está se alastrando sobre a superfície da Terra, ganhando um pouco mais de terreno a cada ano.

A transpiração é um processo de evaporação que causa resfriamento do corpo, pois as moléculas de água com maior energia cinética (calor sensível) evaporam, deixando no corpo as de menor energia (calor latente). A capacidade dos humanos de transpirar — e, portanto, dissipar calor — em ambientes de alta umidade é muito menor do que em ambientes de baixa umidade. Quanto maior a umidade relativa do ar, maior é a dificuldade de as glândulas transpiratórias acionarem esse mecanismo de resfriamento evaporativo do corpo. Em situação de extrema umidade do ar, a fisiologia humana atinge seu limite de eficiência evaporativa em níveis muito baixos de calor. Esse limite, expresso pelo termo “temperatura de bulbo úmido” (wet bulb temperature ou TW), é ultrapassado em temperaturas maiores que 35°C (TW> 35°C). Em tais temperaturas, combinadas à alta umidade, o sistema de resfriamento natural, inclusive de organismos jovens e saudáveis, entra em alto risco de falência, mesmo à sombra e com quantidades ilimitadas de hidratação. A consequência mais provável é então a morte por hipertermia ou por complicações a ela associadas. “Algumas localidades costeiras subtropicais”, afirmam Colin Raymond e colegas, “já reportaram uma temperatura de bulbo úmido de 35°C, e a frequência em geral desse calor extremamente úmido mais que dobrou desde 1979.” Além disso, o calor pode levar à morte por outros muitos fatores, entre os quais a desidratação e a insolação.

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