‘Os acordos ambientais hoje são inviáveis e irrealistas’

Pesquisador de crises socioambientais contemporâneas e professor da Unicamp, Luiz Marques fala sobre a importância da década atual para frear os efeitos mais graves das mudanças climáticas

Por Lucas Zacari
Publicado em Nexo

 

Um combate às mudanças climáticas que consiga manter o aquecimento do planeta em níveis seguros e lidar com as consequências do fenômeno que já estão em curso requer um enorme esforço global para além de tratados internacionais como o Acordo de Paris.

Na visão de Luiz Marques, professor e colaborador do Departamento de História da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de “O Decênio Decisivo – propostas para uma política de sobrevivência”, as atuais propostas debatidas em negociações climáticas não são realistas sem pré-condições que dependem de mudanças no funcionamento da economia e da política mundial.

Transformações no comportamento, redução da desigualdade, novos conceitos de soberania nacional e direitos ambientais são algumas dessas condições propostas pelo autor, que destaca a importância da década atual para o futuro do planeta. “O sistema econômico globalizado e expansivo está hoje colocando em risco a própria sobrevivência da humanidade e de inúmeras outras espécies”, disse.

Lançado em de maio de 2023, “O Decênio Decisivo” é o segundo título ambientalista de Marques, que fez carreira como historiador da arte. O primeiro, “Capitalismo e colapso ambiental”, conquistou o Prêmio Jabuti de 2016.

Nesta entrevista para o Nexo, o pesquisador explica a importância do período até 2030, como chegamos até o nível atual de emergência e as possibilidades de se retornar a uma vivência socioambiental segura.

Por que este decênio é considerado decisivo para a continuidade da vida humana?

Na primeira COP [Conferência das Partes, conferência climática da ONU], de 1995, em Berlim, sugeriu-se que o nível perigoso de aumento da temperatura média do planeta seria um aquecimento de 2°C em relação ao período 1850-1900 [níveis pré-industriais]. Na COP 15, em 2009, em Copenhague, os países assinaram um compromisso oficial de não ultrapassar os 2°C.

Desde então, os modelos climáticos foram se aprimorando. Os dados observacionais se acumularam e se tornaram cada vez mais precisos. E o que começa a se perceber então é que um aquecimento médio global de 2°C acima do período pré-industrial não era um limite capaz de garantir uma interferência antrópica [do ser humano] não perigosa no sistema climático.

No Acordo de Paris, em 2015, já se sabia claramente que 2°C era uma receita para o desastre. O sexto relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), publicado em abril de 2022, admite que os modelos climáticos adotados por esse grande coletivo de cientistas haviam subestimado o aquecimento global. Em outras palavras, nenhum modelo climático sugeria que o nível atual de aquecimento médio global, em 1,2°C, causaria efeitos tão brutais como os que estamos vendo hoje.

Outro elemento importante a se observar é que já estamos condenados a um aquecimento maior do que o atual, mesmo que não se emitisse mais nenhuma molécula de CO2. Isso porque o pico do aquecimento da atmosfera causado pela emissão de uma molécula de CO2 ocorre cerca de 10 anos após esse evento. O aquecimento que estamos observando em 2023 é, em grande parte, resultado de uma emissão de 2013. E dado que o CO2 é um gás muito estável, uma vez emitido por uma combustão, ele permanece na atmosfera por séculos. Seu efeito de aquecimento não declina.

O que temos que fazer agora é desacelerar esse processo de aquecimento. Por isso, esse decênio é decisivo, porque é o último no qual ainda podemos ter uma interferência estabilizadora relevante no sistema climático, de maneira a efetivamente manter o aquecimento em um ritmo compatível com nossa capacidade de adaptação.

A grande questão em jogo quando se fala em adaptação de espécies não é propriamente o nível desse aquecimento. A variável crucial em todo processo de adaptação é o tempo. Se você tem tempo, você se adapta. Para ganhar tempo, temos que nos engajar num processo de transformação social jamais ocorrido. Se não começarmos agora a dar passos robustos em direção à saída dos combustíveis fósseis, não teremos condições de nos adaptar.

Como o sr. entende que chegamos a esse nível de emergência e colapso socioambiental?

Tudo que nós sabemos hoje de essencial sobre a mecânica do aquecimento global nós já sabíamos em 1979, quando cientistas americanos fizeram o Relatório Charney. Em 1988, no Congresso de Toronto, foi a primeira vez em que representantes governamentais discutiram essa questão a nível internacional.

A declaração do congresso começa assim: “a humanidade está conduzindo uma experiência, um experimento não intencional, descontrolado e global cujas consequências finais poderiam ser excedidas apenas por uma guerra nuclear global”. É a primeira vez em que se percebe que existe uma ameaça na questão da mudança climática.

E, no entanto, desde 1988 as emissões de gases de efeito estufa vêm aumentando. Na realidade, mais gases de efeito estufa foram emitidos na atmosfera desde 1988 do que do início da Revolução Industrial até 1987.

O primeiro grande fator que pode responder essa questão é que a estrutura de poder econômica não quer deixar o uso de combustíveis fósseis. O sistema energético e o sistema alimentar vigente estão encadeados à produção desses combustíveis. Em suma, abandonar o uso de combustíveis fósseis requereria desmontar completamente toda a estrutura de funcionamento da economia globalizada e, consequentemente, toda a estrutura de poder político baseado nessa economia.

Em Toronto, foi construída uma proposta clara para: 1) estabelecer uma taxa carbono; 2) redução de 20% as emissões de CO2 até 2005; 3) redução final de 50%; e 4) proposta de um tratado internacional. Dessas quatro, somente a quarta proposta foi efetivada. Mas as três primeiras propostas, obviamente as mais importantes, permaneceram letra morta.

Por quê? Primeiro, porque as poderosas multinacionais ligadas à produção de combustíveis fósseis sempre se opuseram a qualquer ação nesse sentido. E em segundo lugar, porque os Estados nacionais são, em grande parte, os proprietários das reservas de petróleo. As reservas de petróleo do Brasil são estatais. Da mesma maneira, a Saudi Aramco, a maior companhia de petróleo do mundo, é do Estado da Arábia Saudita. Portanto, as reservas de petróleo são fundamentais para a contabilidade do Estado de todos esses grandes produtores de petróleo.

Além desses dois fatores, há também o fato de que as sociedades contemporâneas estão viciadas em petróleo e demais combustíveis fósseis. Abandonar o consumo desses combustíveis requereria sair de uma zona de conforto, sacrifícios que as sociedades ainda não parecem dispostas a aceitar. Mas terão que aceitá-los, e ainda neste decênio, se quiserem manter nosso planeta habitável. Não há outra saída.

Nos últimos anos, o Brasil passou por uma intensa instabilidade política. De que forma esse cenário afetou e agravou o cenário socioambiental a nível nacional e mundial?

O governo Bolsonaro teve um papel tão catastrófico quanto o governo Trump. [Donald] Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris [o governo de Joe Biden retornou ao acordo em 2021]. Os EUA são o segundo país que mais emite gases de efeito estufa no mundo, somente atrás da China. Quando os Estados Unidos declararam a intenção de sair, os demais signatários se viram no direito de dizer: se os Estados Unidos não estão mais dispostos a diminuir suas emissões, por que os demais países deveriam se esforçar?

E se não há punição, por que cumprir um compromisso? A inexistência de um mecanismo legal capaz de punir os países que não honram suas promessas e compromissos de Estado é a razão básica pela qual o Acordo de Paris morreu e a esfera da diplomacia climática se tornou uma enorme mentira.

O mesmo vale para [Jair] Bolsonaro, porque o Brasil está rumando em direção aos combustíveis fósseis. A proporção de energia gerada por termelétricas no Brasil é cada vez maior. A geração de energia por hidrelétricas está cada vez mais envolvida em risco porque a desestabilização do sistema climático está tornando grandes secas mais prováveis e mais frequentes.

Isso posto, mais de 70% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil são de responsabilidade do agronegócio, posto que advém do desmatamento e das queimadas associadas ao desmatamento. E com Bolsonaro tivemos um processo de aceleração do desmatamento da Amazônia absolutamente sem precedentes.

O que distingue Bolsonaro dos outros governos é que, mesmo em governos onde houve um desmatamento muito forte, esse desmatamento decorria de negligência e de complacência com o crime. Com Bolsonaro, o desmatamento tornou-se meta de governo. Havia um claro programa de destruição da Amazônia, correspondente à ideologia da ditadura e às pressões do agronegócio.

O agronegócio atingiu com Bolsonaro uma influência sem precedentes nas decisões governamentais. Hoje é muito mais difícil diminuir o desmatamento, dado o poder destrutivo e de bloqueio da Frente Parlamentar da Agropecuária. Quem é que estava atrás da passagem da PL 490, do marco temporal [que muda regras na demarcação de terras indígenas e foi aprovado pela Câmara em maio de 2023]? Era a Tereza Cristina, que tinha sido ministra da Agricultura do Bolsonaro.

Bolsonaro não está mais no governo, mas a estrutura de poder do agronegócio instalada por ele no centro do poder Legislativo e com uma grande influência no poder Executivo continua dando as cartas. O próprio Carlos Fávaro, Ministro da Agricultura, disse ser a favor do marco temporal, pois é um agropecuarista e um homem de confiança do agronegócio.

Em seu livro, o sr. explica que a extinção de espécies e o desmatamento afeta o sistema alimentar global. Como acontece essa mudança?

A agricultura requer um sistema climático relativamente estável, certa regularidade no regime de chuvas, ausência de picos excepcionais de calor e frio. A desestabilização em curso do clima gera riscos cada vez maiores de quebras de safras.

Outro problema gravíssimo é o colapso em curso dos polinizadores. Mais de 80% das plantas com flores do mundo dependem de insetos para polinização e cerca de 3/4 de todas as espécies cultivadas dependem da polinização por insetos.

Além de polinizadores, os insetos situam-se na base da pirâmide trófica, sendo a grande fonte de alimentação de inúmeros outros animais. Uma diminuição catastrófica das populações de insetos, como a que está acontecendo agora, coloca em risco todo o sistema alimentar humano.

Posso apostar com você que até o ano de 2030 vamos ter cada vez mais quebras de safra, seja por causa da diminuição dos polinizadores, seja por secas cada vez maiores que se alternam com grandes inundações. Tenho convicção de que estamos no limiar de uma situação de verdadeira precarização da agricultura brasileira.

Um dos capítulos de seu livro trata sobre políticas de sobrevivência. O que é esse tipo de política e como ela pode ser formulada e implementada?

São oito condições que eu proponho para que as negociações climáticas tenham alguma chance de existir.

A primeira é a diminuição das desigualdades. Nenhuma medida tendente a diminuir a emergência climática terá qualquer esperança de existência sem um aprofundamento da democracia. Quando uma quantidade pequena de pessoas concentra um poder econômico descomunal, elas são capazes de deter qualquer processo de mudança. É preciso, portanto, aumentar a renda mínima e instituir uma renda máxima. Não podemos permitir que uma elite econômica minúscula seja capaz de determinar a condução da governança.

Claro, instituir uma renda máxima, dentro da estrutura de poder atual, é algo inexequível. Mas as propostas em curso hoje nas negociações internacionais sobre o clima, a biodiversidade e a poluição são muito mais inexequíveis exatamente por causa dos níveis absurdos de desigualdade social e de erosão da democracia.

O segundo ponto é a redução drástica do consumo de materiais e de energia fóssil dos 20% ou 30% mais ricos da humanidade. O consumo dos 50% mais pobres é quase irrelevante e poderia aumentar consideravelmente sem impactos maiores, desde que o consumo dos 30% mais ricos diminuísse de modo significativo.

A terceira proposta é a extensão da ideia de sujeito de direito a demais espécies, uma questão mais filosófica do que política propriamente dita. Temos que estender essa ideia de direito à biosfera de forma geral. Como consequência disso, a quarta proposta é a ampliação das reservas naturais, que devem permanecer protegidas das pressões dos mercados globais.

Desglobalização econômica é a quinta proposta, porque sem ela não vamos descarbonizar a economia. Plantar soja no Mato Grosso para alimentar os porcos na China ou os frangos na Europa é incompatível com a descarbonização da economia.

Sexta proposta: a alimentação tem que ser radicalmente desglobalizada, minimizando o consumo de carne e migrando para o consumo de nutrientes vegetais. Há hoje mais gado do que gente no Brasil, com mais de 80% do desmatamento da Amazônia decorrente da abertura de pastagens para esse gado. E embora o Brasil seja o maior exportador de carne bovina do mundo, a maior parte dessa carne é consumida no país. Evidentemente, não é assim que o sistema alimentar pode funcionar.

Em sétimo, uma governança global democrática. Temos que abandonar o velho paradigma da soberania nacional absoluta em prol de uma soberania nacional relativa. Os grandes problemas da humanidade hoje são problemas globais. Eles não podem ser resolvidos, mantido o axioma da soberania nacional absoluta.

Finalmente, a oitava proposta é a aceleração da transição demográfica. Para tanto, é necessário que as mulheres tenham o poder de decidir sobre os seus direitos reprodutivos. Se quiserem interromper uma gravidez indesejada, fazer um aborto, elas têm que ter esse direito assegurado e assistido pelo Estado.

Em países onde o aborto é legalizado, há uma rápida transição demográfica. Precisamos caminhar rapidamente para uma taxa de fecundidade de reprodução e para uma população humana menor, o que pode acelerar a implementação das sete propostas acima evocadas.

Essas propostas são aquelas que, de uma forma ou de outra, garantiriam a exequibilidade dos acordos que existem hoje. Porque os acordos atuais não são viáveis, não são realistas em hipótese alguma. Não há nada mais irrealista hoje do que eles.

O sr. acredita que seja possível retornar a um nível seguro da vivência socioambiental?

Não a curto e médio prazo. No âmbito climático, seria preciso retornar a concentrações atmosféricas de CO2 não superiores a 350 ppm (partes por milhão). Estamos com aproximadamente 418 ppm e aumentando a uma taxa anual de cerca de 2,5 ppm. Então, as consequências que já estamos sofrendo são inevitáveis e serão nos próximos decênios muito mais graves.

Outro elemento importante são os níveis atuais de extinções de espécies. O IPBES (Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos) alerta que os níveis de extinção hoje são de 10 a 100 vezes maiores do que os níveis de extinção deduzidos do exame dos registros fósseis no passado.

Extinção é um fenômeno natural. Espécies nascem e morrem, é normal. Mas o chamado sexto evento de extinção em massa de espécies, que está acontecendo sob nossos olhos, é causado pelo sistema econômico globalizado e expansivo vigente, e está evoluindo a uma velocidade muito maior do que a das cinco extinções anteriores.

Voltar aos níveis seguros de habitabilidade do planeta vai requerer um esforço imenso, e só será obtido com paz e grande cooperação internacional, tudo o contrário do que o que temos hoje. Isso posto, mesmo que se faça a lição de casa, ainda assim um aquecimento de 1,5°C e mesmo de 2°C já é inevitável neste segundo quarto de século e, portanto, vamos sofrer consequências graves e igualmente inevitáveis.

Por outro lado, se as sociedades perseverarem na trajetória atual, estarão se condenando a impactos cada vez mais devastadores e a riscos e ameaças verdadeiramente existenciais. O sistema econômico globalizado e expansivo está hoje colocando em risco a própria sobrevivência da humanidade e de inúmeras outras espécies.

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