Os sertões é um livro inesgotável. Nasceu desacreditado, um calhamaço que parecia impraticável, e o próprio lançamento, no fim de 1902, já soava tardio, visto que os textos de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos foram publicados no jornal O Estado de S. Paulo em 1897.
Nesse meio tempo, outras obras trataram do massacre do Exército contra os seguidores de Antonio Conselheiro. Mas o autor não desistiu: bancou parte dos custos da publicação, e hoje Os sertões tem um dos maiores alcances tanto de público quanto de crítica na história da literatura brasileira.
Não sem carregar contradições ou percepções diversas, claro. Entre dezenas de interpretações, a antropóloga Lilia Schwarcz, neste artigo, o classifica como “livro em movimento, on the road”, completando que “é uma obra do seu tempo, mas também contra o seu tempo”.
A crítica literária Walnice Nogueira Galvão concluiu a conferência de abertura da Flip de 2019 — que homenageou Euclides da Cunha — dizendo: “Os sertões tem que ser lido todos os dias enquanto persistir a situação dos pobres brasileiros. Enquanto ocorrer o genocídio dos jovens negros nas favelas de São Paulo, a militarização das comunidades do Rio de Janeiro, enquanto acontecerem tragédias como as de Mariana e Brumadinho”.
Diante de obra de tamanha complexidade, são muitos os guias, resumos e indicações para convidar (ou convencer) o leitor a mergulhar nos sertões — e isso vem de longe. São vários os materiais do tipo produzidos ao longo do século XX, e depois no centenário da obra, em 2002 (como este e este), e agora, há um ano, por conta dos debates da última Flip.
A contrapelo
Por pelo menos cinquenta anos, Os sertões foi vista como a narrativa definitiva sobre o conflito de Canudos, cravando aquela “verdade” na estante da história brasileira. Num segundo momento, vieram novas visões a partir do texto icônico, como leituras a contrapelo daquela história.
É por aí que surge Sertão, sertões: repensando contradições, reconstruindo veredas, livro organizado por Joana Barros, Gustavo Prieto e Caio Marinho, e que publicamos em julho de 2019 — há exatamente um ano. A ideia foi tomar o relato de Euclides da Cunha não para homenageá-lo ou fazer-lhe reverência, mas para debater a formação social brasileira a partir daquela visão sobre o conflito.
“Este livro se pretende parte do diálogo e da disputa. E é também uma aposta: somente a tradição dos oprimidos, repensando contradições e reconstruindo veredas, será capaz de despertar as centelhas da esperança por uma vida vivida como construção compartilhada da utopia. Canudos resiste, lá e aqui”, pontua a introdução da obra.
Tal qual Os sertões, o livro se divide em três tempos. Primeiro, uma reunião da fortuna crítica da obra e as ideias sobre o sentido do sertão; depois, com referência à primeira parte do livro de Euclides, “A terra”, a conversa é sobre o território e sua natureza; por fim, tanto “O homem” quanto “A luta” — segunda e terceira partes de Os sertões — se misturam nos passos dos camponeses-sindicalistas e das formas de organização da resistência sertaneja hoje.
Dentro disso, o livro vai passeando por essas reflexões, atualizando a discussão em torno de Canudos — e, por consequência, do Brasil —, mas também recuperando, por exemplo, uma carta de Antonio Candido escrita em 2001 e um texto de Aziz Ab’Saber publicado originalmente nos anos 1990.
“Nesse mais de século que nos distancia da Guerra de Canudos, vimos a modernização capitalista completar um ciclo inteiro. Canudos representava a resistência a uma modernização econômica em ascensão que precisava subsumir tudo à sua lógica, e que tinha no Estado seu instrumento privilegiado”, pontua o posfácio de Gabriel Zacarias.
“Já as cidadelas-mundéis de hoje e os Estados de configuração híbrida — Estados-máfia ou Estados-milícia — são sintomas de sua fase descendente, formas de uma modernização em colapso”, continua. “A forma mais extrema desse colapso é, sem dúvida, a ambiental, na qual a manipulação do mundo concreto em prol da acumulação de valor abstrato vem cobrar sua dívida imperdoável.”
E seguindo…
Outro dia, passando os olhos pela Folha de S. Paulo, demos com o espaço oferecido para que leitores enviem suas recomendações de livros ou filmes para o período da quarentena. Um veterinário de Londrina recomendava Os sertões, que assim se tornava notícia de jornal 118 anos depois do lançamento.
Mais tarde, curioso pela lembrança ao livro, fomos procurar a notícia na versão on-line e esbarramos nos comentários. Aquela área raivosa da internet, onde se pratica o linchamento de autores ou a desqualificação total do debate, tinha duas indicações. Um leitor sugeria uma edição crítica da obra; outro trazia outra edição também crítica, com o adento: “leitura flui, fruição total”.
Uns dias à frente, procurando um filme para assistir nessas plataformas de streaming, cruzamos com As mil e uma noites (2015), de Miguel Gomes. O português esteve na Flip do ano passado e, ao participar de uma mesa de debates, tratou de sua mudança para o Brasil, onde filmaria Selvajeria, um longa que procura adaptar Os sertões. Será que o filme rolou?
Google. Selvajeria acaba de ser escolhido para um programa do Festival de Cinema de Locarno, e também foi um dos selecionados para o apoio do Eurimages, um fundo europeu de fomento ao cinema. O projeto teve uma fase de pré-produção alongada e agora foi adiado, claro, por conta da pandemia.
E assim seguem, e vão longe, as releituras de Os sertões.